O Outro lado da Solidão - Parte 2

O ar da manhã fizera-me muito bem. Senti que pegando a caneta e concentrando-me, surgiria uma boa idéia para um conto; foi o que fiz. Já na biblioteca, desfiz-me do casaco azul marinho de veludo de algodão, pois sentia calor, e ajeitei-o sobre o encosto da cadeira. Sentei-me animado e comecei a trabalhar. Abri um caderno grosso de espirais de arame com capa marrom dura e passei a esboçar as primeiras linhas de uma história que me acabara de ocorrer. À minha frente, ao lado do computador, outro caderno igual aquele, porém mais fino, enchia-me de orgulho. Ali estava, inteiro, o romance que havia terminado dias antes. Escrevera-o em menos de três meses tal fora a ânsia que tinha de vê-lo concluído. Sequer o havia ainda registrado em meu micro, pois pouco tempo e energia me sobravam após horas intensas de emoção debruçado sobre aquela história arrebatadora. Sendo assim, findo o primeiro parágrafo da obra recém concebida, o telefone tocou a minha frente.

Confesso que detesto tal espécie de interrupção quando me encontro aplicado em fazer brotar as minhas idéias. Mas como pessoa agora de sucesso e admirada na sociedade, precisava exercitar a polidez e a atenção que merecia, não só a mídia, como também, e muito mais, o meu público em geral. Minhas conjecturas duraram o suficiente para fazer com que o aparelho me alertasse por quatro vezes da presença insistente de alguém do outro lado da linha. Da quinta vez, entretanto, estiquei meu braço e peguei, com desdém, o fone preto à minha frente. Não reconheci em absoluto a voz, o que me reforçou a convicção de que seria um admirador que havia, de alguma forma, conseguido o número e estivesse querendo alguns minutos de prosa para falar, talvez, de algum livro meu que lera ou algo assim. Ao responder ao primeiro cumprimento, preparava-me gentilmente para desligar quando uma frase sua prendeu-me a atenção. – Se fosse você não seria tão duro com Cesário – disse num tom sério e amargo.

– Deve estar equivocado – falei, com certa impaciência, porém, mantendo a calma, e despedi-me novamente, esperando a compreensão do meu interlocutor, já que dei a entender que estava ocupado, – não conheço ninguém com esse nome – completei. Realmente não conhecia. O único Cesário com quem andara envolvido nas últimas semanas fora o personagem fictício da aventura que já estava pronta. Permaneci à espera de sua aquiescência para que eu pudesse, definitivamente, abaixar o fone e dar por encerrado o diálogo. A voz, porém, no mesmo tom angustioso e seco, retrucou:

– Você está falando com ele, muito prazer. – confesso que não me sentia bem com aquele tratamento íntimo, especialmente vindo de um fã, o que não costumava ocorrer. Tive a certeza de que o era no momento em que finalmente se apresentou. Satisfeito respondi:

– Muito bem, Cesário. – Ainda com sua primeira frase na memória, continuei: – Fico contente por ser um de meus leitores. Espero que aprecie o meu trabalho. Será um prazer conversar com você, mas em outra hora. Agora estou… – nesse momento a voz interrompeu-me.

– Sou um de seus personagens. – Demorei-me um pouco para voltar a falar, tal foi a minha surpresa. Seria uma tremenda coincidência alguém cujo nome era o mesmo daquele que figurava em minha mais recente criação, neste caso o próprio protagonista, ter esse desejo sem saber que já fora atendido. Apressei-me em dar-lhe essa boa notícia.

– Parabéns! Acabei de escrever um romance em que há um Cesário; seu nome já consta em um dos meus livros.

– Eu sei disso, é por isso que estou telefonando.

– Impossível; os originais sequer saíram de minhas mãos. – Achei que já estava desperdiçando o meu tempo e estive a ponto de ser descortês, quando o sujeito veio-me com uma proposta tão irracional quanto inconseqüente.

– Para começar – disse agora num tom quase autoritário – O Cesário é o personagem principal desta sua história. Se não estiver satisfeito, o que posso garantir, estou pronto a narrar, se preciso for, toda a trama de ponta a ponta, com algumas modificações que, por certo irão ocorrer. – E, sem esperar minha aprovação, pôs-se a destrinçar cada cena diante de minha audição atenta e perplexa. Nem seria preciso dizer que aquilo me deixou embasbacado. Todas as preocupações e impressões rotineiras que vinham me atordoando nos últimos dias desvaneceram-se para darem lugar a uma atenção assombrosa e exclusiva. Enquanto ouvia-o pasmado, algumas imagens vieram-me à lembrança como, por exemplo, os sonhos das últimas noites, em que as imagens confusas denotavam a presença de alguém no fundo que acenava em desespero como se pedisse ajuda, e quando eu tentava acudi-lo, suas mãos se soltavam das minhas e ele caia como que numa queda infinita. No meio desta queda, eu acordava.

Professor Edgard Santos
Enviado por Professor Edgard Santos em 04/03/2011
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