O Último Coração Humano

I

Os disparos das armas ecoavam na noite, perseguindo-nos com sua velocidade letal. As ruas abandonadas e tomadas pela vegetação tornavam-se armadilhas perigosas enquanto tentávamos escapar de nossos inimigos. Os tiros da metralhadora caiam do céu como uma enxurrada violenta procurando por vítimas. Um deles acertou a cabeça do rapaz que corria na minha frente, matando-o impiedosamente. Todos teriam o mesmo destino se não alcançássemos o esconderijo o mais rápido possível...

O pequeno sinalizador do patrulheiro apareceu no horizonte, indicando que nos encontrávamos próximos ao nosso destino final. Adentrando a vegetação mais pesada, conseguimos diminuir a vantagem de nossos perseguidores e seu posicionamento aéreo. Assim que chegamos próximos ao patrulheiro, ele abriu a tampa do bueiro no chão, oferecendo-nos entrada.

Correndo dentro do longo túnel, fugíamos como foras da lei que éramos. Depois de uma longa distancia, finalmente alcançamos o nosso destino. Nossos inimigos insistiam em sua busca, certos que nos encontrariam. Um feixe de luz branca vindo da superfície buscava a área próxima ao nosso esconderijo, iluminando precariamente a entrada da estação subterrânea de metrô onde nos escondíamos. O barulho ensurdecedor do helicóptero ecoava nos degraus que levavam aos guichês de atendimento da estação, abandonada após a migração das pessoas para as poucas grandes cidades que restavam.

Todos nos receberam com alivio e pesar. A felicidade de ver o retorno de alguns, tornava-se a tristeza de notar que outros não tiveram a mesma sorte. Cada dia perdíamos mais membros, mais companheiros de luta. As mulheres começaram a procurar por feridos, oferecendo primeiro socorros. As crianças, já acostumadas com esta rotina, sentavam no chão com um olhar sonolento e cabisbaixo.

Uma breve discussão se iniciou entre os adultos, liderada por aqueles que acreditavam ser necessária uma reunião imediatamente. Sabendo que qualquer tentativa neste momento seria infrutífera, procurei acalmar a todos, dizendo que conversaríamos após o jantar. Mesmo os insatisfeitos concordaram com o meu parecer, mas continuaram incapazes de relaxar enquanto nossos inimigos rondavam os céus a nossa procura.

O grande peso em meus ombros tornou-se mais leve ao ouvir o barulho do helicóptero se distanciando de nosso esconderijo. Imediatamente, um dos patrulheiros comunicou no rádio: “Fim do núcleo de perigo em 30 minutos”. A mensagem significava que nossos inimigos haviam cessado as buscas por hoje. Viveríamos por mais uma noite. As crianças se levantaram, fitando-nos com esperança em seus olhos. Há mais de três dias que as crianças encontravam-se enclausuradas nesta estação subterrânea.

- Hoje ficaremos aqui. Será arriscado demais acamparmos lá fora. – informou Marcos, fazendo com que as crianças demonstrassem sua decepção em um sonoro “Ahh...”.

Em dias normais, nós nos reuníamos sob a luz do luar, com uma fogueira e um jantar ‘a moda antiga’, como muitos chamavam. Durante a refeição, contava alguma história sobre o mundo antigo, antes da Grande Pandemia, assim como meus pais haviam me contado e depois se arrependido amargamente. Hoje, ficaríamos refugiados no subterrâneo, incapazes de aproveitar a liberdade pela qual lutávamos.

- Que tal se vocês me perguntarem sobre tudo aquilo que aprenderam? – ofereci, não agüentando ver a expressão entristecida das crianças.

Seus olhos brilharam de felicidade ao ouvirem a oferta. Imediatamente, elas começaram a se sentar ao meu redor, aguardando meu sinal para o inicio das perguntas. Alguns de meus companheiros fizeram questão de demonstrar sua reprovação, retirando-se de perto da improvisada roda, preocupados demais para aproveitar este momento de descontração.

Assim que fiz que sim com a cabeça para começarmos, algumas crianças rapidamente levantaram suas mãos, ansiosas para terem suas perguntas respondidas. Começando por ordem de idade, imaginei, por engano, que a pergunta dos mais novos seriam as mais fáceis. Oscar me surpreendeu com sua pergunta, no entanto.

- Como é ser o último adulto com um coração de verdade?

As crianças olharam o pequeno menino de oito anos, sem esconder sua surpresa, e depois retornaram sua atenção para mim, esperando por minha resposta. Meus lábios se curvaram em um triste sorriso, com lembranças que muitas vezes implorei para que deixassem minha mente.

- É...solitário. Muito solitário. – respondi, sem encontrar melhores palavras para expressar os sentimentos que se apossavam de meu coração.

- Solitário como? - uma das crianças indagou curiosamente, com um olhar confuso e remendou – É porque não existem outros que nem você?

- Sim e não. – respondi, tentando encontrar uma maneira de explicar como me sentia. Após uma breve pausa, continuei, – Meus pais ficaram desesperados quando eu fugi do procedimento para meu transplante de coração cibernético. Eles acharam que eu estava louco. Alguns anos depois, fui declarado morto pelas autoridades, que diziam ser impossível alguém sobreviver por muito tempo exposto ao vírus. Segundo eles, meu coração deveria se degenerar em alguns anos.

- Mas então...você não possui nenhum implante? – uma das crianças perguntou, com um olhar curioso.

Soltando uma breve risada, fiz que não com a cabeça, causando grande alvoroço entre todos os presentes na roda. O implante era meu grande trunfo; o tipo de arma utilizada somente caso minha morte fosse iminente.

Perguntas referentes ao tipo de implante, a quantos possuía, entre outras, começaram a surgir. Mesmo alguns dos adultos não conseguiram disfarçar sua curiosidade. Fazendo sinal com as duas mãos para que o grupo se acalmasse, respondi:

- Quando fui encontrado e preso há alguns anos atrás, jurei que nunca mais me encontraria em uma situação onde não possuísse nenhum tipo de poder para alterá-la. Daquele dia em diante, teria o futuro na palma da minha mão. Eu só fui capaz de escapar por um golpe de sorte. Eu era inocente e despreparado. Eu achava que lutava não só contra as autoridades, mas também contra uma doença que eventualmente me consumiria.

As crianças voltaram a questionar esse implante e cruzei os braços, deixando claro que não falaria mais no assunto. Uma delas então perguntou:

- Foi assim que você descobriu que o vírus HPN2, esse da Grande Pandemia, não existia?

- Sim. – respondi em um tom amargo, assustando a criança que fizera a pergunta. Rapidamente, esbocei um sorriso em sua direção, explicando – Quando fui preso, o líder anterior a Langdon, nosso atual problema, cometeu o erro de revelar que o vírus foi fabricado para lançar a indústria de transplantes cibernéticos.

Todos se entreolharam, percebendo a tensão que pairava no ar. Este era o resultado da menção do nome de Langdon em nossas conversas. Ele era o líder do G.A.T., Grupo Anti-Terrorismo. Mais que isso, ele era o responsável pela morte de diversos de nossos companheiros. Ele foi o primeiro a nos considerar uma real ameaça.

- Por que eles inventaram tudo isso? – perguntou uma garotinha de seis anos, em um tom que demonstrava sua decepção.

- Por ganância. Hoje em dia os homens mais ricos do mundo são aqueles que fazem parte dessa indústria. – muitas crianças, principalmente as mais novas, franziram o cenho ao ouvir minha resposta.

Era difícil para crianças, com um coração bom e inocente, entenderem o porquê dos seres humanos agirem dessa forma, tornando-se obcecados pelo dinheiro. As famílias de classe média alta guardavam dinheiro por anos até conseguirem juntar a quantia necessária para submeter um de seus filhos a esse transplante. Eles pensavam ser necessário, pensavam estar salvando a vida de seus descendentes. As famílias mais pobres pagavam menos, mas recebiam versões falhas do produto, que possuíam poder reduzido de bombeamento do sangue, ou que deveriam ser descartados pela quantidade de defeitos apresentados.

As pessoas, que já haviam passado por grande terror em 2010 por causa da gripe suína, temiam o desenvolvimento de uma doença pior. Milhares de pessoas morreram por causa da gripe. Quando a mídia começou a relatar casos de morte em diversos países por causa de um novo vírus, o HPN2, o mundo inteiro entrou em desespero. Imediatamente, o governo anunciou um método radical, mas eficaz de se livrar do vírus. A princípio, algumas pessoas lutaram contra o transplante cibernético de coração, clamando que nos transformaríamos em máquinas. O medo, no entanto, venceu esta guerra, e logo o transplante se tornou parte na vida de todos.

Até os dezesseis anos, quando o transplante ocorria, as crianças eram forçadas a se manterem em um ambiente fechado, sem contato com o ar puro ou com a natureza. O vírus supostamente se encontrava no ar, e uma criança infectada teria que ser submetida ao transplante às pressas, já que seu coração se degeneraria por completo em menos de três anos.

Todos acreditavam que a chegada dos dezesseis anos representava o inicio da vida, a chegada de uma bênção. Carros, diplomas e carreiras eram secundários quando comparados ao transplante de coração.

-Gabriel, você realmente acha necessário contar tudo isso para as crianças assim, de forma tão brusca? Não era melhor concentrar a informação em doses pequenas –perguntou Leo com uma expressão de preocupação em seu rosto enquanto sussurrava em meu ouvido.

- Eu não vou enganá-los assim como eu fui enganado. Eles precisam saber da verdade, independente de quão dura ela seja. Eu as mostraria minhas memórias, caso fosse capaz. – respondi, dando os ombros, mas mantendo o mesmo tom baixo para evitar que a discussão se tornasse pública.

Sentado ao meu lado, Donovan, um dos membros mais novos, arregalou os olhos ao ouvir minhas palavras. Estalando os dedos diversas vezes – hábito irritante que ele possuía quando tentava formular uma idéia – ele se levantou, andando em círculos enquanto pensava.

- Talvez nós sejamos capazes de extrair suas memórias. – Donavan disse, não escondendo sua empolgação.

Ironicamente, o rapaz de vinte e poucos anos adorava tecnologia e todos os assuntos relacionados a ela. Ele sempre tentava arrumar meios de burlar os sistemas de segurança, como os leitores de IE, identificadores eletrônicos, implantados em cada ser humano nascido.

O IE era o principal responsável pela nossa restrição nas cidades. O computador central mantinha os dados de todos os seres humanos armazenados através de atualizações feitas por compras, cadastros preenchidos, transportes utilizados, etc. Os leitores de IE estavam presentes nas principais avenidas, lojas e condomínios. Era impossível circular na cidade sem que as autoridades soubessem sua ficha completa e as nossas constavam um mandato de prisão imediato, com total liberdade para matar em caso de resistência.

Com um olhar esperançoso, fitei Donovan silenciosamente pedindo para que ele elaborasse. Olhando para a roda de crianças e adolescentes curiosos, ele pausou, parecendo ponderar algo. Entendendo sua dúvida, disse:

- Tudo bem, não aqui. Vamos para a sala de reunião.

II

Langdon observou a vista do centro da cidade de Nova São Paulo proporcionada pela janela de seu escritório. As ruas eram largas e feitas de concreto, com canteiros artificiais nos acostamentos em ambos os lados. As calçadas eram bem conservadas, com uma faixa exclusiva para os bimotores que tomavam o mercado de transporte individual rapidamente.

A região central da cidade era dividida em três grandes anéis, começando pelo núcleo, onde os prédios do governo foram erguidos. No segundo anel se encontrava as sedes das principais empresas do mundo, responsáveis por grande parte do dinheiro que fluía no país. O prédio mais belo, com seus cento e trinta e cinco andares espelhados era o da empresa Cibercon, grande desenvolvedora da tecnologia presente na cidade e nos cidadãos. O terceiro e último anel possuía uma área residencial de alto nível com subdivisões baseadas no poder aquisitivo de cada morador. Esta área era exclusiva para representantes do governo, lideres de grandes empresas e executivos. Somente pessoas importantes e ricas chamavam aquela área de lar.

Sendo um distrito extremamente importante, ele era o mais segura de toda a cidade, com portões de acesso para entrada e saída que eram monitorados por leitores de IE e policiais. Todos os cidadãos não pertencentes a este núcleo central precisavam agendar com antecedência sua visita, se quisessem evitar dores de cabeça e atrasos.

O resto de Nova São Paulo também era bem conservado, mas como muitos de seus prédios foram restaurados ou reformados, eles mantinham o aspecto sujo e estreito que a metrópole possuía no inicio do século. A segurança havia sido melhorada através da implantação de leitores de IE na maior parte dos comércios e nas principais avenidas. Raramente as pessoas se queixavam de crimes, quando muito de pequenos delitos. Elas eram abençoadas com uma vida pacífica e longa.

Ainda sim, a cidade possuía diversos defeitos que precisavam ser removidos. Um deles eram os outdoors holográficos, projetados do alto dos prédios, poluindo a maravilhosa fachada do centro com seus anúncios desnecessários. Apesar de serem limitados na região central, seus números cresciam nos bairros mais pobres, tornando as ruas um verdadeiro bordel colorido. Isso, no entanto, era o de menos.

O que realmente o incomodava era o número de subúrbios, que aumentavam a cada dia. Estes moradores eram os grandes responsáveis pelo crime e violência ainda existentes. Apesar de seus crimes serem registrados pelos leitores de IE, eles se uniam em grandes grupos e tentavam mobilizar as camadas mais afluentes com sua demanda por igualdade social.

Essas pessoas haviam se refugiado na cidade após o inicio da Grande Pandemia, implorando para que o governo criasse algum tipo de programa social para disponibilizar o transplante de coração aos mais pobres. Elas eram um constante problema para os governantes, que tentavam esconder esse lado negro através de doações e programas de remanejo social para outras cidades menos populosas.

Seus pensamentos foram interrompidos quando um de seus colegas o chamou. Langdon virou-se para Jackson com um olhar entediado, não escondendo o desdém pelo motivo que os reunia no escritório.

- O que você acha? – Jackson perguntou pacientemente.

- Eu acho uma perda de tempo nós estarmos aqui discutindo isso. – ele respondeu, ignorando o tópico que havia gerado a pergunta do colega.

- Você poderia pelo menos fingir que se importa, mandrak. – indagou Thomas, utilizando uma daquelas imundas gírias urbanas.

- Ele tem razão. Nós devemos focar em como aumentar o sucesso de nossas unidades contra os terroristas. – disse Jonas com seu cenho franzido.

Novamente, os principais líderes do G.A.T.. estavam reunidos para contestar o mistério que envolvia o governo e o grupo que caçavam. Devido a grande inteligência dos lideres recrutados, o grupo tentava cada vez mais se libertar das asas do governo, pensando e agindo por conta própria. Agora, os lideres questionavam as informações proporcionadas pelo governo referentes a este grupo que resistia ao procedimento de transplante de coração.

Langdon protestava contra tais discussões constantemente, e devido ao respeito que possuía, conseguira evitar algumas. Apesar do Grupo Anti-Terrorismo ser subdivido em sete times, cada um com o seu próprio líder, a maioria respeitava o líder do grupo 7 como se fosse chefe de operações. Ele fora capaz de destruir a credibilidade dos terroristas, e também de reduzir seu número. Devido à sua dedicação, seus colegas passaram a dar maior valor a atual missão.

Não que ele não se importasse com as intenções do governo. Diferente de seus colegas, ele já as havia decifrado, pois estivera presente durante o interrogatório de Gabriel conduzido pelo ex-líder do grupo 7. Além de entendê-las, ele concordava com tal estratégia. O mundo seria extremamente ineficaz e entediante sem a tecnologia atual. Hoje, as pessoas eram capazes de viver uma vida mais longa, mais cômoda. As ruas eram limpas, os programas eram educativos e a rede global proporcionava comunicação e entretenimento jamais vistos anteriormente. Ninguém precisava sair de casa se não quisesse.

- Como vocês nem sequer questionam os motivos que levam um grupo a resistir ao transplante de coração, sabendo o quão essencial é este procedimento? – Tomas perguntou, com um olhar acusador em seu rosto.

- Enquanto existir governo existirá também a resistência. – filosofou Tobias sem tirar os olhos da projeção holográfica dos vídeos de segurança que mostravam cenas gravadas dos terroristas.

- Falta de dinheiro, falta de sexo, falta do que fazer... qualquer que seja o motivo, o resultado terá de ser o mesmo: nós precisamos pegá-los para acabar com esta resistência antes que ela ganhe mais força. – insistiu Jonas, irritado com a discussão.

Como Langdon, Jonas concordava que estas reuniões resultavam em uma grande perda de tempo. Diferente dele, Jonas não queria saber os motivos do governo para tentar extinguir tal resistência. A preocupação de Jonas era a maximização do desempenho de sua equipe, o que o proporcionaria com um cargo de maior importância no futuro.

- Nós não somos peões do governo, facilmente manipulados para executar suas vontades. – protestou Jackson, cerrando seu punho e acertando-o contra a superfície metálica da mesa de conferência. Com firmeza, ele continuou – nós esmagaremos os terroristas se eles realmente estiverem ameaçando nossa cidade e seus habitantes, mas primeiro, precisamos saber de tudo para que possamos agir com nossas consciências limpas.

- Eles não vão falar nada. – comentou Langdon em um tom exasperado.

- E é isso que torna estas reuniões necessárias! – exclamou Tomas com determinação.

O sensor da porta tocou, interrompendo a discussão. Um holograma foi projetado no centro da mesa, revelando o rosto dos visitantes. Langdon sorriu, satisfeito com os homens que dariam fim àquela inútil discussão. Um deles era o mais dedicado membro de sua equipe, Matias, enquanto o outro era o responsável pelas informações recebidas sobre os terroristas. Graças a ele, o último plano havia gerado resultados positivos.

- Temos boas e más notícias. – informou Matias ao entrar no escritório e cumprimentar a todos com uma continência.

Todos se entreolharam, enquanto esperavam a permissão do líder do grupo 7 para que o rapaz prosseguisse. Este apertou alguns botões do painel de controle para reforçar a segurança do escritório antes de fazer menção para que Matias continuasse.

- Descobrimos onde será o próximo ataque. Aparentemente, eles encontraram uma forma de extrair memórias e pretendem exibi-las ao público. Acreditamos que seja necessário um mês para que o material fique pronto para ser divulgado. Eles pretendem arrumar alguns dos materiais através das gangues dos subúrbios. – disse Matias, recebendo a confirmação de seu informante que fazia que sim com a cabeça, concordando com o que o rapaz havia dito.

- Eles acreditam que conseguirão provar a todos como o governo vem manipulando seus cidadãos através das memórias de seu líder, Gabriel Ranieri. – adicionou o informante, gaguejando um pouco.

Todos no escritório se levantaram, alvoroçados ao ouvir a noticia. Langdon sentiu o ar escapar-lhe os pulmões ao pensar nas conseqüências que o sucesso de tal plano ocasionaria. Ninguém poderia ver os segredos guardados na mente de Gabriel. Suas memórias seriam provas suficientes para desmascarar as intenções do governo. Elas poderiam ser rotuladas como falsas posteriormente, mas o impacto inicial seria irreversível e com certeza atrairia um grande número de novos membros para a força inimiga.

Sua mente maquinava um plano para interceptar os terroristas antes que eles fossem bem-sucedidos. Imaginava que diversos sacrifícios teriam de ser feitos. Seria necessário subornar aqueles miseráveis dos subúrbios, e também seria indispensável que os grupos do G.A.T.. unissem forças.

Enquanto caminhava de um lado para o outro no perímetro da janela, o líder do grupo 7 ignorava as questões que seus colegas apresentavam ao rapaz e ao informante. Ele estava agitado com o recebimento de tal informação, suspeitando da facilidade na qual ela havia chegado a suas mãos. Os terroristas não eram conhecidos por serem descuidados. Agora, mais que nunca, ele precisava ser mais inteligente que seu inimigo.

III

Puxando o capuz para melhor proteger meu rosto, cruzei a rua que me levava até o subúrbio Santa Terezinha. Do acinzentado céu, caiam grandes gotas de água, tornando a cidade ainda mais gélida e sombria. As pessoas caminhavam pelas ruas, ignorando aquelas ao seu redor, mais preocupadas em se abrigar do vento frio e da incessante chuva. Meus companheiros, andando alguns passos atrás de mim, procuravam se manter inconspícuos em suas intenções para que não parecêssemos um grupo unido, mas sim desconhecidos traçando o mesmo caminho.

A criação de grupos sem aprovação das autoridades havia sido banida – sejam eles para fins religiosos, intelectuais ou até mesmo sindicatos. Todos eles tinham que ser registrados e autorizados para que pudessem se reunir em publico sem serem presos ou torturados pelo G.A.T.. Segundo as estatísticas distorcidas do governo, todos os ataques terroristas no passado haviam sido obras de grupos que permaneciam escondidos nas sombras e se recusavam a obedecer às leis.

As autoridades utilizavam todas as armas disponíveis para dificultar nossas vidas, preocupadas em nos exterminar o mais rápido possível. Criando leis anti-terrorismo, eles adestravam seus cidadãos, tornando-os mais disciplinados e incapazes de tomar uma única decisão sem a devida autorização. Mesmo a mídia sofria as conseqüências destas leis, que os proibiam de se afiliar com qualquer grupo não-autorizado. Diversas redes de TV haviam sido fechadas devido à transmissão de programas considerados instigadores de atos de terror.

Pessoas “desapareciam” quando expressavam sua insatisfação com as autoridades. Famílias inteiras eram punidas pelas ações de um individuo. Meu irmão mais velho fora usado para me atrair para uma emboscada. Meus pais foram mortos após a minha segunda fuga da sede do G.A.T., como uma forma de me punir pela falta de cooperação. Ter sua identidade descoberta sendo participante de um grupo como o nosso significava uma vida de muita dor e perda.

Apesar de todas as restrições, ainda éramos capazes de mostrar nosso poder. Olhando para o relógio, esperei pacientemente a virada do minuto que iniciava uma nova hora. Imediatamente, todos os outdoors holográficos saíram de sintonia, deixando somente uma luz branca em lugar dos vídeos coloridos que antes anunciavam diversos produtos. Sorrindo, encostei contra a parede de uma pequena casa de concreto, próxima a entrada do subúrbio Santa Terezinha. Eu sabia o que aconteceria em seguida.

Um estrondoso som ecoou no ar, como um trovão em uma noite de tempestade. As luzes dos outdoors holográficos piscaram momentaneamente, transformando-se, em seguida, na imagem de um homem de cabelos castanhos longos e barba recém-feita. Seu rosto parecia um galho seco, com os ossos saltando de sua pele, graças a anos de refeições inadequadas. Ele estava vestindo uma camisa desabotoada e fora de moda, parecida com aquelas usadas no inicio do século para eventos formais.

Assustadas, as pessoas pararam ao ver tal imagem. Até mesmo eu tive dificuldades de desviar minha atenção daquele rosto medonho. Era difícil imaginar que tais feições me pertenciam. As olheiras pareciam ainda mais profundas contra minha pele translúcida. Minha aparência era fantasmagórica, fazendo-me semelhante aos vilões sempre presentes nos filmes.

Nesse momento, minha voz ecoava nas principais ruas e avenidas da cidade de Nova São Paulo. No fundo, era possível ver o céu azulado, as árvores e a cidade abandonada onde a gravação fora feita. Esta exibição era somente o primeiro passo de nosso grande plano.

Depois de nossa reunião na estação de metrô, havíamos decidido que este plano representaria tudo ou nada. Arriscaríamos tudo o que tínhamos para adquirir a força que nos faltava. Anos fugindo do G.A.T., incapazes de aumentar nossos números, nos fizeram perceber que estávamos prolongando o inevitável. Precisávamos mudar de estratégia. Para proteger nossas crianças, nós as mantivemos em um esconderijo juntamente com Donovan, que era o responsável pela divulgação das imagens nos outdoors.

Existiam dois grandes objetivos para esta exibição. O primeiro era que esta tornava minha existência pública. Através dela, revelava minha identidade: a de um homem supostamente morto, perseguido pelo governo por não ter se submetido ao transplante de coração. Não era só a minha imagem que era mostrada nos outdoors, mas também a das crianças – todos sem sequer uma cicatriz que indicasse o transplante cibernético supostamente necessário.

Isso tudo era usado para criar dúvidas na mente das pessoas, que poderiam até acreditar na reprodução artificial dessas imagens através de um estúdio, ou que poderiam se recusar a acreditar que um órgão tão manipulativo os regia. O importante era que todos falassem sobre o acontecido, que fortificassem nosso grupo com o poder de suas palavras.

Um grande caos começou a se formar na cidade. Carros paravam para assistir a exibição enquanto as calçadas borbulhavam com curiosos que saiam de seu trabalho e suas casas para ver o que estava acontecendo. Meu sorriso se tornou mais largo ao imaginar a reação que nossa ousadia havia causado no centro da cidade. Apesar da enorme vontade de me aproximar daquela região, sabia do risco desnecessário que correria.

Minha missão hoje era outra: extrair as memórias de minhas “amigáveis estadias” na sede do Grupo Anti-Terrorismo para compartilhá-las com o mundo na próxima gravação. Este era o segundo objetivo deste plano desafiador. Após o fim da primeira exibição, nós sabíamos que a confusão da cidade nos proveria com uma ótima oportunidade para executar o processo de extração de memória. Todas as equipes do G.A.T. estariam preocupadas em desvendar esta falha de segurança, enquanto nós circularíamos livremente entre os transeuntes. Nossos únicos obstáculos seriam os leitores de IE e as câmeras de segurança.

A reprodução se finalizou comigo abraçado com nossas crianças, dando tchau para todos que nos assistiam. Como esperado, as pessoas permaneceram nas ruas, conversando sobre o acontecido e expressando suas opiniões. Alguns acreditavam em uma ameaça terrorista, mas a maioria se preocupava em questionar como seria possível nossa sobrevivência sem o implante cibernético.

Olhando o mapa GPS que Donovan havia instalado em meu mini-computador de pulso, observava minha localização em relação aos leitores de IE e câmeras mais próximas. O mapa possuía um circulo que indicava o perímetro dos aparelhos de segurança, auxiliando-me enquanto procurava me aproximar da casa do Doutor Victor. Cinco quadras eram tudo que me separava do local de destino.

Caminhando lentamente em direção ao grande morro com pequenas casas de concreto de aparência condenável, pensava nos últimos detalhes que faltavam para a execução do plano. O Doutor havia providenciado o conversor de ondas cerebrais para imagens, que possibilitariam a exibição de minhas memórias assim como meus olhos as presenciaram. Era um aparelho caro, custando mais do que poderíamos arrumar de forma honesta. Eu estava disposto, no entanto, a cruzar esta linha. A Cibercon seria um ótimo alvo para adquirir o resto do dinheiro necessário.

Este seria o meu primeiro contato com o Doutor pessoalmente. Apesar de a idéia inicial ter sido criarmos o nosso próprio equipamento, a existência de algo já pré-montado adiantaria nossos planos em vários dias e diminuiria o risco de sermos descobertos. O único problema irremediável era minha permanência na cidade por algumas horas enquanto o processo fosse executado. Apesar da preocupação de todos, garanti a eles que possuía o futuro na palma da minha mão.

Assim que cruzamos a entrada do subúrbio, a multidão que nos rodeava anteriormente começou a se dissipar. As ruas pavimentadas estavam vazias, deixando a vizinhança com a aparência de um lugar abandonado. Apesar das grandes nuvens cinza no céu e da pouca luminosidade, a maioria das casas encontrava-se escura, indicando a ausência de seus moradores.

Algo em minha mente registrava aquela imagem com uma luz vermelha de alerta. Em uma cidade grande como esta, parecia-me óbvio a aglomeração de pessoas menos privilegiadas nos subúrbios. Minha imaginação os pintava como um enorme formigueiro: cheio de gente e de vida. Deveriam existir crianças brincando nas calçadas e adultos se reunindo para celebrar os acontecimentos locais. Onde estava a felicidade de viver?

Olhando para trás, percebi meus companheiros examinando o local de forma tensa, preparados para sacar as armas escondidas em suas cinturas. Um breve vulto cruzou minha visão periférica, vindo da janela de um sobrado à minha direita. Sem pensar, imediatamente me joguei para a mesma direção, escondendo-me entre as altas paredes que separavam as duas casas. Gritando o mais alto possível para que meus companheiros me ouvissem, disse: “ARMADILHA!”.

O som de tiros explodiu ao nosso redor, vindo de diversas direções. Meus olhos procuravam meus companheiros, pedindo mentalmente pelo bem estar deles. Sacando minha arma, comecei a sondar alvos nos andares superiores dos pequenos sobrados que nos rodeavam. Estávamos cercados. Pior que isso, uniformes de unidades diferentes do G.A.T.. indicavam a presença de mais de uma equipe.

Dividindo minha atenção entre o gatilho da arma e a formulação de um plano para escapar vivo daquele local, observava cada canto deserto à procura de uma saída. Cruzando o quintal entre as casas que me protegiam, localizei a porta mais próxima, adentrando uma casa qualquer para me abrigar. Cautelosamente, prossegui até a janela do quarto no andar superior, que me ofereceria melhor visão da situação lá fora.

Um nó se formou em minha garganta ao ver três colegas caídos no chão. Eles estavam acabando conosco um por um. Atirando em um homem fardado, fui capaz de matá-lo antes que levasse mais um de meus companheiros. Um deles apontou para a janela da casa que me abrigava, encontrando meu esconderijo.

Tiros voaram em minha direção, fazendo com que me jogasse no chão em busca de proteção. Algumas balas perfuraram o sólido concreto das paredes, zunindo em meu ouvido ao passarem tão próximas de meu corpo. Procurando me abrigar dos incessáveis tiros, comecei a rastejar em direção ao banheiro logo ao lado. Eles pareciam me acompanhar, impossibilitando que eu levantasse. Levando uma mão à cabeça, protegi meu rosto dos cacos de vidro que voaram em minha direção vindos do vitrô.

Quando o barulho dos tiros cessou momentaneamente, ergui minha cabeça para observar meus arredores e pensar em um novo plano de fuga. Meus olhos se depararam com o largo cano da arma de Langdon apontando para a minha testa. Seus olhos brilhavam com a mesma satisfação presente em seu sorriso.

- Surpresa. – o líder do G.A.T. disse, puxando o gatilho de sua arma ao mesmo tempo em que meus olhos se fecharam, prontos para receberem a morte.

IV

Langdon entrou na sala onde mantinha seu prisioneiro, sem esconder seu largo sorriso e o olhar satisfeito. Gabriel estava sentado em uma cadeira especialmente construída para aqueles a serem interrogados. Ela possuía grossas algemas metálicas, que restringiam o movimento de seus braços e suas pernas.

O líder do grupo 7 abaixou o zíper do macacão branco que o fora da lei vestia, mostrando-o seu tórax sem nenhuma cicatriz. Ele imaginava que o rapaz estaria preocupado com um procedimento cirúrgico forçado, tornando-o igual aos outros. Ele sabia, no entanto, que isto não cortaria o mal pela raiz. Mesmo sem coração, Gabriel ainda seria uma ameaça.

- Pode ficar tranquilo, meu caro. Seu coração continua intacto. – ele disse, sorrindo maliciosamente com cada palavra. A ironia de tal comentário passaria despercebida, é claro.

O rapaz pareceu aliviado ao ver que não existiam marcas em seu corpo. Apesar de sua atual situação, ele continuava confiante. Enquanto os dois inimigos se encaravam, o prisioneiro perguntou:

- O que vocês pretendem fazer comigo?

Como sempre, ele ia direto ao ponto. Langdon apreciava tal comportamento, pois acreditava que tempo era precioso demais para ser desperdiçado. Hoje, no entanto, seu humor era cruel e ele desejava prolongar o sofrimento de seu inimigo.

- Você foi muito, muito mau. O que você acha que devemos fazer com você? – ele perguntou, tentando conter o pequeno sorriso sádico que se curvava no canto de seus lábios.

- Vocês vão me matar? – seu inimigo retrucou com desdém, e então continuou, cuspindo cada palavra em sua arrogância – Assim que vocês me matarem, todos saberão como morri. Estamos preparados para divulgar este vídeo para o país inteiro. Vocês nunca se sairão bem dessa.

- Você realmente acha que somos estúpidos? – o líder perguntou rindo. Ele nunca imaginou que se divertiria tanto. Gabriel ergueu suas sobrancelhas de maneira questionadora, e ele continuou, explicando – Nós sabemos do seu plano de se tornar um mártir perante os olhos da sociedade. Seu vídeo hoje foi um bom exemplo disso. Nós já arrumamos um jeito de neutralizar suas intenções...

Percebendo o olhar de descrença de seu prisioneiro, ele riu ainda mais alto. Ele nunca entrava em uma guerra para perder.

- Vocês realmente acham que podem continuar a enganar as pessoas dessa forma? Por dinheiro? – o rapaz perguntou, com seu olhar fixo nos de Langdon, determinado a irritá-lo.

Dando dois passos em direção a cadeira onde seu “convidado” se sentava, um sorriso triste formou-se em seu rosto, finalmente tornando-o capaz de entender a mente de seu inimigo. O homem estava cego. Ele não conseguia enxergar os benefícios que essa nova Era havia proporcionado a todos os habitantes do mundo. Era seu dever informá-lo.

- O que você acha que acontece com esse dinheiro, hein, Gabriel? Olhe ao seu redor, este mundo foi criado com o dinheiro que você chama de sujo. Toda a tecnologia, a longevidade que os seres humanos possuem... tudo isso foi pago com o dinheiro dos transplantes de corações cibernéticos que você tenta destruir. – o líder discursava com a dedicação de um revolucionário. Cada palavra ecoava na pequena sala, transformando-se em um fervoroso sermão. Para completar, ele continuou - E daí que eles não são necessários? As pessoas vivem mais, elas estão felizes!

O olhar de Gabriel perdeu seu brilho momentaneamente. Langdon conhecia bem aquela expressão. O rapaz finalmente parecia ponderar os frutos de suas ações. O mundo não seria melhor sabendo a verdade. Ignorância era uma bênção que poucos entendiam. Cada frase dita por ele transtornaria a mente de seu inimigo, fazendo-o analisar seus atos de forma neutra e imparcial. Talvez em seus últimos momentos ele fosse capaz de entender a cruel realidade...

- O que aconteceu com a humanidade...? – ele murmurou para si mesmo, com os olhos cheios d’água.

- Humanidade, Gabriel? Humanidade nada mais é do que as características compartilhadas pela sociedade. Nós ainda somos humanos. Você, no entanto... – o olhar de Langdon era tão acusador quanto suas palavras. – Você não pertence mais a este mundo.

Os lábios do fora da lei se partiram, como se prontos para expelir palavras de angustia, no entanto, nenhum som saiu de sua boca. Suas sobrancelhas se curvaram para baixo, deixando as marcas da idade mais aparentes em sua testa. Ele parecia lutar uma batalha interna, prestes a se render. Seus dedos constantemente ameaçavam tocar sua palma direita, como se o movimento fosse parte de tique nervoso.

- Não se preocupe, logo acabaremos com a sua miséria.

Sem tirar os olhos de seu inimigo, o líder acionou o projetor, transformando a parede direita da sala em uma grande tela de TV.

A imagem do Presidente da República, dando um discurso ao vivo em rede nacional, se formava contra a parede. Seu inimigo forçou a vista enquanto direcionava sua atenção à TV, parecendo tentar entender o que se passava. O principal governante do país, sentado em sua mesa, olhava para a câmera de maneira solene, como o de alguém responsável por más notícias.

- Nesses últimos dias, vocês foram informados pela imprensa da existência de um rapaz que se tornou famoso por ser o último adulto a possuir um coração humano. – o presidente começou seu discurso, ainda com grande seriedade em suas feições.

Os olhos de Gabriel arregalaram-se ao ouvir o presidente admitir sua existência, parecendo não acreditar no que via. Enquanto o discurso continuava, explicando sobre a Grande Pandemia, Langdon fez um gesto com a cabeça e um dos membros de sua equipe entrou na sala, segurando uma caixa retangular metálica. Tomando-lhe a caixa, ele virou-se para seu inimigo com um sorriso novamente em seu rosto.

- Você queria morrer como um mártir e terá seu desejo atendido. – ele disse, abrindo a caixa e retirando de dentro uma pistola com dois dentes metálicos no fim de seu cano.

- Gabriel Ranieri foi um rapaz corajoso, que lutou bravamente contra o vírus HPN2. Infelizmente, seu coração não resistiu após tantos anos de contágio. – a voz do presidente expressava a mesma dor que ele encenava em seu rosto.

Pressionando a arma contra o peito de seu inimigo, ele deixou que suas afiadas pontas penetrassem em sua pele. O grito de dor vindo do prisioneiro ecoou no ar, deixando-o ainda mais satisfeito.

- Eu lhe apresento o vírus HPN2, Gabriel. – ele disse, gesticulando com sua cabeça para a arma.

O rapaz se debateu, tentando livrar-se das algemas que o prendiam a cadeira de ferro embutida na parede oposta à entrada. Ele murmurava as palavras, “Não... não...” deixando que o desespero tomasse conta de seu ser. O líder do G.A.T. assistia sua reação com um prazer sádico. Apesar de saber que sentiria falta do desafio que seu inimigo o proporcionara, este momento ficaria gravado em sua memória.

- Essa noticia pode ser levada de duas formas: ela nos recorda dos terrores causados por esse vírus no passado e das mudanças que tivemos que nos submeter para superá-lo, mas também ela nos mostra o enfraquecimento de nosso inimigo. O senhor Ranieri foi capaz de viver mais de uma década exposto ao vírus. – o presidente continuou seu discurso, cerrando o punho de forma firme para enfatizar sua força e confiança.

- Não se preocupe, meu caro. Sua morte será lembrada por gerações, e seu nome será indagado com orgulho. – apesar do olhar vitorioso de Langdon, suas palavras soavam sinceras. Ele nunca se esqueceria da diversão e da preocupação que o rapaz o havia proporcionado. Ele esperava que o nome de seu mais perigoso inimigo ficasse gravado na história da humanidade, assim como o seu ficaria.

- Depois que levamos o senhor Ranieri para nosso hospital, nós fizemos diversos exames para determinar a atual condição de seu coração e do vírus alojado em seu corpo. – a voz do presidente se tornou novamente triste quando ele completou – Infelizmente, fomos incapazes de ajudá-lo.

Langdon destravou a arma, fazendo com que ela vibrasse contra o peito de seu prisioneiro. Seu estomago embrulhou assim que o leve cheiro de queimado adentrou suas narinas. Um urro ardente de dor ecoou na sala, silenciando o som da TV, assim que a arma começou a perfurar a carne mais profundamente.

- Hoje pela manhã, ele nos forneceu total autorização para utilizar seu corpo em nossas pesquisas assim que ele alcançasse o descanso eterno. É com muito pesar que eu lhes informo que Gabriel Ranieri faleceu às 15:14 da tarde de hoje, 20 de Janeiro de 2099. – após tais palavras, o presidente fez uma pausa respeitosa, inclinando a cabeça e fechando os olhos.

Os punhos do rapaz cerraram-se em uma mistura de dor e desespero. Seus olhos continuavam intentamente assistindo a TV, ainda sem acreditar no que via. Apesar de toda a dor que o aparelho lhe causava, ele resistia bravamente, parecendo debater internamente algo vital e agarrando-se a vida enquanto este debate não era finalizado.

- Eu acredito que através de sua bravura e de seu sacrifício, seremos capazes de revolucionar nossas vidas. Talvez não consigamos eliminar o vírus, mas com certeza seremos capazes de substituir o transplante por uma vacina ou um medicamento que será muito mais viável economicamente para todos.

Suor escorria do corpo do prisioneiro, molhando o macacão fornecido pela unidade do G.A.T. após a remoção de todos os itens que ele trazia consigo. Seus olhos tornavam-se completamente brancos pelo esforço que ele fazia para permanecer vivo. Lágrimas escorriam de suas bochechas enquanto suas sobrancelhas se franziam de forma triste.

- Pense nisso como uma vitória, meu caro. Tornaremos o transplante opcional, substituindo-o por um placebo capaz de “conter” o vírus HPN2. Você terá seu livre arbítrio e nós, o nosso dinheiro. – Langdon disse, sorrindo caridosamente para seu prisioneiro.

Finalmente, o prisioneiro pareceu alcançar a paz que desejava. O debate interno se cessou, e sua expressão tornou-se serena. O líder do G.A.T. sentiu seu coração pular em seu peito, apesar de saber que não existia nada ali além de uma pequena máquina de bombeamento.

- Eu...tenho...o...fut...futuro...na palma...da minha mão. – o rapaz disse com dificuldade, apertando o dedo indicador direito contra a palma da mesma mão.

O algoz sentiu um desespero ao perceber a confiança de seu inimigo, preocupado com o significado de tal frase. Seria um blefe? Sem perder tempo, ele acionou o botão comunicador na parede, ordenando a seu subordinado:

- Eu quero que o corpo dele seja escaneado imediatamente.

Assim que ele retornou sua atenção para seu inimigo, ele estava sorrindo. Seus olhos encontravam-se sem vida e seu corpo imóvel. Dando-lhe um tapa ardido na cara, ele disse:

- Seu desgraçado...

A voz de Matias ecoou no ar, informando:

- Senhor, foram encontrados dois nano implantes de vídeo e áudio em seu corpo, acionados por um terceiro na palma de sua mão. E um sinal acabou de ser enviado daqui para um local não identificado.

Langdon nunca imaginara que um homem “a moda antiga” como Gabriel utilizaria recursos tão avançados. Ele havia subestimado seu inimigo e agora, ele pagaria por este erro. Mesmo em sua morte, Gabriel havia vencido.