O ENVIADO - Parte II-

(Continuação...)

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Estava já relativamente perto de casa quando recebeu um telefonema urgente; procurou um canto discreto e atendeu.

Era Barbara, a mulher de um antigo camarada de armas e colega de profissão, embora este fosse o derradeiro ponto em comum: tinham ambos escritórios, mas em diferentes países, e com diferentes percursos, pois ao passo que Gabriel se limitava a casos menores (a maioria passionais, de pessoas que o confundiam com um mero detective particular), Carlos andava sempre metido em complexas investigações que, não raramente incluíam servir o governo, quando os investigadores deste se revelavam incapazes de resolver qualquer caso mais complexo. Por toda a Europa este “esquema” era conhecido, e os investigadores civis tidos em boa conta, pois, embora a sua independência fosse tolhida pela entidade patronal temporária, sempre tinham alguma independência, o que fazia as suas palavras a soarem mais verdadeiras do que as oficiais. Naquele meio Gabriel era altamente cotado, visto como um exemplo de seriedade e limpeza de processos e recursos, exemplo que procurava seguir, se bem que traído pela má-sorte, pois só por uma vez fora contactado pelo governo, mas apenas o da sua área, regional, por isso menor, sendo o caso, ainda por cima, quase insignificante, quase passional, tratando-se apenas de recuperar documentos semi-secretos de que um ministro nacional se esquecera numa festa, onde as pessoas e o ambiente faziam tal desaconselhável a tão “delicada figura”. Apesar de ter mantido a boca fechada e de ter impedido uma incómoda remodelação ministerial em ano de eleições, nunca mais o tinham chamado.

A amizade entre Carlos e Gabriel era distante, apesar aparentemente forte, mantida pelas memórias de uma tropa que os juntou: A audácia e invulgar força física de Carlos levaram-no às unidades especiais de combate, ao passo que a vocação nata de Gabriel para as línguas e aparelhagem o puseram nos serviços de tradução e espionagem. Os seus caminhos não estavam destinados a cruzar-se, se não fosse alguém lembrar-se de testar um novo tipo de formação militar: cada comando teria na base o apoio de alguém dos serviços secretos, cujas funções de apoio eram polivalentes, isto é, poderia ir desde os serviços de tradução (cada homem no terreno de combate dispunha de micro-câmeras que davam ao colega a imagem mais próxima de acção possível) à orientação via satélite e instruções em caso de emboscada. Os dois foram pois treinados para funcionarem como equipa, testada e reforçada no dia em que uma coligação árabe invadiu a praça de Ceuta, iniciando uma curta mas intensa guerra entre o médio oriente e o Estado Federal Europeu, herdeiro da extinta União. A desproporcionalidade tecnológica compensou largamente o número superior do inimigo, pelo que, ao fim de alguns meses os europeus reclamaram a tomada de toda a faixa norte do continente, apesar das baixas terem sido maiores do que as supostas nesta variação de guerra cirúrgica. Entre os feridos estava Carlos, salvo, como se esperava, pelo amigo, ao qual ficou desde então grato. Reuniam-se uma vez por ano, num jantar familiar, recordando outros tempos, procurando manter-se minimamente a par das respectivas vidas, mas fora isto, o contacto era nulo. Isto fora antes da morte de Patrícia, pois desde que ela partira que Gabriel abandonara tudo e todos, inclusive a sua vertente social.

No entanto, o resto do homem que ainda e brilhava dentro de si só podia ver a amiga com satisfação, rapidamente esmorecida pelo rosto da mulher. Este denotava o rasto de lágrimas recentes, limpas à pressa para o que na chamada Gabriel não notasse no seu rosto humedecido a pressagiar o pior que se iria seguir nas palavras seguintes. E ele bem notou o esforço que ela fez para ir directa ao assunto, tentando, por seu turno, mostrar o mínimo de choque.

-O Carlos morreu.

-Como?!

-Estava em serviço para alguém ligado ao Vaticano, não sei bem onde, sei apenas que vieram falar comigo, a dizer que ele desapareceu, mas para perder a esperança do seu regresso.

Sei que vocês não são muito próximos, mas as coisas que ele me contou sobre o tempo que serviram juntos...És a única pessoa em quem eu confio para aquilo que te vou pedir: quero que o encontres, sem dizer nada a ninguém, sem dar nas vistas. Tenho algum dinheiro para ajudar nas despesas comigo, as chaves e o código do escritório, onde se calhar encontrarás algum indício, qualquer coisa; isto se tiveres tempo, se não te incomodar...

-Disparate, é só o tempo de arrumar a mala e de apanhar um avião.

Gabriel quase que abençoou os céus que sentia a si renegados por este caso, por poder voltar à acção, não em nome de uma causa anónima, mas em nome das poucas pessoas que em tempos lhe disseram algo…De facto foi só marcar o voo e arrumar as malas, pelo que em poucas horas estava em Barcelona, a cidade de Carlos.

Tudo aquilo que fizera de sim um bom investigador voltou ao de cima, e de tal ordem estava concentrado que não se perdeu em pormenores sobre Patrícia à mulher do amigo, pelo contrário, deu por si a inventar uma “persona” algo distante e mal tocou no assunto, muito menos revelando as suas visitas diárias ao cemitério, a sua decadência, o gosto pela bebida e hábitos de fumador que entretanto passaram do charuto para os cigarros, que consumia convulsivamente apesar de uma Europa ainda meio histérica perante a figura desses fumadores…

O máximo de atenção que teve foi comprar um jogo de 3D para os filhos do camarada, dar-lhos com algum desprendimento e, começar depressa a trabalhar, o mais depressa possível…

E, para começar, não se podia dizer que ele tinha a informação na palma das mãos. Apesar de tudo esperava o pior, no típico cenário de alguém que tinha descoberto algo que não devia, os locais onde a suposta vítima poderia ter deixado qualquer tipo de informação deveriam ter sido revirados do avesso e vandalizados, e assim desfeitas as poucas hipóteses de esclarecer o possível mistério. Mas, para seu grande espanto, encontrou o escritório impecável, sem qualquer indício de invasão /intromissão. O edifício era considerado de “não fumadores”, o que lhe fez recordar na faceta “saudável” de Carlos…Ignorou o aviso e um tanto ou quanto de forma provocante acendeu um cigarro e entrou, afinal de certa maneira não iria incomodar ninguém, pois este era um prédio de escritórios e a sua hora de fecho já tinha passado à algum tempo. Melhor assim, sozinho e sem vozes a atrapalhá-lo trabalharia melhor. Sempre de cigarro aceso entrou no elevador, picando alegremente e em tom de desafio às câmaras de vigilância e escolheu o andar onde Barbara lhe indicava ser o escritório do marido.

10ºA

Abriu a porta e olhou em redor clinicamente.

Tudo muito espartano, bem à medida do amigo, muito simples, o que deveria simplificar a busca. Duas cadeiras, acompanhadas pelo sofá-cama das noitadas de investigação, a televisão e o inevitável frigorífico para as horas demasiado curtas de compras, uma secretária, seis gavetas, um cofre, e o obrigatório computador. A lógica indicava que as gavetas não deviam ter nada de relevante, aforismo quase certo, pois, entre papelada burocrática irrelevante apenas encontrou um bilhete de avião de ida e volta para Itália, numa agenda a reserva no hotel “Morgana” e respectiva despesa interna, certamente para descontar na entidade contratante, e nada mais. Restava o cofre, cujo segredo cedeu ao descodificador electrónico, de utilização proibida, mas sem o qual Gabriel nunca se atrevia a começar qualquer trabalho, que pressentia o ir colocar na habitual posição à beira da lei. Mas, novamente, nada de aparentemente relevante, a não ser uma pequena chave, idêntica à das caixas postais com o número seis no punho; apenas prospectos da cidade eterna, guias cedidos pela agência de viagens mais próxima um enorme mapa de Roma e mais nada. Gabriel desconfiou...Pegou numa lupa e passou todo o mapa a pente fino, primeiro com a tal lupa, e a seguir com o pequeno microscópio que qualquer investigador do seu tipo dispunha. E foi graças a ele que encontrou três letras e um número, em duas ruas do mapa – “-DL –, cujo significado lhe era obviamente estranho, e ainda mais estranho um mapa aparentemente banal estar num cofre, cujo decifrar lhe consumira horas, e com algum do material mais sofisticado não existente no mercado...Recostou-se na cadeira, fumou um dos seus charutos e pensou...qual seria o significado daquelas letras, e onde o poderia obter...?( o assunto da chave pensava resolver mais tarde, já que não fazia a mínima ideia onde a pudesse “encaixar”) Divagou com o olhar, concentrando este nas bolas de fumo que lhe saiam da boca, até que, ao tocar no computador uma delas surtiu como inspiração.

-“Estúpido, é óbvio!” -Pensou, irritado com a distracção

Deu ordens para a máquina se ligar, mas esta exigiu-lhe a indispensável palavra-chave de acesso...Ou seja, mais algumas horas, ou dias de descodificador. Depois de o ligar, acendeu a televisão, foi até ao frigorífico e preparou uma “espécie de ceia”, com que tentou colmatar o apetite típico de cada início de investigação.

Das centenas de canais, nada de especial lhe chamou a atenção.

-Talvez as notícias me dêem uma guerra nova – Pensou, lembrando-se estar na época de mais um conflito regional, patrocinado por qualquer potência, com o aval impotente da ONU, e destinado a testar mais alguns armamentos novos.

Lamentavelmente as guerras estavam em baixa, indo o maior destaque para a arrastada escolha de um novo Papa, cujo arrastar começava já a despertar suspeitas, quase até ao mais ingénuo dos crentes. No entanto o Vaticano prometia a escolha a qualquer momento, promessa a prolongar-se já há mais de meio ano...Havia ainda as notícias recentes de que as viagens cientificas a Marte estavam definitivamente lançadas e o processo de transformação da atmosfera de forma a esta ser respirável a humanos dava os seus primeiros e decisivos paços com o envio de maquinaria pesada para o planeta vermelho…Mas tal realidade ainda demoraria gerações…Nada que lhe dissesse directamente respeito, a menos que a Federação aumentasse os impostos para colocar mais uma nave no espaço ou para ampliar as estações lunares de onde estas partiam…

O que lhe chamou a atenção foi algo de mais terreno, mais premente, mais imediato, as notícias do Vaticano, que até a um ateu como ele exasperavam pelo seu arrastar…

-“Mas que porra, até a eleição mais limpa demora menos tempo…”-Suspirou, um pouco exasperado pelo espaço que este assunto ocupava em todos os noticiários católicos. Por curiosidade decidiu ir ao teletexto, mais especialmente ao sector das notícias temáticas, nomeadamente crimes.

Nada de relevante a não ser...A referência à morte de um Cardeal, “misteriosamente assassinado por desconhecidos” que Gabriel sabia ser um dos líderes dum dos lobies que lutava pela eleição de um Papa afecto a este grupo de pressão.

Se não fosse o facto do amigo estar a trabalhar para o Vaticano quando desapareceu, ele teria deixado passar o caso em branco, (e que raio, não se assassina um Cardeal, ainda para mais daquele quilate!) mas sendo assim...Precisava de uma base de dados, mas esta estava ocupada...Teria de esperar, e como o sono era o melhor conselheiro...

Foi acordado dai a algumas horas pelo alarme do descodificador que lhe indicava ter “convencido” o computador.

Ainda meio a dormir, pegou nas três letras inseriu-as sendo que o ecrã se iluminou. Uma das pastas tinha a sigla “-DL –“ , ele carregou nela e de imediato o ecrã se dividiu em dois com um mapa idêntico ao do cofre mas onde se destacava um pequeno edifício (na primeira metade), estando na segunda, uma parte do mesmo mapa, mas com as três letras sobrepostas sobre uma rua, sem se destacar mais nada.

Pediu a identificação do edifício, aparecendo então detalhadamente toda a informação disponível -Tratava-se de uma pequena estação de comboios, aparecendo “-DL” sobreposto ao número de uma caixa postal, seis, portanto o da chave...

Ou seja, já tinha uma pista por onde ir, mas se pudesse ter mais, as coisas estariam ainda mais facilitadas...Mas por onde quer que pensasse nada lhe ocorria…Além dos poucos elementos tidos, tinha a chamada “branca de investigador”, fenómeno conhecido entre os investigadores como vazio total de ideias…Fumou um cigarro e decidiu beber um café…Saiu para a rua, indiferente à sujidade que caracterizava estas desde há muito tempo…”Barcelona poderia ser uma das mais belas cidades que conhecia, mas havia coisas que não mudavam…” Ao beber o café sentiu o amargo deste e o amargo do já antigo mercado único não ter chegado ao café…E sentiu, pela primeira vez cidade de casa, do café, do café português, o melhor para si…amaldiçoando o seu eterno esquecimento em cada vez que viajava não trazer um saquinho do café lusitano…(ao contrário de conhecidos seus, autênticos viciados que cada vez que viajavam levavam o café atrás e até mesmo um fogão portátil para o fazer…). Como na maldita “calha” vigorava a irascível lei de “zona sem fumo” e de alguns polícias estarem vigilantes, violar por violar a lei, ao menos faria tal no escritório de Carlos…A ressacar a nicotina atravessou a rua e, por acaso os seus olhos encontraram a primeira página de um jornal onde vinha a notícia da morte do Cardeal que vira à pouco nos noticiários…Era isso! Não tinha nada a perder…Apressado chegou ao escritório e inseriu o nome do Cardeal no computador, aparecendo de imediato um resultado:

“Vito Calderone, 56 anos, principal líder de uma das correntes mais poderosas que se destacaram na oposição ao derradeiro Papa. Actualmente liderava as negociações com outras correntes, destinadas a formar uma aliança para uma eleição “mais consensual” no Conclave (1). Se esta aliança se concretizar, e apesar da oposição da ala mais conservadora, a eleição estará assegurada.

Por palpite, procurou mais nomes de outros Cardiais, surpreendendo-se por, na base de dados estar o nome e pequeno currículo de todos os directa e indirectamente envolvidos na escolha, “por coincidência” metade deles falecidos no espaço de um ano, sendo que o único grupo ainda “imune”, era o da ala conservadora...

E ainda havia mais... DL correspondia a outra base de dados idêntica, mas vazia...Ora como cada uma correspondia a correntes rivais, esta deveria ser mais uma que, por qualquer motivo ainda não esclarecido, não tinha qualquer dado. Ou talvez este estivesse no cacifo...

Não havia mais tempo a perder.

Depois de ter deixado o escritório como o encontrou, mas deixando o computador preparado para o caso de o ter que consultar à distância, transformando-o para servir como seu terminal. Despediu-se rapidamente de Barbara, sendo vago em pormenores, dizendo-lhe apenas que iria seguir uma pista e, um tanto ou quanto pudicamente pedindo-lhe “fundo de maneio…” esta entregou-lhe o cartão bancário de Carlos e o código através do qual dinheiro não seria propriamente um problema…E também lhe deu envelope (com um código no seu interior) e um número de telefone para ela ligar no caso dele não dar notícias em 98 horas

-Se algo me acontecer telefona-lhe, lê o código e pede para me localizar.

Por mera precaução mandara colocar numa clínica privada um localizador debaixo da sua axila direita, sendo que, valendo-se dos seus conhecimentos, falara depois com um amigo que trabalhava numa central de satélites, podendo por isso localizá-lo facilmente, em qualquer lugar da terra. Fizera tal ainda com Patrícia viva e para ela não se inquietar em caso de uma ausência mais prolongada em casos que ele não lhe poderia revelar o cariz deste. Depois dela morrer o trabalho minguava e já não tinha ninguém que se realmente preocupasse, no entanto o localizador lá estava e que providencial ele poderia ser neste que parecia o mais complicado dos seus trabalhos…E pelos menos Barbara não teria a angustia de ver perdida aquela que poderia ser a sua última esperança em encontrar o marido.

De seguida regressou a Portugal, à sua cidade, ao Porto, foi até casa, fez as malas, onde incluiu o bilhete para Roma de Carlos e saiu de maneira a ultimar os derradeiros preparativos antes da partida. Felizmente para si o bilhete era especial, não tinha data de partida, um privilégio que julgou ao alcance de quem contratara o amigo. O aborrecido de tal era ter que fazer novamente a viagem até Barcelona, pois a avião para a antiga capital do Império Romano tinha de ser lá apanhado, chatice, mas antes havia coisas mais importantes a tratar…

Antes de seguir para Roma, decidiu fazer um desvio até ao seu escritório e armazém, onde iria recolher alguns dos objectos, sem os quais não se atreveria a aprofundar um caso.

Dai a pouco estava sentado à sua secretária, fazendo o inventário do que iria usar. A maior parte das coisas comprara-as, tal como o descodificador, numa espécie de mercado paralelo (onde além dos investigadores privados também se abasteciam alguns serviços secretos de países secundários), outras aperfeiçoara-as, adaptando-as aos seus métodos, e um número menor tinha sido inventado por si. Fora o espírito paranóico, sem o qual achava impossível subsistir naquela profissão, e um certo gosto e habilidade em engenhocas que o levara a fazer algumas “máquinas de bolso”. Além de despertar poucas ou nenhumas atenções ( não havia um fornecedor em caso de bronca), ele saberia exactamente com o que podia contar.

Apesar de toda aquela parafernália e cuidados, pelo pouco quilate dos casos, esta era quase inútil, conservando-a principalmente devido ao excessivo cuidado que punha em tudo o que fazia. A alguém do calibre de Carlos tal seria justificável, mas para ele...Só fazia a sua existência ser ainda mais discreta, pois a investigações em que se metia raramente deixavam rasto...

Ao fim de uma hora tinha a “bagagem” pronta, só faltando...

Discou o número de telefone de um conhecido seu dos tempos de faculdade, assistente num laboratório, antigo brilhante estudante de química, mas que erros antigos impediram de exercer a actividade. No entanto, e graças a algum dinheiro, e o gosto por algum risco, prestava alguns serviços a Gabriel.

-Marco?

-Sim?

-Sou eu, preciso de um favor muito especial...

-Que é…?

-A cópia perfeita dum rosto em pele artificial e algumas cicatrizes.

-Tens uma fotografia tridimensional?

-A do rosto vou-ta passar agora pelo comunicador, a do resto mais daqui a um bocado. Preciso delas o mais rapidamente possível, digamos que em...meia hora depois disso fechar.

-Já sabes que as urgências se pagam a dobrar...

-Se fizeres o serviço bem feito ainda ganhas um bónus...

-Passa por aqui às nove e meia.

Depois de, nalgumas fotografias tiradas aquando de umas férias comuns, isolar, ampliar e finalmente enviar a imagem das cicatrizes, Gabriel esgotou o tempo a pensar na sua ideia: O plano dele era simples, apesar de arriscado: ir-se-ia fazer passar pelo antigo camarada, e por isso o rosto e as cicatrizes eram indispensáveis. O facto de pesar uns bons dez quilos a mais (único pormenor indisfarçável...) seria desculpado por “umas férias mais puxadas” e medicação que o fizera engordar. Quanto à voz, o problema seria facilmente resolvido por um pequeno sintetizador, que depois de familiarizado com essa voz (extraída de um filme caseiro, feito por ocasião de uma das visitas anuais) a imitaria genuinamente). Mais alguns telefonemas depois tinha a identificação de Carlos, praticamente tão genuína como a original, dados extraídos à mesma base de dados, inacessível mas nem tanto desde que se tivessem os conhecimentos adequados...Toda a identidade reunida num simples cartão magnético; desde as multas de trânsito, cadastro, ficha médica, situação financeira, etc...Apesar de rotineiro e antigo, o cartão nunca deixara de o espantar. Praticamente tudo sobre nós à mercê duma merda de plástico ou lá o raio que fosse...! De certa forma invejava os tempos “menos modernos” que não tinha vivido, onde para cada coisa, função havia um cartão diferente, bastando perder um deles para, de certa forma, podermos ter um passado, ou parte dele, diferente...Pelo menos nessa altura as pessoas deveriam sentir-se livres, pensava frequente e ingenuamente Gabriel, apologista do uso ilimitado das novas tecnologias, mas amante dos tempos antigos, dos saudosos tempos do século XX e princípios do XXI, antes dum enorme salto tecnológico que alterou a vida de quase todo o planeta, lançando-o definitivamente na era tecnológica de ponta onde quase nada era impossível, onde as previsões de antigos visionários eram a mais pura das realidades…Com isso se resolveram parte dos problemas sociais e de saúde da humanidade, com isso se ganhou as estrelas, já que a exploração espacial era uma realidade permanente e em franca e inexorável expansão, mas com isso se perdera o resto de humanidade individual, perdera-se a liberdade…Tecnologia omnipresente, omnisciente, prepotente, permanente, sufocante, duma forma perfeitamente “Woroeliana” a fazer lembrar que “1984” era uma realidade bem perto, só desculpada por não se viver em ditadura, por supostamente a liberdade de movimentos ser uma realidade ao alcance de todos, o livre arbítrio estar na mão de todos…”Tretas!” Todo e qualquer movimento era vigiado por olhos desconhecidos…Só homens como ele é que se poderiam movimentar relativamente bem, por conhecerem tão bem o sistema, por terem de o conhecer para levarem as suas investigações a bom termo…Não fosse pelos velhos problemas intrínsecos a quem não beneficiou da parte boa dos “novos tempos” quase que invejava a liberdade dos países do terceiro mundo…Já lá fizera alguns trabalhos, e viver no medo de ser vítima da criminalidade galopante ou de algumas doenças não controladas era algo que ele jurara nunca mais viver…Mal por mal era relativamente livre, e não fosse a sua teimosa persistência em se preocupar com o destino dos seus concidadãos e dos seus direitos e liberdades, a vida até nem seria assim tão má…Mas má era realmente ela, pois havia a ausência de Patrícia, havia este seu vazio existencial…só colmatado temporariamente por este caso que lhe insuflara um sopro de uma vida que ele julgara ser impossível…A vida era algo que ele de facto não percebia definitivamente…

Assim, á hora marcada entrou pela porta dos fundos do laboratório, que, apesar de importância menor não deixava de ter as câmaras.

Enquanto o ajudava a colocar a máscara e as cicatrizes, Marco dava-lhe algumas instruções úteis:

-Em princípio ela deve aguentar vários dias, desde que não a exponhas a fontes de calor ou frio extremas. Desde a última vez que precisas-te de mim fizemos algumas alterações, aumentando a sensibilidade desta pele possibilitando que ela agora sangre e cicatrize. Só um conselho: mesmo para um arranhão pequeno é aconselhável que o trates de imediato, pois, apesar da máscara ser uma espécie de organismo vivo autónomo, é relativamente fraco como sistema, bem como o seu sistema imunitário. Com auxílio de cicatrizantes o processo passa despercebido, mas sem eles podes sangrar toda a reserva; a propósito, preciso de algum sangue teu para ela.

-Desde que fique com o suficiente...

-A quantidade é mínima...Já agora, qual é a grande aventura?

-Sabes muito bem que não to posso revelar....

-Sim, mas fico curioso. Os artigos que te faço são, no mínimo...pouco comuns. Tens que concordar que, mesmo para um investigador és excêntrico...

-Prefiro a expressão “prevenido”. A propósito, além das duas cópias que vou levar comigo nada pode ficar. E vais destruí-las à minha frente...

Desta forma Gabriel continuava a ser invisível, talvez demasiado, passando despercebido, e não estando a sua agenda à altura do talento...

Apesar de naturalmente o ignorar, iria precisar de toda a sua experiência e habilidades para o caso em que estava prestes a se meter, um caso que iria alterar a sua vida para sempre como ele estava longe de imaginar…

A ideia de se fazer passar pelo amigo ocorreu-lhe e pareceu-lhe a melhor solução de forma a tentar perceber o que lhe acontecera. Se alguém eliminou ou neutralizou Carlos, também o tentaria fazer a Gabriel se descobrisse que este ou estava na mesma investigação do camarada, ou estava no encalço deste…A grande vantagem é que Gabriel estaria à espera de tal, estando também especialmente atento a essa eventualidade…

Viajou de novo até Barcelona, de onde deveria apanhar o avião até Roma, agora na pele de Carlos, viagem que decorreu sem problemas, tendo chegado ao fim de pouco tempo à capital do estado regional transalpino; alugou um carro e dirigiu-se ao hotel “Morgana”, com mais de duzentos anos, situado na zona antiga de Roma ; para seu grande espanto, a reserva era de uma suite luxuosa, nada ao estilo do amigo, espartano por natureza.

-”Talvez se tenha aburguesado...”-Pensou, mas salvaguardando qualquer outra hipótese, pois, apesar de tido até ali corresponder a alguma normalidade, ele tinha o pressentimento de algo em relação ao amigo; qualquer coisa lhe dizia que este desaparecimento estava longe de ser vulgar.

Nunca até ali Gabriel se aproximara tanto da verdade, de uma certa verdade.

Sem dormir, e esquecendo-se de estar a pé há já 48h, instalou alguns dispositivos em si, preparou o seu estojo pessoal e dirigiu-se à estação de comboios assinalado no mapa e guiado pelo guia semi-automático do carro. Deveria ter feito uma gravação para o disco, mas achando que tal poderia comprometer a investigação, optou por só voltar a falar para o gravador quando o caso estivesse encerrado.

Apesar de toda a beleza e esplendor da cidade, aos quais, numa visita normal lhe seria sensível, todos os sentidos de Gabriel estavam concentrados na estação, para onde foi levado pelo carro sem mais demoras, mal inseriu o percurso no ordenador, apenas alguns sensores do tamanho de uma unha que substituíram parte dos taxistas do mundo moderno, rentabilizando e recuperando moralmente o negócio, pois desta forma se evitavam os milhares de quilómetros feitos por alguns profissionais menos escrupulosos que, mal notavam estar na presença de um turista estranho às suas paragens, escolhiam todos, menos o percurso adequado até ao respectivo destino...O mau disto foi a ida à falência das empresas de taxistas, o bom foi o facto das empresas “rent-a-car” terem positivamente substituídos os taxistas e com isso lucrarem muito para além do previsto quando foram criadas, pois devido à automação dos veículos eles passaram a cumprir os seus dois papeis na perfeição. Novamente o factor humano esquecido em favor das máquinas, novamente um admirável mundo novo, não ao virar da esquina, mas já bem dentro das nossas ruas, de nós…

Quando chegou verificou que a estação de comboios, não passava de um vulgar terminal de metro, tão vulgar que mal se diferenciaria de outros de qualquer país, facto a agradar ao investigador, por tal significar discrição. Com efeito, mal se aproximou da caixa de correio, o local estava vazio, ou parcialmente, já que as omnipresentes câmaras de filmar continuavam a garantir a impossibilidade da solidão neste mundo. Havia pois que ser discreto e de não dar, aliás, de dar o menos possível nas vistas…

Foi assim que um “Carlos” aparentemente descontraído procurou e abriu o cacifo número seis, de onde retirou uma pequena caixa, guardada discretamente no bolso interior do casaco, bem junto de uma das três armas usadas por si, e saiu calmamente do local.

Antes de o abrir, passou o “scanner” (um dos instrumentos que trouxera consigo) pelo caixa, descobrindo no seu interior apenas uma estranha e velha chave, com as já irritantemente, e ainda misteriosas letras gravadas no cabo.

“-Outra chave! -Já começa a ser mania...” murmurou, desanimado, enquanto procurava na memória a lógica para aquele pedaço de metal.

-Triplo idiota, é claro!

Através do seu micro computador acedeu ao de Carlos onde tinha deixado digitalizado o mapa de Roma, procurando neste a segunda rua com as letras marcadas. Não era bem uma rua, era antes a “Via Cláudia” situada nas imediações do Coliseu e, por coincidência nas imediações do seu hotel.

Ao fim de meia hora entre o trânsito nocturno, Gabriel encontrou-se na rua.

Teria apenas de verificar todas as portas, o mais discretamente possível, conferindo a chave com a possível fechadura.

Eram dezenas de casas, mas a perspectiva de começar a pôr fim ao mistério encheu-o do ânimo que a falta de sono começava a roubar.

No entanto, ao fim de duas horas, os resultados foram nulos...Estranhamente a chave não servia.

Metódico, voltou a confirmar o local e as fechaduras, sem resultados...Entretanto eram já 3h da madrugada, faltando outras três até amanhecer.

Só, no meio da rua sentiu-se a desanimar, afinal, para além do tempo sem dormir havia ainda o de jejum, ambos reduzindo a sua capacidade de raciocínio, e a sua dieta de café e cigarros eram boas para a linha, mas péssimas para o tal raciocínio…

A falta de lógica era em si um contra censo: Carlos nunca deixaria as pistas por ele até ali encontradas, para depois o levar a um beco sem saída...Teria que haver lógica...acima de tudo, teria de haver lógica!

Acima.

Olhou mais cuidadosamente em redor, mas com particular atenção para o chão. Roma era conhecida por variadíssimos motivos, entre os quais figuravam as catacumbas, tão antigas como a própria cidade, por isso, se a resposta não estava à superfície...

A tampa de um esgoto com a marca “DL” veio confirmar está hipótese. E a chave até se adequava à ranhura que esta tinha…

-Ora merda, se lá calha haver ratazanas! -Suspirou, relembrando medos antigos, e preparando as suas lentes para visão nocturna. Estas, eram constituídas por milhares de nano-robôs, que, essencialmente imitavam o olho humano, mas dispondo da capacidade dos animais nocturnos, ampliando um mínimo de luz ao ponto do utilizador destas lentes poder ver de uma maneira tão clara como se os subterrâneos tivessem luz, e sem dar nas vistas como daria certamente se utilizasse uma lanterna.

Inseriu a chave, girou-a, tirando a tampa, entrando, e voltando a colocá-la no sítio, trancando-a, tentando dar a impressão para o exterior que nada se passava de anormal.

O cheiro intensamente nauseabundo não desenganou Gabriel: tratava-se de um esgoto, à antiga, sem os desanuviadores de cheiro, ou sistemas de higiene activa, destinados a, mesmo nos esgotos, diminuir a probabilidade da eclosão de qualquer doença que pudesse atingir a população do exterior, fragilizada por séculos de alimentos transformados, destinados a serem mais saudáveis, mas que acabaram por tornar vulnerável o organismo humano a vírus não conhecidos. O que vale é que a maior parte das doenças tinham sido quase erradicadas, sendo que as que existiam por incapacidade da ciência as eliminar encontravam-se dentro de um certo controlo, o que fez com que a humanidade (pelo menos a do “mundo tecnológico”) estivesse a salvo de pragas há já algum tempo. Como de facto havia um controlo de entradas entre as ditas nações e as menos favorecidas, a eclosão era minorada, ao ponto dos sofisticados laboratórios terem tempo de produzir vacinas ou fármacos para combaterem esse mal. Por isso estranhou esta falha de higiene numa das mais célebres cidades do mundo…No final, quando tudo estivesse resolvido enviaria uma nota anónima de desagrado perante esta falha, mas antes…

Com uma mão segurou-se ás escadas, enquanto que, com a outra, segurava a sua “automática”.

Depois de ter chegado ao fundo do túnel, reparou que este era de reduzidas dimensões e relativamente limpo, dando a ideia de que a sua função de esgoto há muito que tinha passado à história, ou seja, o cheiro inicial deveria vir de outro lado…A água suja e o cheiro desagradável deveriam ser devidas a infiltrações...Pensou, enquanto começou a percorrer cautelosamente o “cano” de 1,60 de altura, por outro tanto de largura, o que lhe dava uma sensação desagradável de claustrofobia. Aqui e ali, pequenas ramificações poderiam significar novas pistas, se não fosse o facto de serem demasiado estreitas para um ser humano caber nelas. Apesar do relativo bom estado, o túnel aparentava ter algumas largas centenas de anos, ou provável mente mais. Como se encontrava na parte antiga da cidade, a hipótese desta construção ser romana não lhe pareceu ser assim tão descabida. Dificilmente controlou a sua ansiedade, verificando as paredes a cada passo que dava. Por isso a primeira hora desapareceu de repente. Pelos seus cálculos deveria ter andado à volta de um quilómetro. “Muito pouco, ou demasiado”, pensou, enquanto olhava o relógio apreensivo. A resposta deveria estar por ali algures, mas onde? Já tinha virado de sentido pelo menos duas vezes, e a ligeira inclinação era sinal de que o túnel penetrava ainda mais no subsolo, mas até que ponto? Se havia um local para se esconder algo, poderia muito bem ser ali...A ausência de ruído e a fechadura da tampa do esgoto eram as melhores garantias de privacidade...Tanta, que o único som a chegar aos seus ouvidos era o da sua respiração, cada vez mais ansiosa. Definitivamente a falta de acção era-lhe prejudicial…Houve um tempo em que era perfeitamente imune a este tipo de pressões, em que a sua frieza era uma das suas características…Mas depois de alguns anos com “casos da treta”, de perigosa inacção muita bebida e o remoer de dolorosas memórias antigas tinham-lhe enfraquecido as qualidades. Havia que ter calma…Parou um pouco, acendeu um cigarro, respirou fundo e decidiu continuar, agora mais racional, se bem que o estado de espírito se manteve um pouco ansioso ainda durante uma distância semelhante, até que os seus olhos treinados, entre as inúmeras e pequenas falhas das paredes, detectou uma “invulgar”, pela sua forma geométrica; como esta estava à altura do solo, ele teve de se inclinar, pondo-se de joelhos, verificando então que a falha não era mais do que as letras DL dispostas na posição horizontal, sobre uma pequena saliência. No entanto, fora este pormenor, tudo à volta estava tal como o túnel. Com o olhar e o tacto tratou de procurar então qualquer coisa, sem resultados...Até que, ao pressionar com mais força as letras, a saliência foi ligeiramente para dentro, ouvindo-se, ao mesmo tempo, o som de pedra a deslizar, enquanto lhe caia sobre a cabeça alguma poeira. Instintivamente olhou para cima, deparando então com uma abertura, que dava acesso a uma câmara.

Antes de penetrar na abertura, através de sensores térmicos (equipamento padrão que levava para todo o lado) certificou-se que o local estava vazio. Estes sensores dectetavam o calor de qualquer coisa maior do que uma barata, emanando o corpo humano uma quantidade determinada deste calor, até mesmo cadáveres recentes o poderiam imitir. Graças a eles e visualizando tal no seu pequeno e inseparável computador portátil poder-se-ia saber quantas pessoas estavam num determinado local, podendo evitá-lo se o utilizador assim o entendesse.

Fora graças a eles que Gabriel saíra ileso de algumas situações delicadas, em tempos idos, tempos que pareciam agora estar de volta, pois a cada paço que dava ele tinha a sensação de estar perante um caso de características bastante peculiares.

E não podia estar mais certo: este era o caso da vida dele, um caso que iria mudar a sua vida para sempre.

(CONTO PROTEGIDO PELOS DIREITOS DO AUTOR)

Miguel Patrício Gomes
Enviado por Miguel Patrício Gomes em 28/09/2006
Reeditado em 27/06/2008
Código do texto: T251194
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