O Outro lado da Solidão - Parte 1

A solidão continua sendo um mistério indecifrável para a nossa compreensão. Não saberíamos explicar, ao certo, os efeitos deste sentimento para a alma humana, pois sua interpretação é e sempre será dúbia. Chega a ser uma questão de tendência que, a determinada altura, torna-se irreprimível e incontrolável. Sua satisfação pode trazer alegria ou tédio, dependendo de quem a experimenta.

Devo dizer que no meu caso não foi nem uma coisa nem outra, mas uma necessidade, a qual fui forçado e que me fez conviver melhor comigo e com minhas fraquezas. Vivi uma experiência inenarrável por simples meios literários. Mas como são os únicos de que disponho no momento, não me resta outra alternativa senão utilizar-me deles. Tentarei exprimir os fatos tais como me ocorreram, deixando para os meus leitores a liberdade da interpretação. Quanto a provas, não as tenho pela simples razão da impossibilidade e da inconveniência, pois ter intactos os meus sentidos e minha mão para mover esta pena já me traz todo um prazer e bem estar só comparáveis àqueles anos inesquecíveis. E, o mais importante, estou vivo para contar a aventura de que tomei parte. Vamos a ela.

Vivia eu confortavelmente em bela herdade à beira de imenso lago que mandara construir ao natural após o décimo ano da minha permanência ali. A mansão custara-me uma fortuna, mas, que para o padrão de vida que possuía na época, muito pouco afetara minhas abastadas finanças. A construção do lago viera de uma decisão repentina, levando-me outra dinheirama. Contudo, encheu-me de felicidade. Escrever fora sempre um de meus passatempos prediletos, o qual transformou-se em profissão rendosa e gratificante após a prematura aposentadoria que passei a ter direito aos quarenta e três anos.

Optei por ficar solteiro e, todas as manhãs, sem o burburinho de crianças ou as interrupções interpelantes de uma esposa, já estava eu em meu recôndito espaço, desfrutando o prazer de minha atividade literária na varanda em frente ao lago. A paisagem era-me graciosa e aconchegante. Tal estado de relaxamento facilitava sobremaneira a chegada de idéias de que precisava para as minhas histórias e crônicas. A fim de não me afastar desta onda benfazeja, cercava-me de todos os indispensáveis acessórios. Sobre a mesa grande e quadrada de tampo de vidro, trazia o telefone, cujo fio preto, já quase esticado, vinha da sala passando pela janela aberta ao meu lado. Alguns dicionários, o inseparável cachimbo dourado, a caixa de fósforos, o pacote de fumo, o cinzeiro, eram meus companheiros de todos os dias. Até mesmo um pequeno sino vermelho estava ali para os casos em que quisesse um suco de laranja com gelo ou, nos dias frios, um chá bem quente a expelir fumaça. Era só balançá-lo e Thomas, o criado, num rufo, aparecia em seu traje branco de cozinha e avental.

As samambaias enfolhadas que pendiam dos vasos ensombrecidos quase acima de minha cabeça protegiam-me do sol muito forte que às vezes incidia no local. Por baixo delas minha visão se estendia para longe e eu apreciava o lago. As águas calmas eram um convite à inspiração. Da varanda até ele eram não mais que vinte metros num plano levemente inclinado. Descia-se três degraus de mármore para o chão de grama que avançava até um jardim de espécies variadas e baixas para não encobrir a visão de fundo. Contornando-se este jardim tinha-se o lago em todo o seu esplendor. Não poupei recursos para aproximar minha obra o mais possível do natural, fauna e flora. Plantei caniços que ornamentavam a orla de um tom especial. As Sagitárias, com enormes flores brancas e róseas, apontavam para o céu exóticas folhas aéreas com a imponência de um guerreiro a exibir sua lança. Íris vivazes e vigorosas davam um complemento perfeito ao todo. Em uma zona mais profunda fiz conviver espécies enraizadas de folhas flutuantes que, quando floresciam, surgiam fora d’água, belas e copiosas. Quanto à fauna, apresentava uma diversidade que lhe era característica, predominando várias espécies de média profundidade e temperatura.

Sentia-me assim em meu próprio paraíso particular. Os diálogos reais que me faltavam fazia-os com os personagens das ficções que escrevia. Envolvia-me com eles de tal forma que me pegava inúmeras vezes falando comigo mesmo. Ao dormir, com um provável desfecho para determinada história não poucas foram às vezes em que, ao despertar pela manhã, tinha-a acabada, na ponta da língua e na memória, restando-me não mais do que sentar e transcrevê-la para o papel, impregnando-a do meu estilo próprio. Não é demais ressaltar o prazer que isso me causava, pois, ao retornar para a cama à noite e já livre daquele texto e dos personagens, não raro recebia-os em meus sonhos. Via-os sorrindo alacremente, heróis e vilões, unidos e confraternizando-se. Na ponta desse sonho eu aparecia e recebia os seus agradecimentos. Dias se passavam nos quais todos os meus sentidos, como que aprisionados a este estado de graça, a este gozo íntimo e extemporâneo, já me impedia a concentração para uma nova narrativa. Foi quando, em certa noite, um fato me surpreendeu.

Era inverno e a temperatura muito baixa que vinha fazendo nos últimos dias trouxera-me para dentro de casa, distanciando-me do hábito salutar de unir minha literatura à apreciação do paraíso particular que grandes inspirações me proporcionava. Munido dos meus instrumentos habituais, instalei-me na biblioteca contígua à sala de estar. Minha posição dava agora de costas para uma janela que costumava deixar entreaberta e que por hora vinha fechada por causa do frio. Estive propenso, mais de uma vez, a alterar a posição dos móveis, que não eram muitos, a fim de poder ficar de frente para ela, mas confesso que a preguiça e a indecisão foram mais fortes. Outrossim, não via nisso tanta necessidade. Utilizava aquele canto mais para a leitura e à noite; geralmente fazia-o sentado a uma pequena poltrona encostada à parede atrás de mim. A visão de um céu estrelado já me era suficiente e benéfica. Quando não lia, passava para o computador os textos manuscritos e procedia à revisão.

Pois bem, num desses dias em que a inspiração não me vinha, devido às razões já mencionadas, estive vagueando ao redor do lago, contemplando a natureza. Minhas espécies flutuantes estavam no auge da sua floração e transmitiam-me inefável bem estar. O conjunto dessas plantas formava estranha figura geométrica. Uma espécie de paralelogramo cruzado, o qual, influenciado por um incomum movimento das águas, partia-se em duas metades que por sua vez resultavam em dois triângulos eqüiláteros que, após alguns instantes, voltavam a unir-se, dando forma à figura primitiva. Olhei ao redor da vegetação e vi formarem-se bolhas como se alguém houvesse ali atirado uma pedra ou coisa parecida. O mais estranho – e aí não houve de minha parte qualquer ilusão de ótica, pois estava inteiramente concentrado – é que a direção das ondas que se seguiram não correspondia ao que é comum numa situação idêntica, ou seja, em vez de se expandirem concentricamente elas permaneciam paradas num mesmo ponto em torno das bolhas. Intrigado, atirei naquele ponto uma pedrinha e o fenômeno desapareceu por completo. Continuei meu passeio dando uma volta inteira em torno do lago; satisfeito, retornei para dentro de casa.

Professor Edgard Santos
Enviado por Professor Edgard Santos em 25/02/2011
Reeditado em 25/02/2011
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