O Outro Lado da Solidão - Parte 4
Como já disse, o caráter trágico que dei à história perdurou até o último capítulo e para acentuar o castigo do personagem, culminei-o com a morte. Inútil descrever o meu estado naquele momento. Senti-me como o criador às voltas com o ódio e o sofrimento de sua criatura. Pensei em dar um ponto final àquela situação que, de ridícula, havia passado para o terreno do absurdo, sendo agora real e temível. Uni todos os esforços mentais no sentido de encontrar explicação e não encontrei uma que fizesse jus à racionalidade de minha análise. Sendo assim, num ímpeto de coragem e, por que não dizer, de curiosidade, indaguei:
– O que quer de mim, o que preciso fazer? – não nego que um sentimento qualquer de hostilidade tenha-me impelido a fazer esta pergunta. Outrossim, a tensão e o desejo de voltar a escrever já eram tais que sufocavam qualquer possibilidade ou tentativa de minha parte. A insistência do vento frio penetrando pela janela fazia voar o cortinado branco e úmido, roçando-o em minhas costas. Quis erguer-me para cerrá-la mas desisti; apenas fechei o livro, guardando as páginas que ainda vacilavam para ambos os lados. A voz respondeu:
– É melhor desse jeito. Sabia que lidava com uma pessoa inteligente. Terá o privilégio, acho que posso chamar assim, que nunca foi de outro autor, de conhecer pessoalmente o protagonista de seu romance. Tudo o que tem a fazer, acredite ou não, é mergulhar naquele lago e ir até o fundo dele; é lá que eu vivo. Explicando melhor, ao alcançar o fundo do seu adorado lago, vai encontrar a passagem que dá acesso ao meu mundo. Lá ficará sabedor dos passos que terá que seguir a fim de adaptar-se àquele meio. Acredito que não terá dificuldades, por tratar-se das condições e situações que você próprio escolheu para Cesário. Porém afirmo: nem tudo será previsível. Entretanto, perceberá, como bom observador que presumo que seja, as nuanças salvadoras do cenário imaginoso o qual soube muito bem criar. Devo acrescentar que admiro deveras o seu estilo, por isso dou-lhe esta chance de arrepender-se e repensar suas tramas. Não se esqueça: nada tenho a perder, pois sou apenas ficção. Ah! Ah! Ah! Ah!
Abri a boca para falar quando ouvi soar em meus ouvidos o eco da ligação desfeita. As forças físicas e mentais que ainda me restavam após tão inesperada e chocante experiência ergueram-me da cadeira e lançaram-me prostrado sobre a pequena poltrona. Thomas, ao penetrar no recinto, julgou, por meu estado lânguido e indiferente, que tivesse adormecido. A chuva que vinha mais forte, fazendo sacudir o vento as janelas, trouxera ali o meu criado. Ele fechou-as, desligou a luminária e saiu deixando-me só com minha aflição.
Amanheci na cama. Tomei banho e fui para o desjejum. Enquanto comia ia refletindo no acontecimento do dia anterior. Sequer tentaria, ao sair dali, o mínimo esforço para desempenhar minhas atividades rotineiras; já tinha a convicção de que seria totalmente inútil. Passei a ponderar as palavras e, digo incrédulo e vexado, as orientações que me foram transmitidas. Neste estado, saí para o meu costumeiro passeio matinal, o qual me levaria inevitavelmente à beira do lago. Desci os três degraus da varanda e caminhei sobre a grama. Pensava na incrível necessidade de atirar-me naquelas águas geladas e impróprias, quando me vi bem próximo delas. De onde estava já conseguia avistar aquele conjunto flutuante e impressionei-me, pois estava bem próximo à margem. Aproximei-me mais e, qual não foi a minha surpresa. As formas geométricas estavam ali e o vão que deixavam, agora, ao separarem-se os dois triângulos, era grande, bem junto a mim e de águas azuis e convidativas. Associei aquela aparição - e aquele movimento - ao mesmo das páginas do livro que insistentemente bailavam à minha frente durante o sinistro telefonema. Concluí que seria este o ponto exato do mergulho.
Olhei disfarçadamente para os lados e, como esperava, não encontrei viva alma. Gaivotas rapineiras descansavam sobre os caniços ao longo da costa e algumas poucas aves adejavam à distância. Vestia uma roupa apropriada à temperatura reinante ao amanhecer, algo em torno dos vinte e cinco graus centígrados: uma camisa de malha sem colarinho, de mangas curtas e uma calça bege de tecido cotelê; calçava chinelos de couro com solado de borracha.
Desfiz-me do calçado e respirei profundamente. Fixei mais uma vez o centro do lago, aguardando nova separação. Quando esta ocorreu, deixando-me a abertura, mergulhei para dentro dela. A princípio desci, de olhos fechados, sentindo o roçagar de plantas e raízes. Foi um longo mergulho. Jamais poderia imaginar-me capaz de descer a tal profundidade, tampouco me lembrava de tê-la concebido em meus projetos de construção. Enfim, retomei a visão. Outras espécies submersas, insinuavam-se em meu caminho e tive que me desviar de algumas para obter passagem. Cansado e sem fôlego, estive a ponto de retornar à superfície no momento em que pressenti um outro vão próximo do meu alcance. Além dele, as águas eram azuladas atingindo as gradações de cores comuns à água de uma piscina. Ato contínuo, aproximei-me e entrei pela passagem, mesmo consciente da falta de nexo de sua presença ali.