Capítulo 1 – “Filmes de guerra, canções de amor.”

A absoluta desordem de um aposento repleto de azulejos amarelados pela gordura, que se impregnava por todo o ambiente, destacava-se com os respingos perfeitos de um vermelho comum. Tão comum que assustava exatamente por ser assim.

Um piano de cauda velho ficava em uma das extremidades do espaço, um canto a esquerda, bem encostado numa parede que parecia prestes a desmoronar. Um vulto vidrado parecia sentado, aquela sombra estática de alguma forma fazia movimentos ínfimos, e quem estivesse no local rapidamente entenderia que aquela silhueta era a de alguém quem destrinchava alguma melodia pelas teclas.

A luz do sol entrava por uma janela estreita e deixava o recinto ainda mais amarelo do que antes, e logo todo o contorno ganhava forma. Era possível enxergar um terno cinzento e velho, quase engolido por traças. Um chapéu de gangster refletia parte da luz que ricocheteava as superfícies opacas, uma mão forte pressionava o que ali produzia o som quase em matéria. Um homem, absolutamente perigoso!

Cinco ou seis corpos estavam pelo chão, um pescoço degolado, algumas outras mutilações expostas, sangue pelos azulejos, uma faca em cima daquele piano de mogno encardido. Aquele barzinho parecia mais medonho do que seria em sua forma normal, aqueles copos e garrafas quebrados no chão sujos de sangue, nojentos como um vírus que procura algo para se desinstalar da cápsula, já se diluíam entre os tons do ocre.

Já do lado de fora, ele, o próprio France, estava prontíssimo para arrebentar a porta. Quando seu pé atingiu à superfície de madeira um referido golpe, fez com que ela voasse longe. Não estava trancada, ao menos fora isso que lhe disseram quando já estavam percorrendo o imenso local infestado pelo cheiro de sangue, fedor e moscas. Era como se tudo ali dentro estivesse apodrecendo e sugando o vigor de tudo aquilo que podia dizer-se vivo.

Aquele homem estava ali ainda, apreciando aquele mau cheiro, tocando alguma peça de Chopin, a qual não veio à mente de France o nome exato, naquele momento, mas o importante era que estava ali, estático, e sem dúvida alguma era o misterioso serial killer que procuravam a bons meses. Tudo se tornava evidente porque um assassino em série sempre tende à deixa de sua marca registrada, algo como sua assinatura pessoal, e aqueles corpos de crianças esmagados como baratas asquerosas ao chão eram deploráveis provas de sua rubrica peculiar.

A cena fria, as marcas de morte sem repúdio, o cheiro insuportável, fizeram Mally sussurrar algum mantra budista em honra aos mortos, mergulhar um lenço em um frasco com uma substância perfumada que segundos depois estaria sobre as suas narinas e a permitiria adentrar pelo ambiente para analisar as possibilidades de realização do crime.

Estranhamente o serial killer não se mexeu, nem ao menos quando os policiais tentaram-no puxar pelo enorme braço musculoso e montarem uma cobertura de artilharia muito bem armada. O chapéu caindo juntamente do paletó, num suave movimento, revelara algo assustador além das marcas escrotas de ferro quente feitas em sua pele. “Ele”, na verdade era “Ela”. Como poderia existir tamanha aberração de mulher? Era tão corpulenta quanto um gorila, os seus bíceps tinham do tamanho de uma travessa de se servir peixes.

Quando deram por si, a gigantesca já fazia porte de uma pistola trinta e oito que se apontava friamente para a direção exata de Mally. Seus cabelos longos se desenrolaram do coque perfeito que os faziam ficar dentro daquele chapéu maluco. E depois de um movimento repentino simplesmente atirou.

Foi um estardalhaço ouvir o som pesado como o de um grande pedregulho partindo-se pelo chão. Talvez fosse uma forma de ela mesma, a mulher aberração, redimir seus pecados por matar crianças de maneira tão brutal, ou quem sabe, fosse algo bem melhor retirar sua própria vida de uma maneira planejada do que morrer incertamente em uma cadeira elétrica e psicodélica.

Os laudos chegaram duas tardes posteriores, não mostravam nada absolutamente novo, mas seriam uma forma de “oficializar” todo aquele problema ocorrido.

-Eu sei, eu sei, mas Mally, estas coisas realmente não deveriam chegar no horário de almoço, não concorda?- grunhiu France sem terminar seu almoço, apontando as fotos do assassinato- Acabo ficando sem fome, sem contar que a minha vontade de comer carne vai

por água abaixo.

-Ora, France, você e seus padrões de bom escoteiro. Temos de manter o senso imparcial, meu querido. Se o chefe nos mandar lamber aquelas tripas, será o que teremos de fazer.

-Pois bem, minha parte pode ficar para você.

Manter-se imparcial diante de certas atividades para France era completamente inviável. Era como entrar de vermelho na festa do branco, ou como ignorar o sinal fechado e entrar diretamente na contra mão sem causar risco nenhum a alguém, o que por sinal não era o que fazia, por mostrar-se super aplicado às regras de trânsito.

E por falar em trânsito, estranhamente os dias daquele ano de 2015 estavam tão frios que já não se conseguia andar com a vidraça do carro aberta. As malditas tempestades solares tinham se reduzido de uma maneira tão brusca que as maiores temperaturas estavam acontecendo entre o meio-dia e às duas da tarde e tão somente neste período.

Todos os dias France deixava Mally em casa, o que não significava ser um sacrifício gigantesco, já que morar no mesmo prédio que ela lhe permitia esta certa cortesia. Tempos mais tarde haveria coisas que mal imaginavam. Sacrifícios de verdade apareceriam. Cinco anos mais tarde aquelas ruas estariam vazias como as de uma história esquelética de terror. Os folhetos livres e bolos de poeira seriam os únicos a contar histórias sobre a Califórnia. Ainda cinco anos mais tarde, o amarelo que tingiria aqueles prédios seria de um dourado vislumbrante e vivo, assim como as esperanças nos destinos das pessoas que em mais outros cinco anos, esperariam por dias menos obscuros e mais iluminados.

(capitulo 1 do meu livro "Poente de Sangue")