A estátua de Copacabana

Avenida Atlântica, calçadão de Copacabana.

Vinha caminhando, livre, leve e solto.

Trazia às mãos o primeiro livro de Drummond, ¨Alguma poesia ¨, de 1930.

Uns versos do escritor não saiam da minha cabeça:

¨Um dia, um anjo torto, desses que vivem nas sombras, me disse: ¨V

ai, Carlos, ser ¨gauche¨¨na vida. "

De uma certa forma também me sinto um pouco assim -

quem sabe não seja a razão de tanta afinidade?

É tão linda a poesia do mineiro de Itabira do Mato Dentro que estudou numa instituição religiosa, em Friburgo, Rio de Janeiro, e do qual foi expulso por ¨insubordinação mental¨!

Doença estranha - nunca ouvi falar dela.

¨Havia uma pedra no meu caminho,

No meu caminho havia uma pedra. ¨

Coincidência, sentei-me no banquinho ao lado da famosa estátua de Drummond -

olhei-a, cuidadosamente.

Pouco sabia sobre Drummond, exceto que havia se formado em farmácia para agradar os pais.

Numa ocasião, teria dito:

¨Não cheguei a praticá-la, felizmente.

Não tencionava matar meus amigos errando nos remédios.¨

Quanta coragem, não é mesmo?

Notei que havia uma câmera monitorando os que se aproximavam, inclusive à mim.

Certamente para proteger a estátua dos cidadãos insensatos.

Estava me preparando para levantar quando ouvi uma voz, - rouca e profunda, parecendo vir de outro mundo.

¨Boa noite,

o senhor, por acaso, chama-se João ? ¨

Assustei-me - não havia uma alma viva no local.

Curioso, olhei embaixo do banco, atrás - procurei na areia.

Poderia ter alguém - um pivete, sei lá.

Afinal, em Copacabana, tudo acontece.

De repente, reparei ao lado.

E não acreditei, quase desmaiei - senti um frio na espinha.

A estátua estava olhando para mim, -

e pior, falando:

¨Não se assuste,

eu lhe explico, João:

ao falecer fiz um trato com Deus, que era meu leitor e fã.¨

Interrompi-o, surpreso:

¨Espera um momento,

Deus era seu leitor, mesmo estando o senhor vivo? ¨

Ele respondeu:

¨Sim, João,

nunca se esqueça do que diz esse velho poeta transformado em estátua de bronze.

Todas as coisas que escrevemos, todas mesmo - possuem uma interface com a alma - e todas chegam ao céu e são ouvidas por Deus.

Assim, cuidado com a caneta. ¨

Olhei com respeito para a minha esferográfica !

Drummond continuou:

¨Bem, fizemos um contrato:

em noite de lua cheia posso conversar com qualquer pessoa que sente nesse banquinho, e se chame João.

Pelo visto, não existem muitos Joãos em Copacabana, pois você é o primeiro que aparece. ¨

Pensei:

¨Que azar! ¨

Ainda assustado continuei a ouvir.

Afinal, estava conversando com meu escritor preferido, que numa ocasião escreveu:

¨Tenho apenas duas mãos e o sentimento de mudar o mundo! ¨

Perguntei-lhe, já refeito:

¨Em que posso ajuda-lo, Drummond ? ¨

Ele cruzou, descruzou as pernas, coçou a cabeça - limpou os óculos,

Na verdade parecia até muito à vontade para um defunto.

¨João, essa vida de estátua é uma coisa horrível.

Até hoje não entendi tal ¨ homenagem. "

Haviam tantos escritores maravilhosos.

Porque não colocaram aqui o Fernando Sabino? -

ou uma mulher, a cearense Rachel de Queiróz, a primeira mulher a entrar para a Academia Brasileira de Letras ? -

ou o Austragésio de Athaíde, que costumava frequentar funerais?

Esse, sim, seria, sem dúvida, o ideal.

Ou até mesmo um vivo -

que tal o Ferreira Gullar? ¨

Ponderei:

¨Nesse caso discordo, meu poeta:

O Gullar, além de estar vivo é muito magrinho, seria uma estátua frágil demais.

Com o vento que faz aqui, correria o risco de se desprender e sair voando pelo céu de Copacabana.

Já imaginou uma estátua sendo levada pelos ares, parecendo um pássaro? -

ou um disco voador?

Seria um escândalo na cidade - e iria assustar as criancinhas na praia.

E já pensou se resolvesse conversar como o senhor?

Copacabana, coitada, se transformaria num imenso deserto. ¨

Sentenciei:

¨Não daria certo, mesmo. ¨

Drummond balançou a cabeça parecendo concordar.

Mas insistiu:

¨João, você parece um cara legal,

tem até jeito de poeta ? - por acaso

escreve? ¨

Respondi, modesto:

¨Escrevo, sim, umas coisinhas, porém jamais me consideraria um poeta.

Drummond ficou feliz - e perguntou?

¨Conhece minha obra? ¨

Respondi, sem titubear:

¨Sou apaixonado por seus livros, estou até inscrito num concurso sobre o senhor!

Se ganhá-lo, embolsarei uma nota.

Tenho lido sua biografia.

Quer ouvir uma poesia sua, agora ? ¨

Drummond se surpreendeu.

Colocou as mãos nos joelhos e esperou que eu começasse.

Levantei-me e diante dele, iniciei:

¨E agora José, a luz apagou, o povo sumiu, a noite esfriou, e agora José ?

E agora, você?

que é sem nome, que zomba dos outros, que faz versos, que ama, protesta.

E agora, José?

Está sem mulher, está sem discurso, está sem carinho.

Já não pode beber, já não pode fumar, cuspir já não pode, a noite esfriou , o dia não veio, o bonde não veio, não veio a utopia.

E tudo acabou.

E tudo fugiu, e tudo mofou.

E agora José ? ¨

De repente, vi Drummond me interrompendo e aplaudindo no banquinho !

¨Bravo, bravo, bravo, João! - você é o maior barato! "

Nesse momento, um sujeito embriagado que passava, testemunhou a inusitada cena e saiu correndo, gritando:

¨ Assombração, assombração! ¨

Drummond achou graça da situação, agradeceu, mas logo voltou a ficar preocupado!

Franziu a testa!

E me disse :

¨Vou-lhe fazer um pedido:

conhece um deputado, uma autoridade, um prefeito, um vereador, para me tirar daqui ?

Estou desesperado, João!

Há momentos em que me pergunto:

¨E agora, Carlos?

Aceito ir para um deposito de estátuas velhas, enferrujadas, um ferro velho, ou até mesmo ser derretido no fogo, virar cinzas, e - ó! glória -, ser jogado no mar de Copacabana.

Topo tudo, João, qualquer coisa, menos ficar aqui.

Já me roubaram os óculos, os pombos fazem sujeira na minha cabeça, as prostitutas sentam no meu colo e tocam no meu bilau.

Sou obrigado a assistir passeatas de todos os tipos -

até de coisas com as quais não concordo.

Vestem-me a camisa do Botafogo, quando sempre fui America.

No réveillon, uma bomba atingiu minha cabeça ¨

Nesse momento, Drummond abaixou a cabeça em minha direção:

¨Olha, João, até hoje tenho essa marca aqui. ¨

Realmente, havia uma enorme marca na cabeça de bronze.

E continuou:

¨Todas as manhãs os bichinhos das madames fazem xixi no meu pé.

E à tardinha, quando trazem as crianças para as brincadeiras, advertem-nas:

¨ Não toquem nessa estátua imunda. ¨

E concluiu:

¨Isso dói, João,

logo eu, que sempre fui tão limpinho ¨

Fiquei com pena do meu poeta, tentei consolá-lo:

¨Olha, Drummond, compreendo que seja muito chato ser uma estátua.

Eu mesmo jamais gostaria de ser uma.

Mas, tente entender as razões de ser você quem está aqui, e não um outro escritor.

O senhor ficou eternizado como estátua porque simplesmente foi o melhor. ¨

E continuei:

¨Embora sendo um tímido mineiro de Itabira do Mato Dentro, com sua sensibilidade conquistou o mundo.

Imagine como é importante para uma sociedade injusta como a que vivemos, que escritores criativos tenham visibilidade.

Observe essa Avenida -

é a mais famosa do mundo, nenhuma é assim !

Por aqui, como numa passarela, desfilam milhões de pessoas, vindas de todos os lugares.

Imagine, se em cada mil passantes, apenas um, tiver a curiosidade de saber quem foi o senhor.

E decidir ler um livro seu, descobrir um novo mundo, muito maior do que sua imaginação julgasse existir? ¨

Pedi, quase implorando:

¨Olhe nos meus olhos, Drummond, fixamente."

A estátua curvou-se, virou-se para mim e olhou-me mesmo.

¨O senhor concorda que tal fato pode mudar a vida de uma pessoa? ¨

Drummond botou a mão na cabeça, pensou um pouco e respondeu.

¨Claro, João, eu mesmo fui influenciado pelos escritores anteriores à mim. ¨

Continuei:

¨Então, meu caro poeta.

Conhece motivo maior do que esse para continuar sendo estátua, mesmo com todos as atribulações que isso lhe acarreta? ¨

Na verdade senti Drummond flexibilizando suas ideias.

Ouvia até seus neurônios fazendo ¨tic-tic-tic-tic."

Não se mostrava tão firme nas suas convicções primeiras.

Porém, tinha que completar a resposta:

¨ Em relação a sua segunda pergunta, se conheço alguém para tirá-lo daqui, afirmo-lhe o seguinte:

¨ Não desejo ser maldoso com o senhor, mas não posso ser injusto com o mundo.

Mesmo que conhecesse alguém muito importante, jamais lhe faria tal pedido.

Copacabana sem você, Drummond, não seria nunca mais a mesma.

Você já está incorporado ao jeito dessa Avenida.

Todos querem vê-lo -

você e a alma da princesinha do mar.

E além do mais, olhe para o céu, Drummond, olhe!¨

Ele levantou a cabeça, devagarinho.

¨ A lua não está mais cheia.

Deus pode ficar zangado com você, e comigo também.

É melhor você ficar aqui, quietinho, no seu banquinho. ¨

Drummond concordou, levantou o braço e me disse adeus.

Uma lágrima sentida rolou na sua face.

Ainda o ouvi dizer, quase murmurando:

¨Tchau, João,

sempre que houver lua cheia venha cá - amigo - espantar minha solidão! ¨