O NETO

Era o ano de 3050.

Quando eu ainda era criança, nas escolas e na sociedade, aconteciam alguns debates acalorados sobre uma tal de “inversão da pirâmide etária” em nosso país. Diziam que em quatro décadas haveria mais idosos do que jovens.

Pois bem, esse tempo havia chegado.

A senilidade reinava. Estávamos vivendo a era dos idosos.

- Oh meu velho, como eram bons aqueles tempos! As crianças visitavam seus avós e esses lhes contavam histórias!

- É verdade, essas criaturinhas adoráveis andam escasseando ano após ano! Hoje em dia, são tão raras. Já nem as vemos por aqui!

- Ficar só entre os velhinhos me causa tristeza, me deprime. Não que eu não goste deles, são nossos amigos e estamos no mesmo barco. Apenas sinto falta da alegria das crianças!

- É minha velha, são tantos remédios que tomamos todos os dias! E os antidepressivos? Esses nunca podem faltar!

- Às vezes, tenho a impressão de que esses remédios estão é nos matando. Temos que fazer alguma coisa!

- Éh, hum!...

- O que foi? No que está pensando?

- Estou pensan... Tive uma idéia! Lembra-se daquele amigo do nosso filho, aquele farmacêutico?

- Ah, deixa ver... minha memória não é mais como antes! Ahn, hum... o Beto? Aquele de cabelo loiro?

- Não, não, ele usava um cabelo todo desarrumado...

- Ah, lembrei! É Marcos o nome dele!

- Então vamos falar com ele.

- Falar o quê?

- Para que ele junte todos os comprimidos e faça um só!

- Ta bom, isso vai ser bom. Falaremos ainda hoje com ele. Mas eu não me conformo em não ter nenhum neto!

- Nisso também daremos um jeito!

- Mas, como?

- Como ninguém mais quer ter filhos, o útero das mulheres está ficando a cada dia mais atrofiado e menos preparado para a gravidez.

- E...

- Vamos mandar construir um neto para nós. Ele vai nos ajudar, vai nos fazer companhia e ainda vai poder ouvir nossas histórias.

- Que ideia genial!

E assim foi feito.

Eles gastaram quase todas as suas economias para fazer um neto do jeitinho que eles queriam: olhos castanhos, cílios grandes, pele branca, dentes bonitos, um menino de nove anos, que pudesse ajudar em pequenas tarefas, fazer-lhes companhia, ouvir suas histórias e que desse gargalhadas de vez em quando.

Demorou um pouco para que o pedido deles ficasse pronto.

Foram alguns dias de grande ansiedade. Mas quando o neto chegou foi aquela festa! Estouraram balões, assopraram línguas de sogra, comeram pipoca e cachorro quente, beberam refrigerante e se fartaram com os docinhos.

Nesse dia todos ficaram cansados e foram dormir mais cedo.

No dia seguinte, o neto acordou primeiro, correu até a cozinha preparou o café e buscou o pão. Tomaram o café da manhã com apetite de criança.

Aquele foi um dia muito agradável.

O neto fez companhia aos velhinhos, conversaram, assistiram a televisão, ele leu, em voz alta, as notícias do jornal da região.

No final da tarde, a vovó voltava de sua caminhada e ouviu sua linda gargalhada. Como isso lhe fazia bem. Ela dizia que gargalhada de criança é o combustível para girar a roda da vida, traz energia, gera alegria e esperança no coração de quem ouve.

A vovó chamou-o, fez-lhe um carinho e perguntou-lhe se ele gostaria de ouvir histórias.

- Claro vovó, quero sim!

A vovó começou a história, ele com o olhar atento, balançava a cabeça de vez em quando, até que a vovó terminou e disse:

- Gostou?

- Gostei muito!

- Quer ouvir mais?

- Quero! Conta outra vovó!

O vovô estava sentado na poltrona ao lado da vovó e ela começou:

- Era uma vez, quando eu ainda era uma menininha, na cidade de Rio das Flores, e blá, blá, blá, blá...

O vovô pegou no sono.

Ao terminar, a vovó perguntou ao neto se ele queria ouvir outra. Diante da resposta afirmativa a vovó iniciou nova história.

E assim eles passaram a noite inteira. A vovó tinha muito que contar. Estava atulhada de histórias, havia uma urgência tremenda em ir esvaziando o seu baú de memórias, que parecia nunca ter fim.

Mas agora isso já não era um problema porque ela tinha um neto que era todo ouvidos.

E assim o casal de velhinhos viveu ainda muitos anos, sem solidão e contaram, tantas, tantas histórias que o baú quase esvaziou-se.

E o farmacêutico?

Quando Marcos estava prestes a concluir o projeto da pílula única, invadiram seu laboratório, quebraram frascos, espalharam pós químicos por toda parte, queimaram todos os papéis e destruíram todos os arquivos da nova fórmula.

Um homem encapuzado amarrou pernas e braços do farmacêutico e repetiu-lhe essas palavras pausadamente:

“As pessoas tem que continuar doentes. O que será do mundo se curarmos todos os males? O que será da indústria farmacêutica, dos médicos, dos farmacêuticos, das enfermeiras, dos técnicos e auxiliares, das farmácias, e o que será dos cientistas? Se curarmos todas as doenças, o mundo se tornará um caos total. Portanto esqueça essa maldita pílula única! Muitos já fizeram fórmulas e mais fórmulas e todas foram destruídas, porque será que vocês nunca entendem?”

O encapuzado borrifou um gás venenoso no escritório do farmacêutico e saiu às pressas do local. Marcos desmaiou.

Quando o farmacêutico acordou, estava atordoado, já não falava coisa com coisa, ficou totalmente perturbado e nunca mais pode trabalhar.

Para nossos velhinhos a pílula única já não fazia falta, pois o netinho trazia-lhes toda a medicação e um copo d’água para cada um e eles tomavam tudinho, secavam a boca com as costas das mãos e sorriam felizes.

DoraSilva
Enviado por DoraSilva em 22/11/2010
Reeditado em 22/11/2010
Código do texto: T2629639
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