O ENVIADO -Parte III e conclusão-

(Continuação e conclusão...)

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Os sensores nada assinalou de vivo, e por isso ele penetrou relativamente descansado naquela abertura, a menos que…Bem nem os esgotos nem as célebres catacumbas romanas eram conhecidas por estarem armadilhadas…

Estava à espera de encontrar um compartimento relativamente pequeno, e foi por isso com grande espanto que encontrou uma enorme sala com diversas divisões. Em tempos vira imagens das catacumbas de Roma, e o que via agora correspondia a essas imagens, mas essa sala era de facto enorme: a primeira divisão era constituída por uma sala que tinha a meio uma espécie de mesa de pedra, depois seguia-se outra sala que parecia uma espécie de dormitório por ter restos de colchões. Ao todo eram cinco. Nessa mesma sala metal ferrugento com o tamanho de uma panela que a uma primeira nada seria, mas que aos olhos de treinados Gabriel lhe parecera vestígios dum antigo fogão a gás, reforçado por uma busca mais aturada que descobriu uma botija vazia; eram coisas com vários, muitos anos, pois actualmente ninguém os utilizava…Gabriel reconhecia tal pelas fotos da infância dos seus avós paternos em que as férias eram passadas em parques de campismo, onde, para se poupar algum dinheiro se cozinhava no local. Esse material estava confinado hoje a museus, e não fosse a sorte do investigador em ter visto as tais fotos vezes sem conta não se teria apercebido que aquelas catacumbas tinham servido de habitação, há já uns bons anos…Depois desta divisão havia uma arcada que levava a outra, bem mais pequena e algo misteriosa que se assemelhava à casa de guardas por ter as cadeiras típicas desta e um compartimento com grades; uma análise mais cuidada ao metal das grades deu a indicação a Gabriel que estas eram mais recentes do que as catacumbas por mal estarem enferrujadas, ou seja parecida que a prisão era uma adaptação, uma improvisação…A reforçar isto estava…uma das maiores descobertas das catacumbas…Caído, a ao lado de uma das cadeiras, parcialmente escondido por esta estava um pequeno livro de apontamentos, em péssimo estado…Capas negras, amarelecido pelo tempo e pela humidade…Teria de ser analisado com calma, tanto aos seus olhos, como num laboratório de confiança…Mas Gabriel não resistiu em dar uma olhadela ao seu interior…Mas apenas uma folha intacta com uma série de letras incompreensíveis…MCMLXX-MMLXX e DL outra vez o maldito “DL”.

No exterior da cela estavam restos de tabaco…Observou melhor as beatas degradadas e reparou que elas teriam muitos, muitos anos…Para um fumador como ele era fácil de verificar, mas para um investigador, mais fácil ainda…Reparou que as beatas tinham a marca do tabaco no filtro…Não a conhecia…Ligou o seu micro-computador e colocou o nome na sua base de dados e fez uma busca: teve a resposta em poucos segundos: a marca existira em Itália desde meados do século XX até aos meios do século XXI, depois fora à falência…Ou seja, elas tinham no mínimo cem anos…Quem quer que ali estivesse preso estivera presumivelmente nesse espaço de tempo, podendo os anteriores moradores terem estado lá muito tempo antes, e por qualquer motivo desconhecido terem saído antes do guarda e do prisioneiro…Ou seja, aquela catacumba poderia ter passado de habitação a prisão…A ausência de vestígios dos anteriores moradores impossibilitava que ele pudesse corroborar esta sua teoria…Voltou à cela e examinou-a com o cuidado possível do seu cansaço e do adiantado da hora: o sol começava a nascer, mas Gabriel queria resolver o assunto ainda naquele dia que despontava…Além do resto dum colchão nada…aparentemente…Aguçou ainda mais os sentidos e a sua visão treinada…Verificou todas as marcas, todos os recantos, e num dos cantos, praticamente invisível a olhos comuns estava algo que se parecia com uma marca de sujidade mas não…Em Inglês do século XX estava escritas a carvão uma palavra que não conseguiu saber o significado e numa língua que não conhecia…e outra palavra que não conhecia sequer a língua…Passou o scanner sobre ela e introduziu-a no seu computador, indo ao seu dicionário que possuía todas as línguas conhecidas, e a resposta veio-o de forma algo surpreendente: a palavra queria dizer “luz” em aramaico, a língua falada na Palestina no tempo de Cristo, ao contrário do que se pensa ter sido o hebraico…(pelo menos esta era a informação do dicionário…). Sem compreender o porquê de tal, traduziu a frase: “ O irmão Roger espera por nós” e depois novamente DL…

“Que se lixe o tempo!” Esperaria novamente pela madrugada para dali sair, mas até lá pensaria naquela frase que reconheça partes…

“Irmão Roger” Ouvira isto em tempos, só não sabia onde…Foi então que se recordou duma história antiga de Patrícia, de um antepassado seu e que passara na sua família católica de geração em geração bem como alguns textos que ele tinha feito…e que Gabriel, espírito picuinhas guardara no seu computador não fosse o caso de precisar delas…Fez outra busca e apareceu um texto…

“Taizé, Agosto de 2005

Um dia, daqui a 1000 anos vão dizer que um homem bom foi assassinado numa Igreja

Existe mais ou menos a meio de França (a cerca de 400 km de Paris) desde há aproximadamente 60 anos uma comunidade religiosa de caris católico fundada pelo irmão Roger, mas que se caracteriza pelo seu ecumenismo e multiculturalismo. Durante praticamente o ano inteiro lá são aceites jovens e alguns adultos de ambos os sexos durante períodos que variam de uma semana a 1 mês. Pagam uma quantia simbólica pela estadia, mas também trabalham em diferentes tarefas através das quais permitem o funcionamento da comunidade. Existem espaços de oração e de reflexão, mas sobretudo o objectivo da comunidade é uma certa interioridade, reflexão que atrai pessoas de todos os credos, ou sem credos como é o meu caso. Os irmãos que presidem a este espaço não aceitam qualquer tipo de donativos, sendo que a comunidade é sustentado pelo seu trabalho ou por produtos que se vendem lá quase a preço de custo.

Não é raro existirem mais de 7 mil pessoas a conviverem sem qualquer tipo de distúrbio.

Há noite há um espaço de convívio onde o álcool é controlado, não sendo permitida a ingestão excessiva de bebidas alcoólicas e vedado o uso de drogas. Das 21;15-23;30h convive-se intensa e saudavelmente com pessoas de outros países, sendo que os laços lá criados chegam a durar a eternidade das nossas vidas e reforçar a solidariedade entre as nossas nações. Eu, um boémio assumido confesso que algumas das melhores dias e noites que passei na vida foram em Taizé, e apesar de gostar de me deitar tarde, quando chega a hora de recolher faço-o sem grandes dificuldades, pois afinal há que acordar cedinho para trabalhar para o bem da comunidade.

No dia 16 de Agosto de 2005 aproximadamente pelas 21h houve uma morte numa Igreja

Não foi uma morte qualquer.

Este acto hediondo foi perpetrado por uma mulher perturbada que esfaqueou um homem notável, o líder e fundador da comunidade de Taizé, o irmão Roger, um ancião na casa dos 90 anos.

Não havendo segurança policial foi detida numa sala onde era perfeitamente visível e depois esteve algumas horas num carro de polícia(entretanto chamada) à vista de várias centenas de pessoas. Apesar da revolta e da enorme dor, não houve qualquer tipo de acto hostil contra a assassina. Por toda a comunidade nas horas, dias, anos seguintes viveu-se uma enorme calma e tranquilidade, exemplo do espírito de Taizé para a humanidade.

Eu estava a apenas algumas dezenas de metros da Igreja e indirectamente vivi assassinato (alguns amigos meus estavam perto do irmão e assistiram a tudo) e directamente os acontecimentos que se passaram a seguir. Sofremos como irmãos e como irmãos ultrapassámos a morte, uma lição que ficará para o resto das nossas vidas, por muito curtas ou longas que estas sejam.”

Era isso! O antepassado de Patrícia, era um agnóstico-crente (como o próprio se gostava de auto-intitular) que descobrira Taizé em busca do seu Deus. Mais tarde saíra de mais uma visita à comunidade desiludido e tornara-se em Ateu, mas isso é o que menos interessava pois o seu rasto perdera-se no tempo depois de publicar alguns livros e de ter morrido sem descendência directa.

Gabriel sabia que Taizé ainda existia, com menos fulgor que antigamente, mas continuava a existir…Mas em finais do século XX “eles” quiseram lá ir, sendo “eles” os hipotéticos companheiros do prisioneiro antes deste o ser…Ou seja, por alguma razão “eles” tinham saído da catacumba antes de surgirem os guardas e de feito o prisioneiro, sendo que este deixara escondida uma mensagem que datava de antes da morte do Irmão morrer em 2005, ou o prisioneiro ignorava de todo a morte do Irmão…mas o que queria dizer afinal “DL”?

Que estúpido, que burro! Como é que não se recordara antes?

Inseriu “DL” na sua base de dados aparecendo-lhe uma data de resultados…Mas o mais interessante foi uma das hipóteses ser a de estar perante números romanos, sendo que “DL” era 550…Procurou o livro que encontrara e inseriu os restantes números:

MCMLXX-MMLXX e queriam dizer: 1970-2070.

O quereria dizer aquela data?

A primeira coisa que lhe ocorreu foi que aquilo poderia ser um registo…Algo poderia ter ali estado de 1970 a 2070…Será que a prisão tinha servido nessa altura? E se sim porque não ter registos de prisioneiros, se aquele era de facto um livro?

Tinham já passado trinta e cinco anos desde a última data, muito ou pouco tempo de distância, mas talvez ainda suficientemente curto para investigar uma pista hipoteticamente fresca…

Precisava de uma análise mais pormenorizada do livro (inclusive a sua análise física efectuada no seu laboratório de confiança em Portugal), mas entretanto reparara pelas horas que o dia ia já bem alto…Era altura de regressar ao Hotel, de descansar um pouco, pois o seu corpo estava à beira do colapso físico, e depois continuar a investigação, (depois de analisado o livro) e algures em Taizé, pois decidira partir rumo a essa comunidade de maneira a seguir a pista dada pelo prisioneiro

Com o livro debaixo do braço, ele saiu calmamente. Apesar de ser a hora do almoço, não se via ninguém na rua, e o carro continuava no mesmo local onde o deixara, trezentos metros mais adiante. Confiante, trancou o esgoto, dando, por mero hábito uma olhadela em redor, para depois se dirigir ao automóvel. Quando estava a escassos três metros sentiu um pequeno, mas violento impacto no tronco.

-Merda! Balas, é o que me faltava-Pensou nos segundos que demorou a fugir para dentro do carro; infelizmente as munições utilizados pelo atirador eram inteligentes, isto é, dispondo de um sistema de orientação própria, desviavam-se de qualquer obstáculo para atingir o alvo. Um dos sistemas de orientação era à base de calor, por isso...Enquanto ligou o sistema de incêndio do automóvel ( espuma gelada e altamente eficaz) acelerou, tirou a máscara e a jogou-a pela janela, funcionando esta como isco, enquanto Gabriel pedia ao sistema automático de orientação para o levar o mais longe dali que fosse possível. Pelo espelho retrovisor pôde ainda ver, e para desespero do assassino, as munições a alojarem-se na máscara.

Pelo caminho verificou ter apenas uma pequena, mas dolorosa ferida que só não foi pior devido à rapidez dos seus reflexos, mas também ao colete que, por um dos seus habituais excesso de zelo teimara em levar. Infelizmente a ferida e alguns danos na viatura não foram os únicos prejuízos do ataque: no meio do tiroteio deixara cair o livro, por isso só lhe restou a alternativa de regressar. Parando alguns metros antes da rua, avançou calmamente. Nessa altura havia mais gente na rua e, nestas circunstâncias, o sniper só voltaria a atirar se fosse completamente louco, além do mais, Gabriel estava na sua pele, e por isso supostamente anónimo.

Passou discretamente a alguma distância onde fora alvejado e onde supostamente largara o livro. Vidros estilhaçados marcavam claramente o local, mas do livro, nem rasto...

Só lhe restava voltar ao Hotel e continuar a investigação, com a lacuna do livro…

Entrando o mais discretamente possível no Hotel (pois estava sem a máscara, dado a sobresselente estar precisamente no seu quarto) dirigiu-se ao quarto e, para seu grande espanto encontrou o livro em cima da cama…Intrigado colocou a máscara dirigindo-se à recepção perguntou se alguém tinha entrado no seu quarto.

O recepcionista mostrou-se indignado e respondeu-lhe de uma maneira surpreendente:

-“Signore” a única pessoa que entrou foi você, ainda não há coisa de dez minutos, entrou e saiu muito rapidamente, e eis que agora voltou…

Merda! Alguém tinha tomado a “sua” identidade e devolvera o livro, o mesmo tipo que quase o matara…Seria alguém que tivera a sua ideia de substituir Carlos? E com que intuito? E a querer matá-lo? E se assim foi, porquê?

Quanto mais avançava mais a coisa se complicava…

E a resposta certamente estaria (ou deveria estar…) no livro…

Mas antes de o ler era necessário telefonar a Barbara para ela não começar a estranhar a sua ausência…

Feito o telefonema, havia que analisar o livro, e depois, só depois dormir…

Não sabia se quem o alvejara (e hipoteticamente a mesma pessoa que lhe roubara e devolvera o livro…) tirara algumas páginas ou adulterara o seu conteúdo…Numa analise cuidada, as páginas estavam intactas, nenhuma fora arrancada, agora se o conteúdo estava ou não adulterado, nunca o poderia saber, pelo facto de só ter analisado a primeira página, estando esta intacta…

Surpreendentemente o resto do livro estava em branco, com uma excepção: um nome em italiano seguido das duas datas:

“Stefano Fantin” MCMLXX-MMLXX- DL

Ou seja

Stefano Fantin 1970-2070 - 550

Poderia ser a data de nascimento do prisioneiro e a data de falecimento, seguido do incompreensível 550…

Perfeitamente baralhado decidiu dormir um pouco à espera que aquele imbróglio se desanuviasse…Se bem que o ardor da ferida não desaparecia…Poderia ter ido a um hospital, ou clínica, mas estes eram obrigados a participar às autoridade ferimentos suspeitos, como era o dele…Paciência, no Porto iria a um médico conhecido que não lhe faria perguntas desnecessárias…

Em vão, quando acordou e depois de bem alimentado, o imbróglio não havia maneira de se desfazer…

Restava-lhe partir para Taizé, passando antes pelo Porto, onde iria mandar analisar o livro, bem como os restos da bala que o alvejou e que tinham ficado presa ao colete que lhe salvara a vida, e encomendar mais algumas máscaras, dado ter decidido assumir a personalidade do amigo que o protegia (ou será que não…?) mas também porque o cartão bancário que usava era dele…

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Da maneira habitualmente escondida, foi ao laboratório e pediu a análise ao seu material, além de mais alguns exemplares da máscara…

O tempo que iria demorar era um tempo útil, pois a marcação para Taizé deveria ser feita com um mínimo duma semana de antecedência, pelo que o fez e tratou do resto dos assuntos.

Foi também ao tal médico curar a ferida, e que lhe disse que esta não era fatal (como ele desconfiava de resto…) mas que iria demorar o seu tempo a sarar, pois parecia que quem o alvejara, das duas uma, ou o queria morto, ou queria incapacitado…A ferida poderia ou não sarar, o clínico não lhe soube dizer, só lhe disse que se sarasse tal iria demorar muito tempo e lhe iria causar um mau estado crónico.

Ao fim de alguns dias teve o resultado da análise: o livro tinha sido feito de facto no século vinte, ao que também correspondia a tinta com que estavam escritas as datas, os números e o nome nesse livro, nada que o surpreendesse, mas o que o surpreendeu foi a análise aos restos da bala:

“-É uma munição muito especial…”, disse-lhe o seu conhecido do laboratório.

“-Não se encontra propriamente à venda em casas da especialidade…foi feita por encomenda algures num armeiro clandestino e de alta tecnologia, pois uma análise ao microscópio não deixa ver as suas origens, como se quisessem apagar esse rasto que poderia ser comprometedor…Além de ser uma munição altamente avançada, ela só é usada por um tipo muito especial de pessoas: tropas especiais clandestinas (daquelas que sem autorização oficial dos governos executam operações inoportunas, mas necessárias…) ou então de um tipo de Investigadores como tu, mas Investigadores de Elite, o melhor que o dinheiro pode comprar…E não é tudo…Estas munições têm diversas versões, sendo que a que te alvejou tinha como ideia te incapacitar e não matar, senão, com ou sem colete eras um homem morto…Em suma, o tipo que te alvejou queria-te fora de acção para fazer não sei bem o quê…”

“Para ter tempo de me roubar o livro lhe dar uma espreitadela e o devolver depois, ainda estou para saber porquê…” Pensou Gabriel, mas sem o revelar ao técnico que fizera a análise pois isso só dizia respeito a ele próprio…

Restava-lhe pois preparar a sua mala e esperar pela ida a Taizé, tempo que ocuparia a descansar e a visitar Patrícia…

Mas quando ia a entrar no cemitério, e apesar das saudades da mulher, faltou-lhe coragem…Com ela sempre tivera um pacto de verdade que manteve até à morte, e por isso lhe faltou a coragem de a colocar a par dos últimos desenvolvimentos…Parece estúpido, mas ele receava que ela ficasse preocupada pela integridade física de Gabriel…Era só uma máquina, ele bem o sabia, mas afligia-o o facto de ver o seu olhar a temer por ele…Quando estivesse tudo acabado voltaria, voltaria á sua velha rotina de dor, voltaria com o caso resolvido, voltaria para morrer lentamente entre Patrícia e o seu velho mundo, voltaria, mas só depois de achar Carlos ou de resolver o caso, não antes…

Tinha chegado a hora de partir.

Era apenas mais uma viagem, mas Gabriel sentia que nunca mais regressaria.

Em Taizé Gabriel decidiu vestir a pele de um vulgar crente. Como pessoas com mais de 30 anos tinham dois períodos de reflexão (um de manhã e outro à tarde), o investigador ainda sob a identidade do amigo decidiu de manhã seguir as normas e dedicar as tardes à investigação.

Maravilhou-se com a beleza de Taizé, situada no meio de um belo campo, em plena natureza que era cada vez mais rara, e foi quando passeava no acampamento que pela primeira vez ele se emocionou até às lágrimas: ia em pleno campo, a caminho dum dos encontros de reflexão que se encontrou rodeado por milhares de borboletas, borboletas que Patrícia sempre amara duma maneira que ele nunca chegara a compreender…Na sua carteira tinha uma foto de Patrícia sorridente rodeada de flores vermelhas e de muitas borboletas, fotografia que ele via de forma recorrente e para matar a saudade que o matava da sua querida mulher, fotografia tirada em tempos de felicidade que ele nunca mais iria voltar a viver; e agora, em pleno campo, ele recordou-se que foi num campo parecido que ele tirou a foto, emocionando-se com tal, de tal forma que se deixou cair no meio das flores e borboletas, começando a chorar compulsivamente, perguntando aos céus nos quais não acreditava o porquê de a ter perdido, o porquê de estar tão só, tão vazio, tão cheio de nada, tão esmagadoramente cheio de dor…Tinha saudades da mulher, com quem tinha partilhado em tempos o mesmo Deus, a mesma imensidão, laços que então formados julgavam que eram para sempre e que tinham formado a mais bela união, e neste misto de religião e de paixão, Patrícia dissera-lhe imensas vezes que ele, pelo seu bom carácter era um anjo, e ela era as suas asas…Patrícia, que nojo, que revolta, que pena de teres partido, porquê, porquê, porquê? O anjo caíra e estava a morrer porque lhe faltavam as asas…

Não sabe quanto tempo lá esteve, só sabe que se sentiu esgotado e farto, farto de chorar e de sofrer como nunca pensara antes de a perder…Perdera o sentido de tudo, mas talvez ali, em Taizé o achasse na pista que procurava de achar para prosseguir a busca do fantasma que iniciara quando Barbara lhe pedira para procurar um marido morto, ou desaparecido e que agora se ameaçava transformar em algo de muito maior do que imaginara.

A dor dupla (a ferida da bala incomodava-o ao ponto dele, que não ligava a este tipo de sofrimento lhe estar alguma importância…) devorava-o vivo, mas ele precisava de continuar, mas por onde, por onde?

Durante vários dias discretamente procurou indícios do que quer que fosse, mas em vão…Afastou-se do campo por tal lhe fazer lembrar Patrícia, e dedicou-se mais às áreas frequentadas pelas pessoas, mas sem ver nada…

Passados 7 dias da sua estadia, num domingo celebrava-se uma data especial: fazia naquele dia 100 anos em que o Irmão Roger fora assassinado em plena Igreja por uma fanática, data que levou uma enorme multidão a Taizé e à sua pequena Igreja onde as mais de 8000 pessoas a encheram até ao limite. Apesar de Ateu, Gabriel decidiu ir à missa, por curiosidade, mas também em homenagem a Patrícia que era crente e que em tempos fizer planos para ir a Taizé.

Não houve propriamente uma celebração religiosa: milhares de pessoas limitaram-se a cantar cânticos em diversas línguas, cantos duma beleza única, esmagadora, em que louvavam o seu Deus, a saudade da perda, e a esperança do futuro, 8000 vozes que subiram aos céus, vozes uníssonas, vozes de paz, calmas, mas com um poder que impressionou Gabriel, de tal ordem que ele se emocionou quase tanto como no campo das borboletas, porque se impressionou com a fé daquela gente, uma fé pura, devota, mas não fanática, uma fé que poderia mover montanhas, a coisa mais importante do mundo…Emocionou-se por aquilo lhe lembrar tantas coisas, da fé clarividente e heterodoxa de Patrícia, fé com que ela o tentou convencer a ser um homem mais crente, e ele esteve quase lá, mas nessa altura ela morreu, sendo que ele se perdeu dos caminhos da fé para sempre, fé sublime, a coisa mais bela de tudo, que ali, em Taizé lhe pareceu o canto de borboletas e de anjos que Patrícia iria amar.

Não aguentando, teve que sair da Igreja quase em lágrimas, louco de vontade por um cigarro, ficando no exterior, perfeitamente perdido a fumar, mas ao mesmo tempo sentindo-se tão acompanhado por aquelas vozes que pareciam destinadas à eternidade…

“ Merda para as emoções!”- Ele tinha que voltar a concentrar-se, tinha que recomeçar, mas por onde?

Lembrou-se então que uma possível mensagem talvez estivesse nos locais frequentados pelo falecido Irmão…Mas a memória já pertencia à história, e pelo que se informou o fundador da comunidade andava por toda a Comunidade, sem um local específico…O único local específico pelo que lera em livros que comprara na Comunidade era o local onde fora assassinado, e em que todos os dias do ano na oração das 21h ele lia alguns textos bíblicos, sendo que fora ai, num local bem definido na Igreja que fora assassinado…

E talvez nesse local existisse algo, pois se quisesse deixar uma pista num local tão grande, aquele local seria o local indicado, o “X” do tesouro…

Para sua sorte, teria de lá passar mais uma semana, pois as chegadas e as partidas a Taizé tinham lugar aos domingos, o que o obrigou a passar com lógica 2 semanas na Comunidade, ou seja, tinha um motivo para permanecer mais tempo sem dar nas vistas…

E sem dar nas vistas, e numa altura em que não existiam cerimónias ou demais actividades na Igreja, Gabriel investigou o local, fingindo estar a orar, ou simplesmente a observar o local de forma crente…

Quando começou tal, achou tal uma enorme parvoíce, sentiu-se perfeitamente ridículo, até que reparou, que, escrita discretamente e já um bocado apagado pelo tempo, sobre a alcatifa estava algo numa língua que não conhecia, mas que lhe era familiar…Passou o “scanner” sobre a frase e inseriu esta no computador, pedindo a sua tradução: A resposta foi rápida: a língua era aramaico e a frase queria dizer “Onde brilha o Farol da civilização está a luz de Nossa Senhora”

Na escola tivera um professor que era apologista de que a civilização europeia era a mais avançada do mundo, e que o expoente dessa civilização era França, como costumava dizer, França era o Farol da civilização…

O Farol era França…E ele já estava em França, mas esta era imensa, por isso tinha que descobrir o local exacto dentro desse enorme país…Era um tiro no escuro, mas por onde começar a não ser pela própria capital, Paris, expoente máximo da cultura, e local lógico onde brilharia o farol da civilização…Paris era esse farol que iluminava o mundo, e era em Paris que ele deveria ir…

Finalmente em Paris…a luz, o farol da civilização…Mas como encontrar aqueles que procurava, sem saber quem eram estes e muito menos sem saber onde os encontrar na enormidade que era Paris…Uma Nossa Senhora em Paris…Que raio, por onde haveria de começar a procurar…? Deu consigo a ficar em stress…Precisava de descansar para melhor pensar, ou então de divertir-se…ora, desde a morte de Patrícia que ele não sabia o que era o divertimento, o que era a alegria, pois cada vez que tinha vontade de tal se sentia culpado, mas urgia tal para tentar decifrar o mistério, o divertimento era agora tão urgente como respirar…Depois de se hospedar num local discreto consultou na rede o melhor local onde se pudesse divertir…com o mínimo de restrições possíveis, pois se se iria divertir, que fizesse a coisa em grande…Um local onde o seu estado de espírito sinistro não se sentisse desadequado do local…Música deprimente, mulheres deprimidas, bebida sem restrições e fumos ou drogas à descrição…Felizmente que na rede existia tudo, e lá achou um clube manhoso a alguns quarteirões do seu hotel, para o qual poderia vir a pé se o seu estado desse nas vistas e a capacidade de dar indicações ao carro de aluguer fossem mínimas…

Era uma da manhã, e depois de alguma bebida manhosa bebida num café também manhoso nas imediações, Gabriel entrou no Clube. Escuro, o ambiente era escuro, tanto que as caras se dissolviam nas sombras e na música neo-depressiva, mil e um dialectos, rostos crispados pela dor de uma existência ou pelo peso das diferentes drogas que se consumiam às claras…O seu estado de espírito tinha encontrado uma alma gémea…Depois de várias cervejas e de bebidas fortes, Gabriel começou a perder o norte…mas não era suficiente, ele queria-se alienar, profundamente alienar…Alguém lhe passou um charro, e ele fumou-o avidamente, alguém lhe deu algumas pastilhas e ele tomou-as como se tomasse aspirina…estava a ficar no ponto…Patrícia era uma memória viva, mas ao mesmo tempo morta, o mistério era cada vez mais denso e ele começou a dançar a um canto, mal dando pela aproximação de uma mulher, mal reparando que começou a falar com ela, e que com ela começou a dançar ao mesmo ritmo, com ela começou a trocar beijos perdidos que queria dar a Patrícia, mal reparou que de repente os afectos se aprofundaram…ele não dançava, ele voava, e foi assim que eles voaram até casa dela e fundiram os seus corpos abençoados pelas drogas e pela dor que comandavam o investigador,(apesar de sóbrio dificilmente o fazer, pois a abstinência que tinha desde a morte da mulher não era um fardo para ele, dado ele ser acima de tudo um ser racional, obviamente necessitado de tal, mas que não achava tal essencial, bem antes pelo contrário…) este homem perdido de tudo e de todos, mas ao mesmo tempo mais achado do que nunca; o sexo foi animalesco como ele nunca o tinha feito até ali, nem bom nem mal, animalesco, e ele falou, perdeu-se no sexo desalmado e nas palavras, sem as controlar, sendo a sua sorte do seu francês ser medíocre e a mulher nada perceber de português e de pouco ligar ao que era dito...Nunca tinha feito o que estava a fazer, mas já nada interessava, ele estava perdido, perdido para sempre, perdido do seu amor, de si, de tudo, até que começou a berrar desalmadamente parte da frase encontrada em Taizé em português, “A luz de Nossa Senhora”, e fosse pela forma como o fez, ou porque o efeito das drogas já começava a passar que a companheira pediu para ele repetir em francês e ele acedeu repetindo toda a frase no seu mau francês…

“et dans le place où feux de la civilisation est la lumiere de Notre Dame”

“La Lumiere de Notre Dame”

-MERDA!

Era isso! Como é que não se lembrara antes?!

A solução era pensar em francês…ora ele primeiro teve a frase traduzida de aramaico para português, mas nunca a pensou em francês…E não fosse aquela noite louca nunca teria (ou teria chegado muito mais tarde) à solução…Espantado pelo seu raciocínio depois de tantas substancias, e ainda atordoado por tudo, suplicou aos céus que não tinha por um perdão, pediu mil vezes desculpa a Patrícia e um milhão aos princípios que pensava que tinha perdido, mas que naquela noite louca descobriu que ainda tinha, que nunca tinham desaparecido de si, estando apenas latentes, adormecidos, porque podia ter perdido tudo, mas os princípios esses iriam acompanhá-lo para sempre…

Feito louco fugiu desses princípios, fugiu de tudo e deixou a casa da amante temporária que ele nem se lembrou que poderia querer ser paga por aquelas horas…

Nada mais interessava, Gabriel encontrara a sua agulha no vasto palheiro parisiense…

Antes porém tinha de ficar sóbrio, completamente sóbrio…

Ir a uma farmácia era de doidos, pois os comprimidos que o iriam por em condições eram proibidos…além dele não ter bem a certeza do que consumira…Teria pois que ficar bem quietinho no seu quarto à espera que passasse o efeito daquilo.

Após 24h passadas sobretudo a dormir, ele decidiu partir. Algo lhe dizia que o seu localizador poderia levar alguém a um destino que não lhe interessava, e por isso tirou-o com algum esforço com o auxilio de uma faca…Sentia que se aproximava do fim e por isso se o quisessem procurar que o fizessem em Paris.

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Já lúcido, mas fisicamente trôpego pelos efeitos colaterais das drogas (mas que diabo tinha ele consumido???) dirigiu-se a Notre Dame, tendo na carteira a identificação de Investigador da Polícia Federal, obviamente falsa, mas pelas artes de quem a fizera mais genuína do que a verdadeira…

Esperou pela hora do fecho da catedral e decidiu entrar, convencendo os guardas com a sua identidade falsa…Durante algumas horas teria tempo para investigar o que quer que fosse, pois estava ainda em branco…: deveria procurar um grupo de pessoas ou apenas mais uma pista, e que pessoas, que pista…

E aquilo era de facto era enorme…

Primeiro procurou durante várias horas na Nave (o interior da catedral) durante imenso tempo, mas nada…Até podia ser que qualquer coisa lá estivesse, ele é que não conseguia ver…Resistindo à ressaca e ao vício do cigarro, respirou fundo e procurou nas colaterais (naves laterais). Novamente nada, e após mais algumas horas…e não tardaria iria amanhecer e mais uma data de turistas a atrapalhar…

Procurou na memória a frase bem fresca a frase: “et dans le place où feux de la civilisation est la lumiere de notre dame”

E não se lembrou de nada…entretanto, e sem dar por isso, foi avançando para o interior da Catedral até que deu consigo em frente do altar-mor. De olhos pensativamente no chão, ergueu-os e…A estatua de Nossa Senhora com o filho morto depois da crucificação morto nos seus braços, rodeados por anjos. A mãe de Cristo erguia os braços aos céus em sofrimento.

“Notre Dame”, Nossa Senhora – Pensou nas duas línguas…

A solução poderia estar muito bem ali, ou nas imediações…

Tudo ou nada.

E ele nada tinha…

Procurou em redor do altar com toda a atenção, de lanterna na mão, da maneira obsessiva dos velhos tempos, tempos em que tinha resultados…

Finalmente encontrou uma reentrância com vários números romanos que converteu : MCLXIII (1163) DL (550) e MMC (2100) estes mais recentes como podia ver pelas marcas ainda brancas sugestivas que o tempo ainda não tinha passado por elas…

Deu resultado em Roma, e porque não ali?

Premiu a reentrância, e…Em segundos uma laje por debaixo de si começou a mover-se, deixando ver uma vasta escadaria que conduzia para algures…

De arma na mão e uma total ausência de medo, não fruto de uma especial coragem, mas sim da excitação da descoberta, começou a descer…

A meio do caminho tirou de novo de bolso os velhos sensores térmicos e lançou-os, escadas abaixo.

Desta vez estes assinalavam no ecrã do computador 4 seres humanos numa espécie de uma cripta…

Avançou de arma apontada e pode ver claramente esses quatro seres humanos:

Eram 3 homens e uma mulher; ela usava uma espécie de uma túnica, dois o mesmo tipo de túnica, mas sem mangas, sendo que o terceiro usava a mesma túnica mas com mangas, semelhante à da mulher. Estavam à volta de uma mesa, a ouvirem falar um dos homens, aparentemente de tal forma concentrados que não deram pela presença de Gabriel…

Aparentemente…

Um dos homens quebrou o círculo, o homem que falava, e Gabriel ficou estupefacto com ele pois parecia conhecer a cara, a imagem dele de algures, homem magro na casa dos trinta anos, de barba curta e cabelo comprido com duas chagas nos pulsos, mal cobertas pelas mangas; mantendo a arma apontada, mas dizendo em Inglês:

- Eu conheço-o…

O outro respondeu em Inglês

-Toda a gente me conhece, toda a gente me procura, mas a maioria procura-me no Reino dos Céus, e só uma minoria me procura onde eu sempre andei, por aqui, bem perto de vós…

Entretanto os outros desfizeram o círculo e colocaram-se ao lado do seu Mestre.

Nessa altura, e sem que ninguém reparasse, entrou alguém na cripta que ficou na escuridão a observar, à espera…

Gabriel reparou então em dois factos perturbantes: um dos homens tinha tatuado um numero romano no braço esquerdo, o outro homem também no lado esquerdo tinha uma série de números árabes…

Não podia ser…Gabriel sabia que as legiões romanas tinham o hábito de fazer tatuar o número delas no corpo dos seus membros, sabia que as tropas SS tinham o hábito dos seus membros possuírem escrito no braço os números do respectivo grupo sanguíneo, para em caso de incapacitados no campo de batalha as equipas médicas saberem o tipo sanguíneo correcto a administrar…Mas aquela gente queria fazer-se passar por quem?

Dúvidas que seriam tiradas mais tarde, pois o líder prosseguiu:

-E tu quem és, quem te mandou matar-me desta vez…? O Vaticano, a União? Algum senhor endinheirado e mitómano ao ponto de querer matar um mito?

-Eu…O meu nome é Gabriel e venho em busca de um amigo…

-Então pela primeira vez somos achados por alguém que nem nos quer matar, nem nos quer capturar…É engraçado…E o teu nome é bíblico…Arcanjo Gabriel…Foste tu que supostamente anunciaste a minha vinda ao mundo, supostamente…E talvez seja um sinal tu teres-nos encontrado, Gabriel…

A par da bíblia, Gabriel compreendeu algo de perturbador: o Arcanjo Gabriel anunciara de facto a vinda do Messias, ora aquele homem de traços familiares intitulava-se indirectamente Messias… Mas que diabo, ele tinha dado com uma seita!

-Nos teus olhos vejo a dúvida, vejo que começas a compreender mas que duvidas do que sentes, do que ouves…

Vê as minhas chagas…Elas não cicatrizam…Repara em quem me rodeia: uma mulher a que a Bíblia chama de prostituta pelo receio de que o suposto filho de Deus não pudesse ter uma companhia mais fiel do que ela…Ela é minha mulher e acompanha-me desde o início dos tempos…A Igreja é feita de e por homens e por isso ela teria de ser algo vil para que as outras mulheres continuassem a viver na sombra dos homens…

Olha bem para quem me rodeia – E fez um gesto suave para os dois homens se apresentarem:

-Rufus Livius, Centurião da III Augusta e mandado para capturar o Mestre e o levar para Roma para evitar a queda do Império, até que o conheci e tudo mudou, deixei de servir Roma, para o servir a Ele

- Friedrich Deubert, Hauptsturnfuhrer – capitão – (SS)- mandado em missão secreta para matar ou capturar o Messias. Assim o fiz até que tive a honra de o conhecer e passar a servir.

-Sim, sim…Mas vocês são certamente alguém que se faz passar por outros, pois o que pressupõem é impossível…-Disse Gabriel, não acreditando no que começava a perceber…

Compreendendo a hesitação, a duvida, o Mestre interveio

-Gabriel, diz-me, tens alguma ferida…?

-Bem…E se ma curar, isso prova alguma coisa?

-Tu decidirás…

Gabriel lembrou-se então da ferida recente de bala e que o colete não protegera assim tão eficazmente…A ferida no tronco incomodava-o de sobremaneira por dificilmente cicatrizar…Mostrou-a.

O intitulado Mestre esfregou nela um dos pulsos com sangue, dizendo a Gabriel para esperar breves minutos, no fim dos quais a ferida já não existia, nem deixara cicatriz, e a dor desaparecer completamente…

-Tudo começou quando depois da minha suposta ida para o céu, vagueei um pouco por todo o lado, já começando a fugir da sombra do meu mito…A meu lado a fiel Maria, sempre, sempre a meu lado, durante anos…Os anos passaram eu fiquei na mesma, mas ela começou a envelhecer…Nada pude fazer, até que, enquanto lhe procurava dar algum conforto no leito de morte, os seus lábios tocaram involuntariamente numa das minhas chagas…Ao fim de alguns minutos a velhice começou a desaparecer…Dei-lhe mais sangue, e desde então que Maria é esta mulher nova.

Depois, bem, depois percorremos o mundo…Embora não déssemos nas vistas, alguém soube que existíamos, e começaram a nossa busca, e começou a nossa fuga…Como éramos discretos, ao longo destes mais de dois mil anos poucos chegaram até nós, os mais inteligentes, espertos, ou os melhores leitores das quase nenhumas pistas que deixávamos para trás…

O primeiro foi Rufus Livius, mandado por um Imperador Romano e que sentia esse Império no fim, julgando que se o filho de um suposto Deus estivesse a seu lado, o Império seria eterno…Enfim…Depois da cruz, foi a primeira vez que me vi perante a morte, pois recusei-me a segui-lo, pois eu não sigo nada a não ser a mim próprio…Por meras palavras de paz lhe disse isto e o Centurião decidiu que não serviria outra pessoa a não ser eu…E assim ficámos os 3…Descobri também que não bastava beberem uma vez do meu sangue para não morrerem, era necessário de 100 em cem anos beberem desse sangue para não envelhecerem…E assim o faço em relação àqueles que me querem seguir e que comigo querem trilhar as planícies da eternidade…Mas continuando, passou mais uma pequena eternidade, e nós sempre a fugirmos, pois desconfiávamos que vinham no nosso encalço por razões muito pouco mesricordiosas…Nesse percurso vi a Europa mudar, vi o fim do Império, vi a Idade das Trevas ocupar o corpo desse Império, vi os novos tempos sucederem aos velhos, vi a esperança da mudança transformar-se em cinzas de cinismo, vi o homem a mudar para ficar na mesma…conheci muita gente, cruzei-me com um mundo em mudança, e com um assassino que parecia ir ter um destino semelhante a Rufos; nunca soube quem o mandou, sei apenas que ficou connosco algum tempo e depois, julgando-se ele próprio um imortal, voltou à sua (actual) Roménia natal, onde deu a beber o seu sangue aos seus seguidores, dando origem a um mito moderno…O sangue dele tinha algo de mim, mas o máximo que conseguiu foi prolongar a vida dos seus seguidores mais alguns anos do que é normal, ficando no entanto o tal mito, e esses seguidores acabaram por morrer de velhice, ao contrário dele, que por motivos que me escapam morreu bem cedo…Depois apareceu outro assassino, um Veneziano de nome Stefano Fantin, que também ficou connosco durante muito tempo…Nesse tempo refugiamo-nos em Roma, nas suas catacumbas, onde alguns esbirros dum senhor negro da Igreja quase nos conseguiram capturar…Prenderam Stefano e no mesmo local onde antes era o nosso refúgio…Na altura já ela tinha mais de 500 anos e não deve ter durado mais do que 50 sem o meu sangue…Partimos novamente…

Stefano Fantin 1970-2070 - 550 A data em que ele esteve preso e os anos com que morrera…Tudo começara a bater certo…-Pensou Gabriel…

- A tampa do esgoto que dá acesso às catacumbas tem escrito CL, bem como a chave que o abre e a reentrância onde, depois de carregada, dá acesso ao antigo refúgio…Quem deixou tantas pistas…?

Terão sido os homens que nos perseguiam para eles próprios ou para os seus sucessore.s A única pista que deixei para homens de luz que nos quisessem achar foi “Luz” em aramaico, que se devidamente lida nos conduz a…

-Ao local para onde foram a seguir, mas essa pista só a achei porque Stefano me deixou uma outra pista, pois “luz” é quase nada…

-Se fosse mais alguma coisa teríamos uma multidão no nosso encalço…

-E partiram pois para Taizé… – Completou Gabriel que começava a ver uma lógica entre algumas provas

-Antes disso e ainda no tempo das catacumbas fomos descobertos pelo último elemento do nosso grupo Friedrich, mandado por Hitler, ou alguém na sua vez…, na sua louca cruzada pelo poder eterno, até pelo poder esotérico… poder vão, como vã foi a vinda deste homem, que ficou connosco depois de me ter ouvido falar…Não que eu diga coisas especiais, mas parece que o que digo tem um certo poder nas pessoas que me escutam…Depois, depois da última fuga, andamos um pouco por todo o lado, até que viemos até Taizé que começava a ter uma certa importância em finais do século XX. Ficámos curiosos em saber que alguém conseguia trazer os jovens de facto para a religião, sem impingir esta, dando-a naturalmente…Mas ficámos por lá apenas alguns anos, pois poderíamos ter dado nas vistas se prolongássemos a estadia…Mas Taizé, apesar de ser esse local único no mundo…A religião é para todos, mas eles separam bem os jovens dos menos jovens, tornando a estadia de estes mais pesada, mais densa, como se a vida tivesse que ser um fardo…Nos jovens sente-se o pulsar da religião, nos adultos não…E depois, depois as discussões eram muito centradas na Bíblia, numa palavra minha que foi tão adulterada como bom vinho em taberna duvidosa…Aquilo que eu disse…Já poucas coisas estão como deviam estar, transformou-se a Igreja num poder a que nem mesmo Taizé escapava apesar do seu espírito magnífico…Mas isso era uma discussão que poderia durar outra eternidade…

E eu estava lá, bem perto do Irmão quando este foi assassinado, ao contrário do que ouvi alguém desanimado dizer, Deus, ou o suposto filho de Deus estava lá e sofreu como toda a gente, sofreu por o não ter salvo, pois nem as feridas mais profundas o meu sangue pode salvar, como foi o lamentável caso…

-E foste tu quem deixas-te a frase no local onde ele foi atacado…?

-Uma frase para ser descoberta e compreendida por alguém especial…

Partimos então um pouco para todo o lado, como andámos sempre, pois nós nunca parámos, nem nunca iremos parar, pois o mesmo homem que anseia pela minha vinda, é o mesmo homem que me quer ver morto, ou capturado, como um vulgar animal que mereça reclusão só pelo dom extraordinário que tem, ou pelas palavras ditas que é bem capaz de transformar um mundo habituado às suas verdades, mas incapaz de encarar a original, ou uma verdade que não sendo absoluta descobre a nudez das outras…E essas pessoas que me buscam, que por mim ergueram e destruíram Impérios, que buscam quase obsessivamente o Reino dos Céus…Ele está dentro de nós, ao alcance dum simples sorriso…Porque somos tão agressivos perante o mundo, porque é que o mesmo homem que faz coisas divinas como a arte, a poesia é o mesmo homem capaz de matar um seu semelhante e de fazer coisas tão ignóbeis como o holocausto? Que obsessão é esta pela eternidade? Bastava-nos a todos sermos mais simpáticos, mais gentis, mais humanos para vivermos melhor, bastava saber ouvir a voz do outro, bastava saber dar um abraço em vez de um murro, bastava rir quando nos apetece chorar, bastava acreditarmos quando a esperança parece morta, pois ela nunca, nunca morre, pois enquanto existir um homem e uma mulher vivos ao cimo da Terra a esperança nunca morre, ela voa nas asas do sonho que é o milagre da existência de cada um… Bastava tão somente amarmos o nosso semelhante em termos gerais e não sectários…bastava sermos de facto mais humanos para nos apercebermo-nos que o Reino dos Céus está bem dentro de nós e não fora de nós…

Gabriel estava petrificado…A história era absurda, mas ele sentia que profundamente verdadeira, pois apesar da lógica-ilógica, a lógica ali ganhava todo o sentido…Todas as provas reunidas por si batiam certo, todos os indícios…O que tinha à sua frente era algo de extraordinário capaz de alterar a lógica do mundo católico e da ciência, mas essa lógica nunca seria colocada em causa pois Cristo nunca o faria…

Cheio de perguntas na sua cabeça, veio ao de cima o lado ateu do Investigador, e foi este lado que conduziu a conversa, apesar de outro homem no seu lugar ir fazer qualquer tipo de perguntas bem mais cultas ou intrinsecamente interessantes…

-Mas acreditas em Deus?

-Se queres saber se ouço uma voz que me conduz…não…Tudo quanto eu faço é fruto de uma vontade interior, de algo que me comanda, mas que não manda em mim…Fiz o que fiz há mais de 2000 mil anos porque senti uma enorme necessidade de o fazer, e olha…dei origem a um mito…E de repente dei comigo a não envelhecer e a ter o dom de dar a imortalidade àqueles que me rodeiam…Dizem que voltarei um dia…Eu não sei, sei apenas que se a vontade voltar a parecer voltarei a fazer o que fiz, mas adaptado aos novos e conturbados tempos…Quem me ouvir, certamente que pensa que é a vontade divina, eu respondo que é apenas a minha vontade…Livre arbítrio, sempre comandou e sempre deverá comandar o destino dos homens e do mundo…Livre arbítrio…foi ele que nos fez descer das árvores e subir às estrelas…

-E o que querem dizer os números romanos da reentrância que me fez descer a esta cripta?

- MCLXIII (1163) O ano em que começou a ser construída esta Catedral. Tal como hoje, na altura fiz boas amizades que construíram esta cripta onde se bebe desde então o meu sangue. É um local mágico, único no mundo, é o local indicado para este tipo de cerimónias. A passagem, a cripta e o número sempre existiram desde esse tempo, sendo que acrescentámos outros mais recentes como DL (550) para honrar a morte e a vida do nosso Irmão Veneziano que foi capturado, MMC (2100) a marca mais recente destinada a celebrar a idade comum de mim e de Madalena. Sabíamos onde estava a reentrância, não eram necessárias marcações, mas são uma forma de homenagem e de sinal a quem viesse, pois temos sempre a esperança que alguém venha, como é o teu caso Gabriel, tu que vieste sem mal no coração, tu que vieste em busca de um amigo, tu Gabriel…

Nessa altura o homem que se escondia na sombra fez-se anunciar, de arma apontada ao grupo, mas sobretudo a Cristo.

-Bravo! E eis que tenho aqui o meu grande prémio, a minha recompensa…Nem penses em me apontar a arma meu caro Gabriel…Tu podes ser um Investigador, mas de casos de merda! O grande operacional sempre fui eu!

Por instinto e devoção os dois assassinos convertidos de imediato se puseram á frente do Mestre, protegendo-o com o corpo e tapando o anglo de visão a Gabriel, embora este tivesse reconhecido a voz, que conhecia bem demais…

-Rapazinhos…Tenho as balas suficientes para limpar o sebo a todos, cambada de anormais, de…

- E tu nunca toleraste a diferença, caro Carlos…As balas são tão especiais como aquela que quase me matou?

-Estas são melhores, estas matam de facto, pois quem me contratou está a borrifar-se para as tretas que ele disse…Querem-no ver morto, e é morto que o levarei, com vocês todos atrás…Nada de deixar vestígios…

-Sempre gostava de saber a razão desta palhaçada…Não tinhas desaparecido, caro “camarada”…

-E desapareci…Por falta de ideias…Uns senhores a mando de alguém ligado ao Vaticano vieram ter comigo com poucas palavras e muito, muito dinheiro…Disseram-me que eu tinha que descobrir e abater alguém, limitando-me a dar as provas que encontras-te no escritório de Barcelona…Eu até fui às catacumbas, e depois nada fez sentido, tive a chamada “branca de Investigador”. Pá estou enferrujado e imagina que nem descobri a merda do livrinho com o nome do Veneziano…Depois tive uma ideia: há um tipo que só tem casos da treta, mas que sempre foi mais esperto do que eu…É o meu ex-camarada Gabriel que desde a morte da sua triste esposa que se arrasta de garrafa em garrafa e de cemitério até à alienação final! Reservei um bilhete de avião e o Hotel eu meu nome e dei a ideia que desapareci misteriosamente…

Gabriel começou a enervar-se devido às referências pouco elogiosas ao seu sofrimento de que Carlos não percebia nada, nada, nada…

-Estás descontrolado e começas a abusar… – Disse avisando o agora adversário e inimigo

- E que me vais fazer, seu falhado, seu neurótico de merda? Vais-me dar um tiro? Tu nunca foste um operacional, sempre fui eu, fui eu que lutei em Africa, tu limitaste-te a estar calma e confortavelmente numa salinha a dar-me indicações. Mas ia a dizer, a minha triste e parva esposa iria logo a telefonar ao “Gabriel” se algo me acontecesse…E assim foi…Sendo que encontras-te as provas certas no local certo e descobriste o resto que te levou aqui…Ah! Tive que te alvejar para largares o livro de maneira a eu o analisar…O problema é que a branca se mantinha…Ou seja, tive que te vigiar à distância e esperar que me trouxesses aqui…

- O que se passou com o meu velho camarada, em que monstro te transformas-te…?

- A realidade pá! Dinheiro, mais dinheiro com que possas sonhar, o suficiente para me reformar. No mundo não há causas, só a causa do dinheiro. Na guerra aprendi que matar é apenas um exercício de estilo, que quanto mais se pratica, mais vicia…Ou pensas que eu sou apenas o Investigador em que toda a gente acredita, incluindo a minha infeliz mulher? Especializei-me em aliar a investigação à limpeza de pessoas incómodas, pois descobri que isso me rendia muito mais…A ética, tal como os escrúpulos são palavras a serem utilizadas por teóricos como o tal Messias e tu, meu infeliz de falhado…Cristo ou não, o que é certo é que levarei uma pipa de maça, e isso é o que interessa…Que te sirva de alivio, és o primeiro camarada de armas que vou limpar…Olha, vais fazer companhia à Patrícia…Mas agora me recordei…Não há ninguém para ver os vossos discos, pois não? Enfim, vais regressar ao anonimato de onde nunca deverias ter saído…A tua vida já é uma porcaria, agradece-me pois este acto de misericórdia…

- Carlos, é a última vez que te peço, baixa a arma…

-Vai-te foder! Nunca matas-te ninguém, e não vai ser um falhado dum maluco que me vai impedir de…

-Há sempre uma primeira vez para tudo…

O som de um tiro ecoou pela cripta, acompanhado pelo som do corpo morto de Carlos a cair no chão.

Em choque Gabriel manteve esticada a mão que segurava o seu velho “colt”, destinado ao seu suicídio, uma arma que acabara possivelmente de servir a eternidade.

-Meu Deus, o que é que acabei de fazer…?

-Por estúpido que pareça, penso que a tua atitude foi a certa: acabaste de salvar cinco pessoas… – Disse-lhe o Messias enquanto lhe baixava o braço e lhe dava um abraço fraternal, como Gabriel nunca recebera em toda a sua vida.

Sentia-se perdido, mais uma vez perdido, com a cabeça a latejar de ressaca, dos últimos acontecimentos, da sua dor eterna; mas por estranho que pareça, sentiu uma certa paz…

-Eu nada tenho, e agora acabei de matar uma das poucas pessoas a quem chamava de amigo…

-Não, tens agora alguém que te estima: - se conseguis-te chegar aqui és um homem vivido e sofrido, nota-se o sofrimento nos teus olhos…Para de sofrer, junta-te a nós. És o primeiro que vem em paz e em busca de algo que não só a mim…Junta-te a nós, te prometo literalmente a paz eterna…

Gabriel olhou o homem nos olhos e reparou que nunca tinha encontrado ninguém que falasse com tanta profundidade, notando então que dos seus olhos saíam lágrimas, as primeiras desde Taizé, e das poucas que deitara desde que Patrícia desaparecera…Baixou ligeiramente a cabeça e acenou, notando então que estava feliz, imensamente feliz.

O grupo agora de cinco reuniu-se então em torno do seu Mestre, este arregaçou as mangas e eles ficaram a ver as suas chagas dos pulsos, chagas com mais de 2000 anos. Cuidadosamente verteu o sangue que saia delas para os 4 copos.

Erguendo as taças aos céus disseram

-O sangue de Cristo!

Bebendo o seu conteúdo

Gabriel tinha encontrado por fim a sua paz

Dai a pouco tempo a Igreja acabou por eleger um Papa mais progressista, sendo que a facção negra continuou na sombra, preparada para o início de nova caçada, dificultada pelo apagar de provas que Gabriel encetara antes de partir com o seu Mestre rumo a local incerto.

FIM

(1) Conclave – Processo pelo qual o colégio de Cardeais escolhe um novo Papa

José Miguel Patrício Afonso Gomes

Ao escrever este conto fiz alguma pesquisa temática, quer com o auxílio de familiares, quer com o auxílio da Internet. Os espaços físicos referidos, como as catacumbas, existem algures em Roma, Taizé existe e existirá durante muitos e bons anos, a descrição do altar de Notre Dame é real, baseada em fotos desse altar que recolhi na Internet.

Também me inspirei nos seguintes temas e autores que ouvia enquanto escrevia este conto

BANDA SONORA-

Evanescence: Call Me when you’re sober, bem como praticamente todas as músicas que editaram e às quais tive acesso

- Linkin Park -NUMB

- Michael Nyman Banda sonora do filme GATTACA

- Muse - The Supermassive Black Hole e “Starlight”

(CONTO PROTEGIDO PELOS DIREITOS DO AUTOR)

Miguel Patrício Gomes
Enviado por Miguel Patrício Gomes em 28/09/2006
Reeditado em 27/06/2008
Código do texto: T251196
Classificação de conteúdo: seguro
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