O ENVIADO -Parte I-

Crónica de tempos que hão-de vir

A um Deus que eu ainda não encontrei

e que penso ter perdido para sempre algures no verão de 2006

E para ti, a mais sublime das sublimes, com amor e amizade para sempre

Prólogo

-Senador, a presença dele foi confirmada, ele não morreu, ele ainda existe!

-Então temos de o encontrar, ele é a Salvação!

-Acredita mesmo nisso? As nossas fronteiras estão cada vez mais enfraquecidas, e os bárbaros mais fortes, temo que o fim do Império seja uma questão de pouco tempo, tempo que já foi romano, mas que agora já não o é...

-Tenho a certeza absoluta, pois povo nenhum derrota um Império governado por um Deus!

Passaram-se mais alguns meses, meses de um fim lento mas inexorável, enquanto as fronteiras do Império eram cada vez mais permeáveis às incursões de povos estranhos que numa primeira fase não tinham o intuito de destruir o Império, mas que à medida que iam pressentindo as fragilidades da presa tornavam-se cada vez mais ávidos pelas terras férteis e a miragem de um saque fabuloso, o maior saque da história do mundo.

Foi então que o influente senador recebeu um dos seus generais ao qual incumbira duma missão muito especial a mando do Imperador.

-Senhor, os homens que enviei para falar com Ele desapareceram sem deixar rasto!

-Terão sido mortos...?

-É impossível, era o meu melhor centurião e alguns dos seus mais bem treinados legionários

-Então os dados estão lançados, O Império está condenado!

Corria o século III depois de Cristo. No espaço de cem anos as últimas fronteiras do Império Romano cediam como o previsto, Roma foi invadida e saqueada pondo assim historicamente fim ao Império Romano do Ocidente após perto de novecentos anos de duração

Daqui a alguns, penso que muitos, a sucessão de um Papa moribundo despoletará uma das mais graves crises que a igreja católica já viveu ao longo da sua história milenar.

Algum tempo antes e, apesar de alguns dos seus elementos procurarem manter o velho espírito, através do qual uma seita se transformou na mais poderosa das religiões da breve história da humanidade, outros, porventura mais bem colocados e, talvez demasiado pragmáticos, compreenderam que a sua igreja só poderia manter a influente posição entre os seus crentes se se transformasse...Se até ali, uma certa promiscuidade entre os poderes políticos se tornara notória, e até mesmo algum “aburguesamento” dominou as cúpulas, desde que assumiram manter o estatuto a situação só poderia esclarecer-se dentro da própria igreja, e mais particularmente das tais cúpulas, isto perante o incómodo dos elementos já referidos, correntes menos poderosas e mais discretas que, desde a sua fundação nunca tinham deixado de defender os princípios sobre os quais ela fora formada

Os seus líderes foram-se sucedendo, sendo escolhidos pela lealdade e capacidade de manter a ordem, com mudanças pontuais (se bem que pouco significativas...) de forma a satisfazer as correntes mais progressistas que nunca se tinham deixado de se pronunciar. Durante anos a escolha mostrou-se acertada, pois cada Papa revelou ser um excelente gestor dos imensos recursos espirituais e económicos da Igreja e, sobretudo, suficientemente duros para manterem serenas as outras correntes, defensoras de uma linha “mais espiritual e menos materialista”. Mas, inesperadamente o último senhor mostrou ser demasiado dialogante, e os custos revelaram-se inúmeros. Durante o seu prelado novos ventos correram pelos corredores do Vaticano, e a mudança pareceu inevitável, tanto que, quando este começou a definhar adivinhava-se o advento de novos, diferentes e perigosos tempos para os poderes seculares estabelecidos

Contudo, uma facção radical dos conservadores, os ultras dos ultras decidiu por fim intervir em força, perdendo o resto do pudor e decidindo secretamente a eliminação física dos líderes das outras correntes. Clandestinamente, optaram por fazer o rastreio completo dos grupos divergentes e, se caso fosse, proceder de facto à sua eliminação física, pois a espiritual não era suficiente.

Enquanto se escolhia o novo Papa, a máquina entrou em acção e, progressivamente alguns grupos considerados mais incómodos foram-se calando, até restar só um, o menos conhecido, mas também o mais mítico, sendo absolutamente desconhecido para a esmagadora maioria da humanidade. Apenas uma lenda para uma minoria muito restrita. Em circunstâncias normais o assunto teria sido esquecido, mas os velhos senhores negros não queriam deixar pontas soltas, nem que para isso tivessem que caçar lendas.

Entretanto os médicos do Papa davam-lhe apenas um mês de vida, faltando pois um mês para o inicio do conclave que deveria decidir qual o novo senhor da Igreja. Faltava apenas pouco mais de um mês para o início da decisão final, e os radicais continuavam a baralhar os dados da sucessão (nomeadamente lançando nomes de hipotéticos mas nunca elegíveis Papas na imprensa mundial) até receberem a notícia de que já nada havia a temer. No entanto, e, apesar dos inúmeros emissários enviados um pouco por todo o mundo, os resultados eram nulos, sem sequer a existência de indícios, por mínimos que fossem.

Até que surgiu algo, e a caçada recomeçou em força.

O padre, com a pressa insuspeita num religioso, correu através dos claustros, atravessou-os e penetrou na ala dos escritórios mais reservada, percorrendo o enorme e amplo corredor, e detendo-se, por fim, na última porta, cuja metade superior estava debruada a vermelho-carmim.

Bateu na madeira e esperou a ordem de entrada. Mal ouviu a confirmação, penetrou na sala do superior.

-Monsenhor, recebemos a confirmação.

-Onde é que ela está?

-Aqui.

Ante os olhos espantados do Cardeal, imagens em mau estado, e com muitos anos, de um estranho ritual pregaram-no à cadeira: três homens e uma mulher, naquilo que parecia uma velha cave, celebravam algo que se semelhava a um ritual praticamente silencioso, que se resumia a apenas um erguer de taças e ao beber do seu conteúdo, enquanto diziam.

-O sangue de Cristo.

Espantado, o religioso levou a mau ao lábio inferior, gesto raro em si, que denotava um também raro nervosismo. Abriu uma das gavetas da secretária de onde retirou um maço de tabaco. Acendeu um cigarro, aspirou-o profundamente, e disse numa voz onde se confundia a fragilidade dum nervosismo com a convicção duma certa raiva

-Bendito seja Deus, por fim, ao fim de mais de dois mil anos encontramo-los!

O ENVIADO

-ele já está entre nós –

(...)”Quem bebe do meu sangue tem a vida eterna”

(Jo.6,54-58)

1

Gabriel encostou-se ao sofá e olhou o horizonte em tons amarelados, do alto da torre de cento e poucos metros. Estava um final de dia quente, invulgarmente quente, mesmo para um país latino, isto até na óptica do mapa climático que vigorara mais ou menos duma forma estável até ao século vinte estar agora completamente alterado, confundindo temperaturas e estações.

Mais um dia de trabalho a acabar, só faltando mesmo...

Tirou da gaveta do lado esquerdo da secretária um charuto da marca favorita, uma garrafa de whisky de qualidade média, abriu-a e despejou uma boa porção num copo bem grande ao qual tivera o cuidado de acrescentar, como era seu hábito, duas pedras de gelo, acendendo de seguida o charuto enfiando-se de seguida ainda mais no sofá, ainda mais dentro de si e dos seus monstros pouco ou nada sagrados.

Bebeu e fumou lenta e apaixonadamente, sem horas, sem tempo, a não ser o seu. Por isso fumava e bebia no retorno de prazeres antigos, de monstros nunca mortos, resgatados a tempos idos, ou menos recentes, onde a arte do fumo e da bebida não chocava com os resquícios da preocupação acética, que até há bem pouco dominava tudo e todos até ao absurdo, impedindo, por exemplo, um vulgar fumador e bebedor assumido de fazer um simples seguro de saúde...Felizmente que agora a situação era outra...E bastava ser minimamente perspicaz e visionário para se fazerem bons negócios, como aquele que o levou, pouco tempo antes do fim da perseguição sistemática aos fumadores, ao esquecido antiquário, situado na parte velha da cidade, onde se tornou o feliz proprietário de uma enorme reserva de cubanos, feitos nos “maus tempos” por tuta e meia.... Por isso, neste gesto rivalizava com alguns dos senhores que de vez em quando o empregavam. Quanto à bebida…Devido às implicações sociais, a nova “lei seca” durara pouco tempo, e acabara quando Ela desaparecera altura em que ele para fugir desse fantasma começara a beber duma maneira bem pouco regrada, mas “que se lixe!” o único que se podia importar era ele, ora ele não se importava nada, porque nada tinha a perder, a não ser a si próprio, algo que acontecera no dia em que Ela morrera.

Depois de esvaziar dois copos e de guardar o resto do charuto na respectiva caixa (não sabia se era assim que se fazia, mas, à falta de mais informação improvisava...), e também como era seu hábito desde aquela noite negra de há dois anos, tirou doutra gaveta um “colt”, pistola que passara de geração em geração da sua família paterna desde a I Guerra mundial; passou pela II, pelo Vietname e pelas diferentes guerras do golfo e outras escaramuças bélicas americanas, e outras idiotices castrenses daquela nação antes de chegar à fase recente de declínio, até chegar a ele, o último da linha. Olhou-a, como sempre, com um misto de indiferença e de seriedade, tirou o carregador (tinha-a sempre carregada, tanto por ser uma das suas armas de serviço, como por mania) e certificando-se que a alma não tinha uma bala perdida, apontou-a à cabeça e carregou no gatilho, ouvindo o estalar em seco…”Se ao menos eu tivesse coragem…se ao menos o homem que já fui estivesse agora aqui…tudo teria um fim, tudo seria mais fácil…” Mas não estava, esse homem morrera naquela Noite com Ela, e a sua sombra mal tinha coragem para se erguer e para tentar viver. Ao fim de mais alguns minutos a segurar aquele objecto de uma morte impossível, guardou-o no coldre do seu tronco e levantou-se, saindo algo tocado do escritório, dirigiu-se ao elevador mais próximo. Deveria ter gravado o que sentira, mas como era sempre a mesma coisa e como de facto ninguém o visitaria quando morresse, borrifou-se para o assunto, chegando mesmo ao ponto de deixar o pequeno gravador no escritório, em local seguro como mandavam as regras, pois tinha já demasiadas chatices na vida e poder ser sancionado por um deslize era a coisa que menos lhe interessava. Em alguns segundos estava na rua. Mal dobrou a esquina, ouviu, vindo do beco próximo sons de alguém a ser violentamente sovado., enquanto que, do outro lado da rua, a polícia cercava um pequeno assaltante, cujo pacote de Supermercado debaixo do braço, indicava ser um “assaltante de fome”, isto é, inserido nas massas populares que, a cada crise económica se amotinavam assaltando os “Super-Mercados” da zona velha, menos bem guardados. O hábito, portanto...

-”O tipo está limpo?

-Não, já tem cadastro por...

-Não interessa!”

E de seguida os dois agentes despejaram os carregadores sobre o infeliz.

Nada de anormal...Pelo menos desde que o governo regional decidiu (com a anuência do Europeu...), para aliviar as cadeias sobrelotadas, que qualquer cidadão com cadastro apanhado a reincidir estaria sujeito às medidas livremente arbitrárias que os polícias decidissem apropriadas. Infelizmente para aquele, apanhou alguns agentes de espírito menos humanitário...

A medida em si não diminuiu significativamente o crime, fazendo, pelo contrário, que os potenciais apanhados só se tornassem mais violentos, tornando cada detenção numa quase batalha de ruas. No entanto, como, “de facto” as prisões ficaram menos cheias (com o contraponto das morgues mais cheias), e as ruas mais policiadas, a população votante mal se manifestou.

Afinal, incinerar um bocado de democracia por uma nesga de tranquilidade aparente sempre fora uma das estratégias favoritas de alguns políticos...

Como pedra de toque nesta ideia peregrina, aos sortudos que não fossem mortos, e que tivessem a prisão como destino, eram tirados todos e quaisquer direitos cívicos e regalias sociais. Assim, além de se pouparem alguns milhões em reformas, com a ausência de direitos, dispensavam-se advogados e performas jurídicas, tornando os tribunais num mero local de passagem rápida, ao contrário de tempos recentes.

Como desde que “aquilo acontecera” e especialmente ao fim de mais um dia de trabalho, Gabriel sentia-se só, vazio.

Por isso, e mais por carência afectiva do que por qualquer motivo racional, foi ao cemitério, como ia todos os dias.

Inseriu o seu cartão na portaria e entrou, dirigindo-se à Sala dos discos.

Depois de se identificar, através da sua marca genética inserida no mesmo cartão fez o pedido:

-Queria o disco de Patrícia Nida.

-Aqui está, pode usar o estúdio 5.

Como um “zombi”, mal recebeu o disco, Gabriel só passou a ter o estúdio em mente. Como um zombie abriu a porta, sentou-se na poltrona de couro artificial, um tanto coçado pelo uso, mas ainda em bom estado, e inseriu o disco no braço esquerdo da poltrona onde havia uma pequena reentrância.

Em poucos segundos o rosto duma mulher apareceu no ecrã que ocupava toda a parede à sua frente.

-Olá Gabriel, como tens passado?

-Vou tentando...Os dias demoram sempre tanto a passar...

-E o trabalho?

-Minha querida, desde que tu...bem, que tu...

-Que eu morri –“Bendita seja a sinceridade das máquinas, pensou tristemente Gabriel”

-Sim, que tu...As coisas pouco mudaram.

-Eu sei meu querido, sempre que aqui vens que o dizes.

-Não há forma de aparecerem casos interessantes, quando tenho casos...E depois, sinto a tua falta...

-Já passaram dois anos, é tempo de voltares a encontrar outra pessoa.

-Não! Isso nunca mais acontecerá. Aventuras de uma noite, idas a prostitutas ou coisas do género admito que aconteçam, especialmente com a carga etílica com que acabo os dias, mas voltar a ter alguém como te tive a ti, é impossível. A nível físico tenho e hei-de ter escapes, embora estes moralmente me repugnem. Desde que partiste que perdi o rumo, que não me reconheço, que sou um mero farrapo quase e só guiado por instintos primários. Tu eras, és, o meu céu, a minha terra, o meu todo, a razão da minha falta de lógica, o sangue do meu coração, a estrela do meu universo, o verso que faltava ao poema da minha vida, eras um sentido, um todo sem o qual a minha parte nada é, eras a razão da minha inevitável falta de fé, eras o vento da minha montanha, o eco perdido do meu promontório, a luz da minha noite…Sem ti nada sou, nada serei…Amo-te, continuo a amar-te. Os únicos momentos de felicidade são estes, quando te vejo -Disse, enquanto ampliava a imagem, passando a ver todo o corpo da falecida mulher.

-Tu amas uma recordação, uma máquina, pois por muito que sinta, que eu sinta, não passo disso mesmo, duma memória numa máquina.

-Amo-te.

-Não a mim, sou apenas a imagem e a memória...

-Mas tão real...Mas porque é que os cemitérios não são como antigamente...Agora ter-te aqui, comigo e não te poder tocar, ter-te tão perto, mas tão longe...-Disse, enquanto se inclinava para poder tocar no ecrã, deixando as lágrimas rolarem sobre o rosto, num dos raros momentos em que demonstrava a tristeza profunda em que deixara cair a sua vida desde o momento da morte de Patrícia.

Passadas quatro longas horas o investigador Gabriel Brown saia do cemitério, com o ar de indiferença que sempre o caracterizara desde que Ela morrera, encaminhando-se triste, mas dolorosamente para casa.

Mas no entanto ele nunca parara de se indagar sobre este novo credo. Em tempos, antes de conhecer Patrícia e ainda quando ela fora viva, ele fora um crente moderado, acreditava em Deus, no pouco que conhecia da Bíblia, em Jesus, na sua palavra e no advento de novos tempos, não frequentando a Igreja (excepto nas festas católicas, como O Natal, A Páscoa e noutras ocasiões, alturas em que estava sempre presente), mas fora um crente e nunca deixara de acreditar. Apesar de materialmente nada ter beneficiado com este crer, ele tivera durante anos a paz interior de que necessitava, e isso era a principal razão de acreditar nos dogmas da sua religião, na existência de uma divindade que amara quase tanto como a sua própria vida. Contudo tudo mudou na noite em que a mulher morreu. De um momento para o outro sentiu-se abandonado, revoltado, vazio, e em vez de se agarrar à religião para suprir o novo e dramático vazio, deixou-a em definitivo, dando o enorme salto de crente para ateu, sem sequer passar, uns minutos que fosse pelo agnosticismo, mergulhando só no abismo de solidão surgido quando ela partiu. Ao invés, abraçou o novo e frio credo da tecnologia: graças ao facto desta permitir que Patrícia não desaparecesse totalmente, ele abandonou definitivamente a Igreja, procurando antes o cemitério onde revia a mulher vezes e vezes sem conta, onde sentia o vazio preenchido, apesar de (paradoxalmente) saber a cada nova visita que esse vazio existia, pois ele sabia que ao fim ao cabo não deixara de falar com uma máquina com um centelha de espiritualidade. Mas, como a amava demasiado, não a queria deixar, não se queria deixar sem a sua presença.

E este prodígio, esta máquina “maravilha”, começara no entanto a ser desenvolvida alguns anos antes dele nascer, por um punhado de homens e de mulheres que, impossibilitados de prolongar indefinidamente a vida humana por meios naturais, decidiram faze-lo a nível cibernético, dando-lhe depois um cunho espiritual suficientemente sedutor para aqueles e aquelas que ainda odiavam ainda mais do que eles a morte, as trevas. Podia até haver vida depois da morte para algumas religiões, mas para estes cientistas visionários dos primórdios do século XXI o desafio era numa vida normal poder ter acesso indefinido a outras vidas, bem longe do credo espiritual, bem perto da ciência exacta, o seu verdadeiro e único credo.

O pressuposto original era muito simples: desde que tivesse a capacidade de racionalizar o sentido, que um ser gravaria tudo aquilo que sentia, que vivia para um dado registo confidencial, que nem mesmo os pais de filhos menores teriam o direito de visionar, sendo gravemente sancionados por tribunais implacáveis para os prevaricadores. Era como que um diário que deveria acompanhar o seu dono até ao seu último suspiro. Lá deveriam dizer tudo, mas tudo o que lhes passava pela cabeça ou o que faziam, deveria pois ser um registo fiel da sua personalidade. Depois, quando falecesse essa pessoa, inseria-se o “registo da vida” (nome pelo qual era conhecido entre os utilizadores) num potente computador que dispunha da mais avançada inteligência artificial disponível. Em seguida o computador faria a gestão do gravado e quando contactado por alguém ele agiria como a pessoa falecida, respondendo a perguntas baseado nas memórias do falecido(a) ou, no caso de perguntas novas, na maneira como a pessoa as poderia responder baseado no seu padrão comportamental registado.

Claro que para isto funcionar a pessoa teria que dizer toda a verdade para o registo, não deveria ter um comportamento dúbio, ou se o tivesse era de esperar que o computador agisse em conformidade de tal, isto é, agindo como a pessoa o que dificultava a vida aos entes queridos que quisessem reviver o extinto…Por isso, e apesar de não se vedar o seu uso, tal era contra indicado a seres com patologia psiquiátrica gravosa (como os esquizofrénicos) ou para os mentirosos patológicos…De maneira a evitar falcatruas, o estado recompensava de forma generosa os mais genuínos e penalizava os mentirosos…E como? Era muito simples: de forma a garantir a tal clareza do processo, cada ser que aceitava gravar a sua personalidade era acompanhado ao longo da vida por técnicos da maior segurança e credibilidade (conhecidos pelo pouco original nome de “Controladores”) que viam o que estava gravado e conferiam se era verosímil ou não com uma dada conduta, expulsando os prevaricadores do processo. Para assegurar a confidencialidade do processo os próprios técnicos eram controlados por uma dura e implacável legislação que lhes garantia sérias penas de prisão se violassem a confidencialidade, além de serem escolhidos a dedo para a sua função.

Mas recuemos um pouco no tempo e verifiquemos como um plano algo incumum conseguiu que toda uma sociedade ocidental o aceitasse, Igrejas inclusive…

Naqueles tempos o poder Europeu (pois é de lá que veio a invenção) depois de uma série de lideres notáveis começava a viver outra geração ligeiramente mais fraca, o que a alguns dos homens e mulheres do poder, algo visionários, fez temer que a União estivesse em perigo…A médio longo prazo temia-se a degeneração da liderança, logo do fim da União…Gostavam que a liderança antiga tivesse durado o mais possível, mas pese embora o aumento da esperança de vida, o mais vetusto dos chefes do Grande Estado tinha-se reformado com cento e dez anos e com sérios problemas de saúde…Preparavam-se novos e ambiciosos planos para a União, mas faltava o pragmatismo antigo para solidificar e perpetuar esses planos…Se ao menos se pudesse ter o conselho dos antigos…As novas caras até poderiam estar no poder, mas por detrás dele dominaria a velha guarda, ou alguém que seguisse rigidamente as suas indicações…Era esta a ideia predominante que ocupou inúmeras reuniões das mais altas chefias civis, militares e religiosas, reunidas em torno da causa comum, e foi numa dessas reuniões que alguém trouxe uma ideia, poucos dias depois de ter tomado o conhecimento da existência da invenção, lançando então a louca ideia do protótipo a uma escala global. Era uma ideia louca de facto, mas perante um início de desespero, a ideia passou a ser lícita: deixando a sua personalidade ao dispor dos novos, perante qualquer problema eles iriam aconselhar-se com os antigos, mantendo assim intactas as ordens programáticas e a garantia que a União continuasse.

Mas, apesar da satisfação geral da assembleia de notáveis perante a ideia, restava um pequeno e aparentemente incontornável problema: quem seriam os novos lideres? Como saber desde o berço que seriam eles os futuros comandantes da Europa? É certo que uma enorme percentagem vinham de estratos sociais bem definidos, as chamadas elites, mas outros (e encontravam-se entre eles alguns dos mais notáveis) vinham de classes mais baixas e aparentemente mais insuspeitas…Se só se limitasse a invenção a apenas alguns corria-se o risco de se deixar de lado os melhores, pois mesmo entre as elites geravam-se imbecis incapazes…Após várias horas dum silêncio de chumbo perante esta questão, alguém teve uma ideia que parecia ser um ovo de Colombo, de tão óbvia que era: Tornava-se a invenção global, disponível a todos os que quisessem, ou fossem coagidos a tal…Era algo de aleatório, mas se globalizada a máquina, quando chegasse a hora da morte de um desses notáveis lideres, a hipótese dele ter gravado o que era, era quase absoluta, logo poder-se-ia eternamente ter acesso aos seus conselhos…

Havia pois que lançar a novidade e torná-la num produto de consumo, disfarçando, claro, as reais intenções de tal, segredo muito bem guardado só ao alcance de quem controlava o processo, o que como se pode adivinhar eram muitos poucos…

Com a anuência dos quadros mais altos da Igreja, que, inicialmente renitente para não dar nas vistas, em breve, e num espantoso volte face declarou que aquela invenção era uma das maneiras de partilhar a vida eterna prometida na Bíblia: enquanto os entes queridos falecidos encontravam a eternidade perante o Criador, os seus descendentes, parentes próximos, amigos, ou então conhecidos, nunca iriam experimentar a real sensação de perda, dado poderem continuar a falar com o falecido (a), até ao momento em que se realmente reunissem ao dito cujo…Como tal invenção não envolvia directa ou indirectamente a interferência com a natureza (como era o aborto, a clonagem ou a eutanásia, entre outros que a Santa Igreja continuava a proibir com unhas e demasiados dentes) e após inúmeras sessões de esclarecimento toda a Europa Católica concordou com a coisa, reforçada pelo facto dos cemitérios tradicionais continuarem a existir, podendo quem quisesse frequentar ambos. Para os mais progressistas tal foi encarado com natural júbilo, para os mais conservadores, era mais uma maneira da Igreja não se deixar ultrapassar por esta gigantesca onda que muitos pensavam ir alterar a forma como se encarava a morte.

Com a parte espiritual assegurada, estava nas mãos dos melhores publicitários vender o produto como algo de essencial.

Criou-se então uma nova moda, do tipo “Se você não tem, está fora de moda, não é deste mundo…”. Figuras públicas de todos os quadrantes e com filhos em idade de iniciar as gravações (eles faziam parte da primeira geração a usá-las) apareceram nos média radiantes a empolar as vantagens de tal maravilha. A reforçar os sedutores anúncios feitos pelos melhores da área, surgiram alguns filmes realizados por nomes de monta do cinema mundial onde se mostravam as vantagens num futuro próximo de tal maravilha, reforçada pelo facto de ser absurda e absolutamente gratuita, tanto na gravação como na futura consulta ao “morto”, afinal mesmo nos melhores dias do capitalismo selvagem que a ida a cemitérios nunca fora paga…

Como era o velho estado o motor de tudo isto, e como os futuros lideres bem poderiam vir de lá, os primeiros usuários constituíram a população dos orfanatos, local ideal para lançar a nova e quase desconhecida tecnologia…E, numa época em que as adopções estavam em alta, aos futuros pais era duma maneira dócil mas suficientemente persuasiva era imposta a continuação das gravações dos seus novos rebentos, ou seja, ou aceitavam a criancinha com a gravação atrás e para o resto da vida, ou ficavam de mãos a abanar…Como os resultados foram excelentes e encorajadores duma vez por todas optou-se pela massificação do fenómeno a toda a sociedade.

A moda pegou, de tal modo que as empresas que fariam dinheiro com os avançados computadores que fariam a leitura das gravações caíram na tentação bem humana de terem mais olhos que barriga e quiseram estender a novidade à escala mundial. Como seria natural, no Continente Americano (norte e sul) a coisa ainda pegou e noutros locais de religião católica (como partes de Africa), mas a coisa não correu mesmo nada bem na Ásia e no médio Oriente onde, fora dos jogos de poder europeus que tinham originado a moda e a necessidade, o clero se opôs de uma tal maneira que não funcionaram as manobras tendentes a impor tal como uma moda à escala planetária.

Mas dado o objectivo primário ter sido alcançado e os lucros serem suficientes para pagarem o investimento feito e até para gerar novos lucros, toda a gente ficou satisfeita e a moda em breve passou de tal para um fenómeno duradoiro.

Noutra vida Gabriel tinha sido treinado para ser um dos “Controladores” e até tinha chegado à fase final antes de lhe atribuírem uma pessoa para controlar, sendo que nessa altura ele tinha desistido…Ao longo do longo processo de aprendizagem tinha conhecido Patrícia e com ela aprendera na vertente algo infame da sua profissão…Á última da hora decidiu-se por desistir e enveredar pela profissão de Investigador privado, assinando contudo um documento em que se comprometia a não revelar as técnicas (que eram secretas) com que poderia comprovar se a pessoa observada estaria ou não a mentir. No entanto ficara com os conhecimentos, que mesmo sem os revelar, se mostravam particularmente úteis quando tinha de averiguar a veracidade das palavras de alguém por si investigado ou pela própria veracidade dos seus clientes, o que lhe foi e seria muito útil…

Continua...

(CONTO PROTEGIDO PELOS DIREITOS DO AUTOR)

Miguel Patrício Gomes
Enviado por Miguel Patrício Gomes em 28/09/2006
Reeditado em 27/06/2008
Código do texto: T251193
Classificação de conteúdo: seguro
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