Eternidade-Parte I
Primeiros nove episódios do meu romance "Eternidade" :
Prólogo:
Lembrar sempre que uma certa época já passou, algum tempo já foi vivido,sentir falta do que se sentiu,sensações que nunca se esvaem,drama da consciência humana , inconformidade ambígua, melancolia nostálgica, lagrimas que caem,dor, intensa dor de se estar ciente de nada mais retornar,existência, intensidade de se viver a vida, consternação e desespero diante da morte,grandiosidade do universo e do tempo, frustração pela pequenez humana,dilema entre responsabilidade e comoção,infância, juventude, maturidade, senilidade, decrepitude, desaparecimento, extinção,lágrimas que caem...Eternidade !
Contexto:
Futuro indefinido,colônias humanas espalhadas no universo,um império que se esvai,a luta pela liberdade e independência, Rikku, a menina misteriosa,chave de tudo o que esta para acontecer, nascimento, morte,guerra, povos, insegurança, futuro incerto, esperança,culturas milenares que se liquefazem, intolerância,mágoa, romance,busca pelo sentido da vida...Eternidade!
Episódio 1 : Infância das Eras
Vento frio, chuva fina,névoa ,sensação de sonho e mistério recobrindo as campinas , madrugada,ventania que releva a relva, orvalho que flutua por entre as flores,eis que os pequenos animais da noite se afugentam,correm, correm,corações disparados, pequenos olhos incapazes de interpretar o mundo em que vivem, capazes somente de ver a superfície brilhante da vida, brilho que cega para a consciência, são leves pois não tem a consciência humana pesada ,como chumbo, complexa como a Natureza, mas ainda que muitas vezes bela e por vezes ambígua,embate com os sentimentos de um coração pesaroso.
Os montes e campinas em sua vastidão parecem infinitos e eternos, mas eles não o são,breves como a existência humana, o céu parece pesado, cinza,azul-chumbo, matizes douradas dos primeiros raios de luz solar iluminando a escuridão.
Em meio ‘a todo este frenesi de Natureza mais viva do que nunca, um coração bate quase taquicárdico, dor de viver, dor de gerar uma nova vida,outro coração, uma mente preocupada,dor de viver,e um milagre está em pleno curso: por nove meses ele esteve presente, uma nova vida sendo construída e gerada ,um pequeno coração ainda inconsciente de si mesmo, mas já vivo,uma mente ainda em formação, nebulosa como a neblina que circunda a velha e pequena casa no meio da campina,mas já insegura por um futuro incerto, dor de viver.
Agora não há mais volta, o mundo quente e confortável,úmido e seguro já foi deixado para trás, não se ouvem mais as batidas do coração que embalava dela o ninar.
Mãos aflitas tocam a pele macia, água, tecido,tudo é novo, nada se sabe,uma pequena cabeça é recostada junto ao peito quente.
Lágrimas caem quentes e cristalinas, de dois rostos sofridos,um pela dor do nascer, outro pela dor da apreensão e impotência diante dos milagres da vida, que acabara de renovar 'a si mesma numa nova geração.
Um abraço, e três corações batem unidos numa só unidade, pacto de sangue diante da vida, continuidade.Continuidade?
Tudo é incerto, nada é garantido, dor de viver.Nenhum dos três está seguro,tudo parece eterno e etéreo,a dor de escolher entre a dor de continuar a viver ou a de desaparecer, tudo parecia se desintegrar, contrastando com a intenção integração da complexidade daquela nova vida, recém gerada.
Aquele tempo está tão longuiquo na memória dos povos que para eles foi a Infância das Eras, mas a Eternidade não tem duração,infinita que é em sua imensidão.
-Como ela vai se chamar, querida?
-Rikku.
-Qual o significado deste nome?
-“O Reflexo do Lago”.Pensei neste nome ao ver meu reflexo no lago, que como nós, um dia não mais existirá.Porém ele esconde em sua superfície seus mistérios e tem em si uma fonte de vida, uma alegria de viver inesgotável,e também a inconformidade da cessação da vida,a luta por continuar a viver,as belezas e a escuridão, a voluptuosidade das águas,e a sensibilidade da continuidade da vida através da geração de novas gerações, e toda a dor das gerações que as antecedem, toda a ambigüidade da essência de se ser humano está ali, escondida naquele pedacinho de Natureza!
-Que nome maravilhoso você escolheu para nossa filha, querida!Obrigado por você existir na minha vida, meu bem, Rikku doravante será nossa continuidade,nossa memória, terá sua própria vida, e veio de um milagre de amor,mais do que da própria natureza, amor que só alguém tão sensível, bela de coração e alma como você, poderia proporcionar!
Dois sorrisos, um beijo e um abraço eternecido, inesquecível, uma lembrança comum aos três,dor e alegria de viver.
Pequenos animaizinhos voadores flutuavam pelo ar, em vôos incertos, o sol resplandescia, as nuvens corriam pelo céu.
O lago, próximo da casa, refletia as nuvens e escondia sua fauna, seus segredos.Dera seu nome a pequena Rikku, que iniciava agora sua jornada pela vida.Não era bem assim, todavia, mas sem o lago, não poderia haver por decerto o reflexo.
Episódio 2: Fuga, Solidão, Razão de Viver
Mas o canto dos animaizinhos voadores logo foi abafado, por estrondos ensurdecedoras que pareciam trovões, ainda ao longe, mas por quanto tempo?
A Paz ali era um sonho diáfano e fugaz,e longe dali a vida cessava sem parar.
Canhões de partículas ecoavam, destruindo tudo o que se julgara um dia perene, ordens insanas, gritos desesperados, corações que paravam de bater, sangue que escoava generosamente, vida escorrendo entre os corpos, cheiro insuportável,bombas explodiam, fazendo vidas em pedaços, pedaços de história humana que se queimavam, derretiam, desapareciam.
Mitthu já não lutava mais pela Glória do Império, já não lutava mais pela Liberdade dos Oprimidos,pela vitória da Saga dos Revoltosos, por mais nada, lutava pela dor de ter de continuar a viver, e tirava vidas para preservar a sua própria.Não suportava mais tanta dor, não só física, mas da constatação de em que sua vida tinha se transformado, e de não saber se ela poderia ser melhor um dia, não sabia mais o que poderia vir a ser uma vida melhor ou pior, queria apenas viver, já não se importava mais que na verdade quem parecia assim tão obcecado pela continuidade da vida era seu corpo, não sua mente confusa e horrorizada.
Mitthu, o soldado, resolveu fugir.
Em meio ‘a tanto ribombar, tanta lama, tamanha destruição, tanta desolação, tanta falta de razão,Mitthu não esquecia, ignorar não podia, seu passado tempestuoso e sofrido, ainda que breve ,o acompanhava em sua jornada de consternação.
Queria fugir,ir para longe dos demais homens, para longe da guerra, e voava em sua imaginação , para as poucas imagens de sua vida que julgava alegres.
Automático e condicionado por anos de treinamento,matava mecânicamente,em exaspero, sentia que alguma coisa dentro de si o levava cada vez mais longe daquele pesadelo.
Na verdade não mais sabia distinguir se vivia ou sonhava.
Se viver é fazer parte de um sonho, e sonhar é ter sensações assim tão vividas que enganam fazendo-me pensar que vivo, pensou Mitthu, qual a razão para viver?
Ele sabia que não suportava mais ver o mundo só em vermelho, e sentia que haveria algo extraordinário esperando por ele para vivenciar em sua vida, apenas ainda não tinha acontecido.
Quando deu por si, o campo de batalha estava longe, e vislumbrou então uma floresta densa, com arvores imensas.Quando questionou a si próprio se ali não residiriam feras horrendas,respondeu 'a sua própria consciência:
-Não existe fera que não seja humana, a besta humana, besta-fera,que tudo mata e tudo destrói, primeiramente a si mesma.
Em meio ao breu e da complexidade intrincada dos cipoais, espinhaços e mata fechada por onde perpassava,sentia-se só em meio a tantos olhos que o observavam.Não existia um caminho, só obstaculos, farfalhar de folhas há muito putrefatas,todo tipo de zumbidos e ruídos estranhos, gargalhadas histéricas e sem sentido,suor, calor, ar carregado, abafado, úmido, triste, dor de viver,agonia, melancolia negra como a escuridão,embrenhado no núcleo da floresta, coração.
Então irrompeu o silêncio em meio às trevas.
Suor gelado, calafrio,apreensão: a ausência, o vazio da floresta o aterrorizava, parecia que alguma coisa medonha estava por acontecer.
Mitthu mal conseguia segurar sua arma, trêmulo.Sentia-se agora tão mínimo , e a Natureza tão assim dominante e majestosa, que não suportou não apenas o peso da pressão da opressão,o pesadelo que se acercava dele por todos os lados,mas igualmente o seu próprio peso, e caiu de joelhos.Suas próprias lágrimas lhe pareciam pesadas demais, a esperança parecia se esvair de sua alma.
Um grito parecia estar preso em sua garganta sufocada, um uivo grandioso,um sentimento lhe pesava em seu coração.Como pássaro engaiolado que anseia por liberdade, assim estava seu grito emudecido,retido e oprimido.Porém , uma sensação de profundidade, tudo escurecendo, tudo girando, o vazio da falta de uma referência, com o intenso vazio como única presença, sua alma se rebelou e os grilhões de sua esperança moribunda e mortificada se estilhaçaram, e o brado ecoou pelos labirintos da floresta como nunca antes ouvidos:
-Uuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu!!!!!!!
Então a voz se calou, e o guerreiro, vencido,aos pés da Natureza tombou.
Episodio 3: Excelência, Majestade,Perenidade
No alto da mais alta das colinas jazia o Palácio.A suntuosidade daquela edificação singular contrastava com a aridez gélida da solidão.
No alto do trono estava o monarca,vestido com as peles mais finas e as jóias mais preciosas.Um suspiro percorreu a sala vazia, onde o tédio do tempo parecia o fazer perene. Quantos mundos dali ele controlava já nem tinha mais idéia,por outro lado ele se arrastava pelo tempo lembrando-se da infância, de eras passadas, outros tempos, outra gente, amigos há muito mortos ou desaparecidos,amigos?
“-Não”, pensava ele agora “-Amigos não existem .Só existe agora o Poder. Poder que corrompe, poder que rompe,destrói, dizima, extingue.Poder que oprime, Poder que tem a virtude duvidosa da Opressão,a árdua escolha a fazer entre responsabilidade e coração.Muitos amigos foram mortos assim.
Realidade que pesa,oprime o opressor, esmaga o Ditador,e ainda assim resta viver, obrigação.Corrente que não se quebra,vício maldito, Ambição.”
A serenidade daquele rosto marcado pela idade escondia uma angústia profunda que nem mesmo aquele velho tirano sabia de onde vinha.
Tal angústia porem era ambígua em sua origem, pois não se tratava apenas do fundo de uma alma torturada e de um coração amargurado,mas por conta do segundo Imperador dentro do primeiro, havia interesses ali e tais”fraquezas” não podiam vir à tona, razão pela qual ele tirava alguns minutos do dia para seu próprio retiro.Enquanto um Imperador adormecia, o outro chorava em sua prisão,com lágrimas ausentes e dor presente.
Havia uma ânsia de viver no Imperador oprimido,mas para este não havia esperanças.
Não havia por que continuar vivendo, mas este pequeno monarca permanecia.
O retiro terminou.
Um General entrou e relatou que a pequena cidade de Sotto tinha –se rebelado contra o Império, recusando-se a pagar impostos, refutando a opressão.
O rosto do Imperador até então sereno, transformou-se de imediato, tornando-se vermelho, colérico, furioso, de modo tão inesperado e imprevisível que até o próprio General se assustou.
Soou o brado, urro de ferocidade selvagem e incontrolável:
-Mata! Mata! Mande um exército inteiro, dizime, destrua, promova a extinção!Faça a cidade desaparecer !Quero um lago de sangue no lugar !
O General baixou os olhos, baixou a cabeça, e respondeu:
-Sim, Majestade, será feita a sua vontade.
Episódio 4: Calidez e Inocência
O frescor da manhã refletia-se na brisa suave que acariciava a relva ainda molhada. Pequenos pés saltitavam em meio ao capim selvagem,pequeninas mãos colhiam flores multicores, pequenos olhos de olhar estrelado procuravam aflitos por outros olhos que a acompanhavam atentamente.
Tinham-se passado alguns anos desde que Rikku nascera, e ela estava saudável e forte.A alegria em seu semblante era fruto da inocência com que só a ignorância presenteia a alma humana.Não havia preocupações, nem indagações metafísicas,apenas sinceridade, delicadeza e sensibilidade ainda em estado puro.
Rikku parou diante do lago que lhe concedera seu nome, e uma pequena voz saiu de sua estreita garganta:
-Mamãe! Mamãe!Vem cá !
Altas e esguias pernas se aproximaram, e a mão grande envolveu a pequena.
-Sim, minha filha.O que foi?
-Mamãe, esta que está no lago não sou eu !
-Não,filha?É o reflexo da sua imagem, querida.
-Não sou eu! Eu estou à beira do lago, não dentro dele!
-Você está enganada, filha. Não existem duas Rikku, apenas você, e seu reflexo, é como no espelho, você não se vê no espelho?
-Não mesmo? E esta que está em sua barriga?E depois, aquela que vejo no espelho também não sou eu, pois eu nuca estive dentro do espelho. Mas já estive na sua barriga, então eu estou nascendo outra vez! Eu estou sempre nascendo, mamãe!
Aquela moça, de mais de trinta anos de idade, abraçou então a menina.
-Ah, Rikku! Como você é inteligente!
A mãe estava pensativa, havia muito de simbólico no que Rikku dissera.E ela entendera perfeitamente o que a filha tinha querido dizer com aquilo, e emocionou-se.
A calidez do lago lhe dava uma sensação de paz e tranqüilidade.Sentia-se então mais viva do que nunca. A diferença, porém entre ela e Rikku, é que a menininha viva tudo aquilo sem ter uma consciência plena de si mesma, sem ter preocupações na vida.
Episódio 5: Magnânimidade
Calor. Calor intenso era o que se sentia, enquanto as chamas percorriam os pântanos em meio ‘a desolação que se via, chamas que consumiam também uma cidade inteira, dali muito próxima.
Fogo, sangue, suor,corpos putrefatos, odor insuportável, destruição, consternação.Sotto ardia como que em febre, reflexo de um mundo doente.
As poderosas e burocráticas forças imperiais assistiam ao triste espetáculo daquelas paragens de morte.
O vento ,qual entidade de braços de fogo, espalhava ainda mais a destruição,levando a desgraça para onde quer que ele apontasse.
Restava o vazio , a falta de esperança, dos poucos moribundos que ainda teimavam em não sucumbir a pressão da extinção,mas todo seu esforço para tentar continuar vivendo parecia a eles próprios ser em vão.
A fome de vida das chamas que dançavam sua valsa ardente parecia inesgotável, e a fumaça exalada tão céleremente parecia que a tudo cobriria inevitavelmente.
Quanto mais as chamas se agigantavam, mais alto era o ranger de dor da velha cidade de Sotto, cujas casas queimavam em profusão.
Eis que então surge um vulto em meio às chamas.
Esta sombra avassaladora dirigiu seu olhar para alguém que jazia em meio às brasas, ainda viva, mas mal respirando.
Era uma mulher ,e ainda que toda marcada por queimaduras, permanecia linda.Seus cabelos eram de um negro brilhante, ainda que chamuscado, seus olhos azuis brilhavam como diamantes, e lágrimas corriam deles.Semi nua, com o vestido parcialmente consumido pelo fogo e muito rasgado,exibia um corpo de sonho.
O vulto a pegou nos braços, e emergiu das chamas.
Tal era seu tamanho , que assustou os soldados.
O Gigante segurou a garota com um braço e levantou o outro, em cuja mão estava uma enorme e refulgente espada.
Da arma um raio poderoso emanou, e afastou as chamas de seu dono poderoso.
Foi quando, em meio ‘a tanta dor ,os olhos da moça se fecharam para sempre.
O Gigante deixou cair a espada, e levantou a sua amada acima da cabeça e um brado ecoou:
“-Nãaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaao!”
Em desespero, o Guerreiro chorava.
Caiu de joelhos e a colocou no chão, mãos no rosto.
“-Tanto poder, e não consegui salvá-la...não mereço viver, eu falhei, falhei, falhei completamente...”
Pensava o gigante consigo mesmo, enquanto sua angústia continuava a lhe atormentar:
“Eu não podia falhar, não podia, ela dependia de mim, oh, Ciris, eu a decepcionei, não é mesmo?Fui incompetente, impotente, cheguei tarde demais,falhei...como posso me perdoar, se jamais me perdoarás?”
Era o que ele sentia, amargurado, arrependido, desolado.
O sangue dela ainda pingava de suas mãos quando ele súbitamente olhou para os soldados atônitos, e então, o gigante,que não sabia mais se vivia ou sonhava, pesadelo que jamais terminava, sofrimento continuado de toda uma vida.
Agora toda aquela desolação se tingiu de vermelho, e ele se pôs de pé, depois de empunhar a espada.
Seu semblante súbitamente mudou de consternado para colérico, e aos brados, avançou contra os soldados num ataque avassalador e histérico.
Atravessou o pântano com fúria assustadora, demonstrando uma energia incontível. Os raios eletromagnéticos de sua espada afastaram as balas de seu corpo, tornando inúteis as armas dos soldados.
Frenesi de sangue se abateu sobre o exército imperial.
Uma multidão sem rosto se abateu sobre Gigas, o guerreiro gigante, que desapareceu sob tamanha pressão.
Um único soldado se aproximou do corpo sem vida de Ciris, e abriu o ventre avantajado da moça, e de lá saiu um bebê, ainda com vida.
Espantado com a beleza cândida e inocente daquela nova vida que irrompera diante da destruição,o soldado tomou para si o bebê em seus braços fortes, enquanto grossas lágrimas abriam caminho em meio ‘a sua barba cerrada.
-General ! Gritou o soldado.
-Sim, soldado?
-É uma menina, senhor. Quero me apossar dela.Gigas deu a vida dele para protegê-la, e a mãe dela também, e eu...minha mulher não pode ter filhos, senhor, e eu..eu sempre quis ser pai!
-A filha do nosso inimigo é nossa inimiga, soldado Tarkis.Mate-a.
-Sinto em ter de desobedecê-lo, senhor, pode me punir, mas eu acho que ela merece uma chance de viver, já que eu a trouxe ao mundo por piedade, e a vida dela já custou tantas vidas assim.Eu ofereço minha própria vida, para que a vida desta criança seja poupada.Eu vou criá-la como se fosse o pai verdadeiro dela,e vou criá-la e educa –la nos preceitos do Império, então ela será um dia uma importante aliada, senhor.
-Então, que assim seja. Vejo que ser magnânimo não é privilegio somente dos nobres, mas dos nobres de alma e coração.
-Obrigado, meu senhor. Doravante o nome dela será Nimitris,aquela que veio do fogo!
E foi assim que se originou a velha lenda da Filha das Chamas, aquela que jamais se rendeu.
Episodio 6 : O Dilema e a Fera
Mitthu acordou ao raiar do dia. Mais um dia para viver, mais um dia para fugir, mais um dia para sofrer, mais um dia para continuar o que aos poucos ocorre desde que se nasce : morrer.
Quando Mitthu abriu seus olhos,no entanto,notou que não estava mais na escuridão da Floresta, mas em um Vale, próximo da mata em que tinha se enbrenhado anteriormente.
Podia ouvir o som das águas límpidas de um rio, e as bestas voadoras a gritarem entre as Montanhas que cercavam o vale.
O vento da manhã acoitava sua pele,lanhava seu ânimo e congelava sua motivação.
Foi então que percebeu uma sombra aproximando-se dele.Nao era uma sombra qualquer, era gigantesca, e a insegurança que Mitthu sentia a tornava ainda maior.Ele logo encolheu-se em posição fetal.
-É esta a coragem e a nobreza de coração dos Soldados do Imperador de que tanto ouvi falar?
A voz vinha da sombra, e para Mitthu, mortificado de pavor,parecia trovejante e assustadora.Engolindo em seco, o soldado respondeu tiímidamente:
-Quem é voce?
-Trata-se de uma excelente questão esta que você levantou.Alguns me chamam de Besta Fera, outros de Monstro do Vale,outros ainda já me chamaram de Morte.Nenhum deles sobreviveu,por isto é que todos que aqui chegam jamais retornaram.Eu mesma prefiro me chamar Voihuu,a Predadora.
-Estou então no Vale da Fera! Então, estou mesmo morto !
-Ainda não. Eu o encontrei caído na floresta vizinha ao vale, e o resgatei de lá, para que as outras feras não o devorassem.
-Então,você salvou minha vida! Por quê?
-Por que sou cruel, meu caro soldado.Mas, eu te pergunto: terei eu salvo mesmo a sua vida?
Mitthu tinha no rosto a pura expressão da angústia, de não so´entender o que ela dizia,como tambem não saber o que responder.
O vento gelado soprava com força , ondulando a densa pelagem de Voihuu.
O Sol aparecia ainda tímidoa lua branca ainda podia ser vista, em contraste com o espetáculo de cores que se descortinava para eles, e o brilho dos raios solares que inundavam as campinas de relva verdejante que oscilavam qual maré,sob o efeito do vento cortante como faca, que castigava a pele nua do torso de Mitthu,com seu rosto contorcido de agonia.
O soldado então ergueu a cabeça e lá estava a Fera, bem próxima:ela alcançava tres vezes a altura de um homem médio,era humanóide,ficando de pé nas patas trazeiras, que lembram muito a dos ursos,mas as dianteiras lembravam mais as de um gorila.A cabeça lembrava a de um felino, e os caninos em forma de sabre ,com cerca de quarenta centímetros de comprimento, saíam para fora da boca.As orelhas, no entanto lembravam mais as de um elefante, mas proporcionalmente menores.Os olhos eram grandes e verdes, e brilhavam como esmeraldas, em contraste com a pelagem de um azul bastante escuro.A cauda era fina e serpenteante, longa, e lembrava a de um grande felino.No entanto, o torso se afinava a meio caminho entre as omoplatas e a bacia, como nas mulheres, e como nelas, seios grandes e redondos, muito peludos, com excessao dos mamilos rosados e grandes.
Na região pubiana os pêlos se tornavam ainda mais densos e bem negros.
Da cabeça, e entre as orelhas, uma cabeleira negra , lisa e sedosa descia até as nádegas, que eram de proporções generosas.
Tanto as mãos , como os pés, terminavam em garras muito compridas e afiadas, mas estas eram semi retráteis, e se recolhiam parcialmente para dentro, quando não estavam em uso.Sendo assim, quando recolhidas, pareciam muito menores e menos temíveis.
Os dentes eram especializados em dieta carnívora,e todos eles, assim como a própria cabeça em si, eram grandes e volumosos, tanto quanto os músculos de mastigação e o cérebro, com aproximadamente o mesmo tamanho e complexidade do humano.
A musculatura era pelo menos duas vezes mais poderosa do que a de um Urso polar.As pernas, no entanto, ficavam constantemente meio dobradas, acumulando energia, e ainda que o andar fosse desajeitado,ela podia correr muito , tanto em duas como em quatro patas,e saltar com grande agilidade, apesar de suas duas toneladas de peso.
Voihuu então sorriu um sorriso tétrico, com um quê de autoconfiança e uma segurança sinistra.Todos os dentes estavam ali, 'a mostra,enormes,prontos para estraçalhar o que bem entendesse.
-Você não me parece muito autoconfiante, meu caro. Como você se chama?
-Mitt...Mitthu!
-Huuum, então este era seu nome.Espero que você tenha aproveitado bem sua vida, Mitthu, pois está 'a ponto de perde-la.
As garras das mãos da fera saltaram para fora.
-Espere! Por que quer me devorar? Se assim o quer, porque me poupou até agora?
-Salvei sua vida para depois tirá-la, pois sou cruel.Na verdade, não estou com fome agora, mas estou com vontade de matar.
-E qual o sentido de matar?
-E qual o sentido de viver,Mitthu?
-Não há sentido em viver,se a morte se inicia com o nascer.Mas não há sentido em morrer, também.Por que nada pode ser eterno?Porque tudo é cíclico?
-É um ciclo virtuoso ou vicioso? Já me perguntei muito a este respeito também, Mitthu, e nunca achei a resposta. Mas , gostei de você.Você é inteligente. Entao lhe digo que nada pode ser eterno,mas no fundo, justamente tudo é eterno.Eternidade é uma repetição de ciclos de modo interminável,tudo começa onde tudo termina.O Porquê disto para mim é um mistério.
-Um mistério é um dilema a ser descoberto ou que não tem solução, Voihuu?
-Eis outro ciclo! Um mistério é um dilema porque ainda não foi descoberto e ainda não foi descoberto porque ainda não se achou a solução.Mas que pobreza de raciocínio a humana, achar que tudo pode ser descoberto ou solucionado.O que apavora o Homem é a falta de solução. Para vocês, o aterrador é constatar que para certos mistérios simplesmente não existe solução alguma, e a inexistência de soluções é a própria solução do mistério.Ele existe por si mesmo, não para o Homem.Tudo existe porque existe, não para ser entendido.
-Isto é natural, como os demais fenômenos naturais, os instintos?
-O que é ser Natural para você? Considerar que tudo o que não seja humano nem fabricado pelo homem é natural, é ser presunçoso.Tudo é natural. E por falar em instinto, saiba que sou uma das últimas da minha espécie.Entao, é hora de um outro instinto, que me leva 'a poupar sua vida mais uma vez,ao menos por enquanto: a reprodução.
-Mas somos de espécies diferentes!
-Diferentes em espécie e gênero, mas iguais em instinto.E depois, quem disse que quero ter filhotes? Afinal, ser cruel também é fazer sofrer! E porque não explorar a ambigüidade humana, dor e prazer?Enfim, é uma ordem!
Episódio 7: Subúrbia
Caos.Total desorganização , ordenação desvairada, fractal,confusão.
Pessoas, multidões, rostos sem rosto, faces sem expressão, expressando suas angústias,borboleteando em meio 'a vidas sem sentido.
O vento frio irrompe pelas largas avenidas, frio que reflete a desumanidade espelhada na impessoalidade profissional das ruas e avenidas iluminada por gases luminosos frios como a própria subúrbia.
Veículos circulam em alta velocidade, pressa de se chegar a nenhum lugar, não há um objetivo,nem sentido.Placas, números,textos,pessoas estampadas,consumo.Todos estão ocupados com suas próprias vidas, seus pequenos problemas.
Mas esta é apenas a superfície.Como as galerias pluviais da cidade, nela há um fluxo subterrâneo e subconsciente de sentimentos e emoções aprisionados, que se escondem em meio 'a desolação da frustração.
Por trás dos edifícios o Sol se põe e nasce,o arco íris brilha, mas ninguém os vê.Por trás dos rostos, decepção continua, angústia de se ter sonhos tão carinhosamente acalentados que ficam a cada novo dia mais distantes.
Por dentro dos veículos e de sua pressa,uma fome de viver,uma noção barata de amor,solidão.
Por trás da Subúrbia ,grande e poderosa, por trás do brilho néon cegante, mas gelado, a esperança conduz todos a lugar nenhum, e nega sua própria impossibilidade de existir.
Por trás da Subúrbia, grande e poderosa, ou melhor, por baixo dela, se esconde a pequenez humana e suas limitações, estampadas a cada novo dia em cada rosto aparentemente conformado.
Por trás da Subúrbia,grande e poderosa,se esconde o Poder corrupto, a riqueza da Elite como contraponto da massa uniforme e indistinta e sua falta de identidade.
Por trás da Subúrbia, grande e poderosa,enfim,está a grandiosidade da miséria humana, em todo seu drama e pungência, para a qual a multidão sem rosto e sem dignidade sucumbe qual gado, e qual gado é tangida pelas regras ditatoriais da Sociedade de Consumo,a própria Subúrbia, que faz de sua miséria sua grandeza e opulência.
Quem está 'a margem dela, como Uthuu, a pedinte,sabe bem os segredos da Subúrbia,pois os sofre em sua pele arrepiada de frio e o vento gelado que corre com os veículos pelas avenidas espelhando a frieza da indiferença humana, impiedosa e cruel.
Uthuu já perdeu a esperança.Nao espera mais da vida nada além do que morrer.Ainda jovem, sua pele feminina tão maltratada e rija,ressente-se da falta de calor humano, e clama por carinho, cuidado e proteção, sonhos outrora tão acalentados, mas agora perdidos, jogados fora em meio ao labirinto infinito de ruas da cidade.Os olhos verdes estão sem brilho, e os cabelos morenos estão duros e ressecados.A s roupas estão rotas e os pés endurecidos de frio não tem nada para vesti-los e aquecê-los.
As mãos trêmulas tem unhas quebradas e enegrecidas por maus tratos.
Uma sensação de imensa fome devora seu abdômen.Fome não apenas de alimento, mas de falta, saudades, solidão,e a mente sabe, não adianta refugiar-se no passado, ele é medonho, e mais assustador do que a própria madrugada congelante que ela tem de enfrentar todos os dias.
O nada que possui é constantemente usurpado, e ela sabe, que mais uma vez, quando a noite chegar, como ocorre todo santo dia, ela será mais uma vez estuprada.
O respeito, o amor, a dignidade, o carinho , o conforto, são sonhos distantes.
Então um dia, Uthuu olha para o céu,pela primeira vez em sua vida.
Mesmo ali, entre os prédios,em meio a todo o frenesi louco e vazio da Subúrbia,em meio 'a tamanha multidão sem rosto, um pedacinho de Arco Íris aparece depois de um pouco de chuva.
O rosto dela se ilumina.O que ela vê lhe parece um sorriso, franco, iluminado, carinhoso, colorido, como seu sorriso estampado com dificuldade em sua face tão sofrida.Lágrimas brotam de seus olhos de brilho estrelado, e ela salta no ar,levanta as mãos e grita:
-Que lindo !
Episódio 8 : Imensidão
Por ali, não havia nada. Nada andava, nada voava, tudo apenas flutuava.Abaixo, a massa quase infinita que tentava puxar tudo acima dela para baixo.Acima, a massa quase infinita que tentava puxar tudo para cima.
Entre Céu e Mar, uma pequenina embarcação lutava para se manter a tona.
A grandiosidade da Natureza se espelhava nas ondas que varriam a superfície, com sua turbulência feral,e como contraponto, a resistência férrea e ferrenha do pequeno se humano que se apegava 'a vida com desespero.
Marthuu, o pirata , tinha sido traído.E a Natureza agora também o traia, como se já não o bastasse sua própria gente.
Traição espelhada na Imensa Ira Natural, com uma tempestade de dimensões colossais, se formando ao longe, e por detrás,um furacão monstruoso açoitava o mar com sua fúria, avançando em direção ao pequenino barco em toda a sua célere e avassaladora ira.
Marthuu sabia o que estava por enfrentar, e tinha a dor da consciência da impossibilidade de fugir, da inevitabilidade do desastre iminente,e sua consciência lhe atormentava avisando-lhe que era a própria Morte que estava se aproximando.
Ainda que tendo sido seu passado tão desastroso e cruel, ainda que tenha penado tanto assim, ainda que vislumbrar o passado lhe trouxesse tanta dor,ainda que tenha tido tantas derrotas assim, ainda que fosse um reles marinheiro ,pirata, escória do mar,ainda que tão insignificante assim, ele não se rendia.
Lá vinha o furacão, e as ondas estavam gigantescas, e sua vela já tinha sido destruída há muito,e seu tamanho descomunal, com seus ventos ululantes e assustadores,e Marthuu, ainda que quase morto de fome e sede, e cada vez mais assustado com a monstruosidade natural que se aproximava, conseguiu erguer-se com dificuldade, e se agarrar firmemente ao mastro, e gritou a plenos pulmões, peito cheio de orgulho:
- Você não vai me derrotar! Eu não vou morrer!Quanto mais a Natureza se revolta, mais o Homem triunfa !
O furacão chegou, e envolveu o barquinho e Marthuu num turbilhão de dimensões inimagináveis, tragando tudo o que estivesse em seu caminho.
Enfim, a Natureza não o ouviu.
Episódio 9: A Horda e a Criança
Era chegada a época das chuvas nas planícies.
Pequeninos pés tamborilavam as poças dágua, correndo com espontaneidade.O vento, sempre ele carregava as gotas de água, qual lágrimas,em uma dança frenética para todos os lados, desordenado como tudo o que é natural.O Céu via-se rasgado pela dança poderosa e magistral dos raios e relâmpagos, e era o céu quem parecia acumular uma tremenda pressão sobre a terra e todos que nela habitassem, como que se tivesse a intenção de esmagá-los.Tudo isto regido pelo rufar dos trovões que atormentavam os ouvidos, e apregoavam o Poderio da Natureza,como que para se afirmar perante o Homem sua superioridade sobre este.
Mas Rikku ainda era uma criança inocente, aos sete anos de idade, e não se importava com nada disto.
A expressão em seu rosto era de um profundo júbilo, uma alegria intensa, saída diretamente daquele coraçãozinho que batia apressado, na ansiedade natural de toda criança.Ela tinha sofrido muito com a seca, como seus pais, e agora comemorava a volta das chuvas encharcando-se até a medula.
Desde muito pequena ela já tinha se revelado de uma inteligência acima do normal,e ela parecia ter uma sensibilidade intrínseca 'a sua natureza, percebendo com facilidade cada emoção, cada estado de espírito, de maneira muito intensa.Quando chorava, chorava como se a raça humana tivesse chegado ‘a sua extinção, quando ficava triste se deprimia tão profundamente que se encolhia num canto em posição fetal, absolutamente calada, mas não sem antes passar por uma fase de choro tão intenso e convulso que chegava a ser preocupante.Quando ela estava alegre como agora, não se continha em si,e entrava numa euforia tão absoluta que quase parecia estar num transe induzido por drogas.Acima de tudo , ela se isolava em si mesma, brincava consigo mesma,e 'as vezes simplesmente ignorava os pais, tão absorta que estava em se ocupar de sua própria e poderosa imaginação.
Então se ouviu um trovejar diferente.
Não parecia vir do Céu, mas da própria terra, e a cada vez ficava mais próximo. Os pais de Rikku ouviram, procuraram-na em casa e não a acharam, ficando então extremamente preocupados.Comecaram a procura-la nas campinas, e não a achavam.Seus gritos eram freqüentemente abafados pelo trovejar cada vez mais próximo, que se denunciava também por ondas de água que se esparramavam pelas planícies de capim.
Enquanto isto, Moruu, o Giganotério, liderava sua horda pelas pastagens verdes, seguindo as tempestades.Os Giganotérios eram animais de grande porte, que lembravam muito Rinocerontes, mas com pernas mais compridas,zebrados de verde e branco,cabeças menores e pescoços mais longos, e uma cauda longa que acabava se afinando como um chicote, e era usada como tal para se defender de predadores, e tinham galhadas parecidas com as dos Alces na cabeça.Tinham cinco metros de altura nas espáduas, embora, com o pescoço levantado ao máximo, posição pouco usual, pudessem atingir sete metros e meio; por dez de comprimento se contada a cauda, que usava quase a metade deste comprimento,e pesavam cerca de oito toneladas, em média.Mas eram muito ágeis para o seu tamanho,e conseguiam galopar a até quarenta kilometros por hora, por dias a fio.Eles procuravam por um Vale, que ficava depois das montanhas além daquelas planícies.Todos eram herbívoros, mas eram especializados, gostavam de comer flores que só cresciam nos Vales, por isto, sazonalmente migravam de Vale em Vale.
E estavam absolutamente famintos.E Moruu sabia que tinha de achar o próximo Vale logo, pois não podiam pastar gramíneas, pois a sílica destas era um veneno para o metabolismo deles.
Neste interim, Rikku, já distante da sua casa no meio das planícies, ia de encontro ao tropel que agora já se ouvia bem próximo.
Uma verdadeira horda, um batalhão de feras unguladas se aproximava,eram milhares, dezenas de milhares,e o chão tremia e chocoalhava diante da pressão de milhares de toneladas que se espremiam e se chocavam entre si.
Mas Rikku não se importava. Queria ver o espetáculo da vida de perto, intensamente admirada, e não haviam nela nem medo nem insegurança,só um largo sorriso da mais plena alegria.
Enfim a horda chegou, e as bestas passavam todas muito perto dela, que sequer se desviava, e não conseguia conter sua admiração.Uma delas, em meio ao tropel furioso, abaixou a cabeça e apontou-lhe os chifres, olhando com segurança para a menina extasiada.
O olhar da menina foi penetrante,magnético,impressionante por sua profundidade e força. Era um olhar indomável, de liderança e superioridade,impenetrável, mas ao mesmo tempo de uma doçura e inocência tamanha, que o Giganotério levantou um pouco sua cabeça, e a menina agarrou-se nos chifres dela, e num ágil golpe malabarístico, subiu no lombo da fera e agarrou-se ‘a crina dela, cavalgando-a.
O galope continuou, e as bestas prosseguiram em sua marcha em meio 'a tempestade, os raios avassaladores, e os trovões ribombantes.Entao, quando estavam ao sopé das montanhas, uma outra horda os esperava.
Era o Exército Imperial, que via ali uma chance de abastecer-se de comida por um bom período.Milhares de homens montados em deinohippus,animais muito parecidos com cavalos, e de porte semelhante,mas com chifres ao estilo de rinocerontes, e caudas musculosas e fortes, conhecidos pelo mau gênio e péssimo humor, avançaram sobre a horda, municiados de fuzis lazer de alta cadência de fogo e grosso calibre.
O que se viu então foi um massacre.A confusão se fêz, e o desespero tomou conta da manada inteira.
Rikku percebeu o que estava acontecendo mais 'a frente, e freou a besta na qual montava, antes que fosse tarde demais.Só ela ficou parada, e todas as outras entraram no funil mortal, e os cadáveres iam se empilhando uns em cima dos outros.
Muitos animais enfurecidos se atiravam contra os soldados, matando muitos destes e muitos deinohippus também.
Enquanto assistia ao espetáculo de sangue, em meio aos relâmpagos e trovões, e os raios ensandescidos, Rikku chorava de modo intenso.
Sentia em seu coração a dor da manada, e a dor igualmente penosa da sua impotência diante de tamanha carnificina, de tal covardia, chorava convulsamente ao ver as lágrimas dos filhotes que perdiam os pais e depois eram mortos impiedosamente.Chorava ao ver as dimensões da crueldade que a ambição e a estupidez humanas podiam chegar,e pensava no que o Homem tinha se tornado.Jurou para si mesma um dia vingar a morte daquela manada.
Mas mesmo assim sua dor continuava, e seu choro persistia, pois vinha do fundo de seu coração, em ondas tão poderosas quanto o poderio da insanidade humana.O que a revoltava ainda mais é que os adultos apregoavam que sua loucura, sua insanidade era lógica e racional, e que ela um dia deixaria de ser uma criança para se tornar “lógica e racional,madura” como eles.Se aquela bestialidade toda era ser madura, ser adulta, ela não o queria ser.A revoltava também o fato de que ela estava envelhecendo, e que um dia ela seria adulta, mas não iria querer se reconhecer como adulta diante de si mesma, como ela não reconhecia que a imagem no lago era a sua própria. A imagem dela adulta não seria a dela.A criança de sete anos deveria viver para sempre, convivendo com o adulto corpóreo.
O choque daquela realidade tão revoltante lhe impressionou tanto, que lhe marcou pelo resto da vida.Ela nunca mais esqueceria aquele dia.
O dia em que desmontou do Giganotério, e viu nos olhos dele a tristeza de ter sobrevivido,ter sido o último sobrevivente, de ter visto a todos que conhecia morrerem,de ser talvez o último de sua espécie,de testemunhar a extinção de sua própria espécie,e suas lágrimas comoveram a menina , e muito, e ela chorou na galhada dele,compartilhando profundamente a dor dele.
Um último olhar,e nele Rikku percebeu a gratidão da fera por ela ter salvado sua vida,e ao mesmo tempo, a dor e tristeza da despedida.
Fera e menina se separaram, e a chuva por fim terminou.Parecia que cada uma estava de um lado do Arco Íris,ligados para sempre pelos laços de uma amizade eterna, símbolo maior da dor compartilhada e piedosa,ambigüidade humana:no mesmo dia viu-se até onde a crueldade humana pode chegar, e até aonde a piedade e generosidade humanas podem chegar.A mesma mão que bate, é a que acaricia...
Por continuar