Bóson de Higgs
Eu lembro que estava tomando um copo de água.
Água. Hidróxido de hidrogênio. Era isso que eu fazia. Engolia monóxido de di-hidrogênio. H2O. Zilhões de dois átomos de hidrogênio e um de oxigênio ligados quimicamente desciam pela minha garganta e chegavam ao meu estômago. Água. Era isso que eu fazia antes de acordar aqui, numa cela imunda com cheiro de fezes e outros piores. Cheiro de mortes.
Tomava água e pimba! Abri os olhos e me vi envolta em penumbras fétidas, palhas, ratos e uma mulher agachada num canto selvagem. Onde estou? Belisquei-me. Doeu pra burro, não era sonho. Eu estava realmente em uma cela. Pequena e de paredes de pedra com grades e culpas. No outro canto um balde tosco de madeira mostrava onde tínhamos que fazer nossas necessidades mais humanas. Estava cheio. Transbordava. Vomitei a água que tinha tomado.
Eu. Karmina com K. Uma cientista brasileira. Uma das poucas pessoas escolhidas para fazer parte do grupo liderado por Sérgio Novaes, da UNESP. Nosso grupo é responsável por processar dados oriundos de dois dos detectores instalados no LHC.
LHC. Sigla para Grande Colisor de Hádrons. Um túnel circular de 27 km, localizado sob a fronteira entre a Suíça e a França. Uma espécie de "rodoanel" para prótons, as partículas que caracterizam os elementos existentes no universo. Elementos como a água que eu bebia antes de vir parar aqui e que acabei de vomitar.
Eu não entendo, eu deveria estar contabilizando strangelets, partículas de um tipo exótico de matéria que não existem normalmente. A prática mostrou que o LHC produz strangelets, e eu Karmina com Ka os contabilizo e estudo. Mas o alto escalão dos cientistas que trabalhavam no CERN com o LHC, dedicavam-se a encontrar a partícula bóson de Higgs. Esse era o objetivo maior. Alguns chamavam o bóson de Higgs de partícula de Deus. Encontrá-la seria uma revolução na física. E a física bem que andava precisando de uma revolução.
Sim, essa é minha profissão. Contadora de strangelets.
Lembro quando levei um ovo podre na cabeça de um grupo que protestava contra a experiência da aceleração de partículas. Muita gente teve medo do fim dos tempos e protestos correram o mundo, o problema é que na teoria produziríamos mini buracos negros e também criaríamos os tais strangelets. Alguns físicos fizeram a cagada de dizer que os strangelers poderiam interagir com a matéria normal da Terra. Eles iniciariam uma reação em cadeia que consumiria o planeta como um câncer terminal. Isso provocou protestos no mundo inteiro, mas nada que fizesse o acelerador de partículas deixar de girar. Aconteceu, gira, gira, girou e o mundo não acabou, e eu estou aqui e viva.
Mas aqui onde? Numa cela imunda, e o que é pior, não estou sonhando. Estou lúcida e pálida provavelmente. A mulher que estava no canto parecia dormir, a cabeça apoiada nos joelhos. Eu estava assustada. Seria um sonho? Um sonho desses que quando a gente acorda fica aliviada e o sonho vai secando devagarinho que nem roupa no varal, até estar seco e esquecido. Me belisquei bem forte de novo. Não era sonho. Caralho.
Aproximei-me da mulher que jazia imóvel no canto:
- Ei moça... moça... acorde!
Ela se mexeu um pouco mas não fez menção de erguer a cabeça. Resmungou algo que não entendi.
- O que? Desculpe, não entendi o que você disse.
Ela pronunciou um pouco mais alto, mas só um pouco:
- E adesso? Non mi lasciare solo, lasciami solo!
“ E agora? Não me deixa sozinha, deixa-me sozinha!”?
Compreendi que era italiano e fiquei feliz por ser poliglota, respondi no meu pacato mas honesto italiano:
- Que lugar é esse? Onde estou?
Ela foi erguendo a cabeça devagarinho, slow motion, levei um susto ao ver seus olhos. Eram dois buracos negros. Olhos arrancados à força. Ela olhou pra mim como se enxergasse e me respondeu com outra pergunta:
- Quem é você?
- Meu nome é Karmina, quero saber como vim parar aqui?
Ela respondeu me olhando com aqueles buracos sem vida, falava um italiano estranho, não o que eu estava acostumada a ouvir. Devia ser uma espécie de dialeto.
- Você não sabe?
- Não, eu estava bebendo água e quando vi estava aqui. Como vim parar aqui?
- Se não sabes, como eu saberei?
- Que lugar é esse?
- É uma prisão, percebes as grades? Percebes a imundície. Estás presa querida.
- Mas por que? Eu não fiz nada de errado!
- Eu também não.
- Quem é você?
- Me chamo Lúcia. Sou filha de Lúcio e Eutichia.
- Por que veio parar aqui?
- O meu coração foi o culpado...
- Seu coração?
- Sim, ele arde como um forno de amor divino e foi essa força enorme que me consentiu superar as angústias dos humanos. Estou aqui pois aceitei para mim o sacrifício e a dor, na grande fé Daquele que fez residência em minha alma.
Só me faltava essa, presa com uma fanática religiosa cega, seria ela também maluca? Ou seria eu que estava ficando doida, excesso de trabalho, stress e cafeína? Lúcia continuou no seu italiano livre e esquisito:
- Eu estou presa querida mas meu coração é livre. Sim, ele sim é livre pra pulsar somente de amor. Ele é capaz de alcançar as virtudes e vencer o humano que é quase animal. Sabes, eles me obrigaram a sofrer em um prostíbulo. Tiraram minha imaculada virgindade por orgulho, mas eu lhes disse, eu lhes disse sim... Eles não podem corromper minha alma, violaram meu corpo, mas minha alma ainda é Dele. Só Dele.
Fiquei pensando. Eu havia sido sequestrada provavelmente. Algo havia sido posto na água que me fez adormecer, depois me trouxeram pra cá. Talvez algum lunático de dentro do CERN, um doido que pensa estar salvando o mundo se acabar com os cientistas responsáveis pela procura do bóson de Higgs. Lúcia também deve ter sido sequestrada, devia ser uma das cientistas italianas que trabalhavam no projeto, e eles fizeram e desfizeram com ela até que ela ficou louca. Isso aconteceria comigo também?
- Lúcia, você também trabalha no CERN? É uma pesquisadora em busca da partícula Divina? Eles sequestraram você?
- Sim, a partícula Divina. O coração do Nazareno. Eu sou esposa de Jesus, e por isso me recusei a casar com Rufus. Ele é muito vingativo sabe... e rico, por isso conseguiu convencer o governador Pascácio para que eu fosse julgada. Eles queriam que eu fizesse sacrifícios aos deuses pagãos. Queriam que eu renegasse minha fé. Você sabe, o imperador Diocleciano está perseguindo os cristãos. Tanta gente está morrendo. Mas ele também morrerá, eu vi isso, e nossa fé será livre.
Pascácio? Diocleciano? Deuses pagãos?
- Lúcia, em que ano estamos?
- Faz cerca de trezentos anos que o Nazareno deixou esse mundo, mas sua mensagem continua a ecoar e continuará através dos séculos.
Que loucura era aquela? Estaria eu em outro tempo? Me recusei a acreditar nessa hipótese, mesmo sabendo que fisicamente era possível viajar através do tempo através das cordas cósmicas. E nós também estávamos pesquisando essa teoria no CERN. A badalada teoria das supercordas. Mas eu me recuso a acreditar que de alguma maneira conseguimos provar que as partículas elementares na verdade são cordas estupidamente minúsculas vibrando num espaço com dez dimensões. Me recuso a acreditar que o LHC produziu objetos que emergem diretamente da interação entre a gravidade e o mundo quântico, e o que é pior, que eu viajei no tempo por causa disso. Era mais fácil acreditar que aquilo era um sequestro de grupos fanáticos, uma tentativa pra deixar cientistas mais malucos, um engodo. Essa tal de Lúcia era uma farsa e eu era vítima de um plano esdrúxulo. Como se lesse meus pensamentos Lúcia falou:
- Não acreditas, não é Karmina?
- Claro que não, isso é loucura, insanidade, é impossível eu estar aqui!
- Não, tu não acreditas que a mensagem Divina ecoará?
Não dei mais ouvidos ao que ela dizia, comecei a tatear as paredes antigas a procura de uma saída ou de alguma coisa que me fizesse sair dali. Empurrei as grades enferrujadas e sujas, mas não havia saída, não havia.
Olhei de novo para Lúcia, ela me encarava com aquelas órbitas medonhas, olhos de sala vazia. Percebi que nós duas éramos parecidas, tirando a sujeira em que ela se encontrava e o fato de não ter olhos achei que passaríamos por irmãs.
- Como foi que você perdeu os olhos Lúcia?
-Foi por causa do Rufus. Ele insistiu tanto para que nos casássemos. E eu não queria casar com ele, não queria! Mas ele não desistia. Eu não sabia por que a insistência tamanha para concretizar esse casamento. O governador Pascácio tentou de tudo para me convencer. Quando eu quis saber porque o Rufus fazia tanta questão de se casar comigo o governador disse que eram por causa de meus belos olhos. Eu os arranquei, acredita? Ofereci-os ao Rufus para que me deixasse em paz. Mas eles se irritaram com meu ato. Daqui a alguns dias serei decapitada, essa é minha sentença.
A maneira como ela falava, suas roupas, o cenário, os cheiros e o jeito com que o tempo passava me fazia começar a mudar de ideia. Eu já estava começando a acreditar que de alguma maneira havia acessado uma outra dimensão espaço-tempo. Parecia loucura mas os estudos no LHC haviam mostrado essa possibilidade teórica. Poderia ser real. Seria?
- Sabe Karmina, se eles encontrarem você aqui também será decapitada...
- Mas eu não fiz nada!
- Vão dizer que isso é obra de algum demônio, vão fazer acusações, vão achar que você é obra minha!
Eu comecei a chorar, estava cansada. Cansada por ter que ser tudo e por ser nada, por ter que dar certo, por estar ali, por saudades do meu amado. Eu chorei pelos céus e pelo inferno. Sacudi Lúcia pelos ombros.
- O que devo fazer? O que devo fazer?
- Calma querida, se acalme primeiro... Aquele que é maior que tudo, Aquele a quem eu entreguei meu coração e ainda assim deixou ele livre. Ele, Ele me disse em um sonho que você viria até mim. Foi Ele que me disse para arrancar meus olhos sem medo. Ele disse para dar meus olhos pra Rufus porque me daria outros. Tu me darás um dos teus olhos e assim poderá sair daqui.
- Você está louca? Eu jamais poderia arrancar meus olhos, mesmo se quisesse!
- Mesmo se tua vida dependesse disso?
Fiquei ponderando sobre aquilo, meus olhos ou minha vida. Enquanto isso sons de passos firmes ecoaram no corredor. Logo um guarda apareceu, se vestia como esses soldados da época de César que vemos nos filmes. Quando ele me viu gritou, fazendo soar que algo estava errado. Lúcia parecia calma.
- Agora eles vão lhe torturar. Vão estuprá-la de forma que nem imagina e vão enfiar farpas embaixo de suas unhas e em todos os teus cantos. Vão fazê-la confessar tantas coisas...
Meu coração batia assustado. Pressenti que aquele era um momento importante na minha vida. Era uma encruzilhada que mudava tudo. Lúcia continuou:
- E achas que eles vão acreditar que tu vieste do futuro? Sim querida, eu sei que tu vieste de lá. Acredite, com as torturas que eles fazem vais confessar qualquer coisa, até coisas que nunca imaginou. Os torturadores de Siracusa são assim.
Siracusa, Lúcia, olhos. Lembrei da minha empregada, ela era devota da Santa Luzia. Ela tinha me contado a história da Santa uma vez. Uma história que na época eu achei bizarra. Fiquei horrorizada por ver as verdades que a Igreja proclamava.
- Xi patroa! Santa que é Santa é a Santa Luzia, de Siracusa. Ela sim. Entregou seu sangue pra Jesus Nosso Cristinho e se recusou a casar com um moço muito rico. Por vingança ele a fez ser julgada e levada a um prostíbulo. Mas ali ela não cedeu a alma. Não, não, só o corpo que é casca.
A história tinha me deixado curiosa por isso incentivei-a a continuar enquanto ela cozinhava um feijão cheiroso:
- E daí Jacira, o que aconteceu com a Santa?
- Ela foi torturada por dias, pra ver se mudava de ideia. Mas se manteve firme. Chegou a arrancar os olhos e dar pro fidalgo que queria casar com ela.
Senti um calafrio ao lembrar do resto da história da Jacira.
- Mas no outro dia os guardas viram que ela estava com olhos de novo. Se o reino é dos céus, deixa Deus fazer dele o que desejar. Amém.
Então seria isso, meus olhos serviriam para uma Santa assistir o final do seu martírio? Esse pensamento me deixou tonta e senti o chão fugir de meus pés.
Não entendia porque estava ali. Porque eu? Uma cientista e não uma beata. Eu que sempre fui igual a todos, que circulava nos palcos da vida ostentando apenas uma representação de mim mesma. Nunca rezei. Meus exércitos de neurônios não tinham permissão para entrar em zonas de misticismo. Eles apenas ficavam ali, nos sopés de morros reais. Nunca me imaginei fazendo parte de algum plano divino. Nunca imaginei um dia conversar com uma Santa. Mas seria ela mesmo uma Santa? Alguma coisa dentro de mim dizia que sim. Talvez fosse a luz que brilhava em sua testa como uma chama e iluminava seu caminho apesar dos olhos sem luz. Ou talvez aquela fosse uma marca do diabo. Mas você não acredita em anjos e demônios, não é Karmina? Seria isso um castigo para punir minha personalidade descrente? Fazia dezenas de perguntas a mim mesma mas não encontrava resposta alguma.
Fiquei olhando para Lúcia. Parecia que ela sabia que sua aparência tinha poder. Quem dera eu pudesse arrancar os seus segredos e esconder entre os meus próprios. Depois comecei a sentir sonolência. Tentei aquietar meus pensamentos com a esperança de que o sono transforma-se aquilo em sonho. Fui levada pela fome e pela sede, e assim que adormeci pareceu que um milhão de vozes começaram a tagarelar em minha cabeça.
Fui acordada com um cutucão brusco e gritos. Dois guardas me arrastaram para uma espécie de calabouço decorado com máquinas de tortura. Foi tudo muito demorado e medonho e me recuso a lembrar de todas as dores que senti. Eram demais. Confessei tudo. Confessei que era obra de um demônio. Confessei que estava tentando libertar Lúcia. Confessei que era devassa e tudo de ruim que alguém pode ser. Entendi que também seria decapitada.
A dor nos faz acreditar. A dor nos faz acreditar. A dor nos faz acreditar.
Quando me levaram de volta para a cela eu era outra. Eu sabia que deveria fazer de tudo para sair dali. Meu corpo agonizava e minha mente dava voltas insanas de montanha-russa. Lúcia disse em sua voz suave de nascente:
- Acreditas agora querida? Tu precisas sair daqui. Me de um olho teu. Depois voltarás de onde veio.
Eu mal conseguia responder. Fiquei soluçando até adormecer novamente. No sonho Ele apareceu e me embalou em seus braços. Disse para eu não ter medo. Que a dor não existiria mais. Disse que eu fazia parte do plano e que eu tinha entrado em contato com a partícula Divina. Era por isso que estávamos ali, porque o amor deve ecoar. Só o amor...
Foi assim que dei um olho meu para a Santa Luzia. Hoje ela é representada com uma bandeja com dois olhos. Ela havia conseguido outro olho de outro alguém. Alguém que passou pelo mesmo que eu. Sou caolha agora. Mas agradecida infinitamente.
Fui afastada do CERN e desacreditada no mundo científico. Ninguém acreditou que eu havia encontrado o bóson de Higgs. A partícula Divina.
Acho que nem uma única pessoa poderia acreditar de imediato em minha história. Mas eu tinha que contar. Eu havia atravessado o tempo e o mundo. Eu tinha que contar.
Sheilla Liz
Conto premiado e publicado no livro Ficção Científica Brasileira, panorama 2008,2009 pela Tarja Editorial.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Concurso_Liter%C3%A1rio_FC_do_B