A MARCA DO DESTINO - CONTINUAÇÃO DE SIMONE
A MARCA DO DESTINO
Marcel e Simone vivem juntos como um casal há mais de três anos Ela é um robô humanoide perfeita e facilmente confundida com uma mulher. Com a evolução do seu organismo quimicamente preparado para as sensações relativas à sexualidade, influenciando o seu comportamento no relacionamento com ele. As sensações e os sintomas fisiológicos são os mesmos que sentem as mulheres. Inclusive, às vezes, principalmente nas ocasiões equivalentes nas mulheres à pré-menstruação (apesar dela não ovular porque as ginoides não têm essa capacidade) ela apresenta oscilações de humor, fica irritadiça e com excesso de estresse.
Apesar do recompensador aumento da libido que a afeta nesses períodos e de partes do seu corpo, como os seios, se mostrarem mais atraentes, ela fica emocionalmente comprometida e, como é programada para simular emoções humanas, inclusive o amor, às vezes comporta-se como se estivesse com ciúmes dele e insiste que fique com ela, demonstrando desejo exagerado. Como ele nunca viveu com uma mulher em tempo integral, nessas ocasiões fica pensando que se é difícil conviver com uma ginoide, imagine se fosse uma mulher de verdade. Apesar de que não a trocaria sua Simone por uma em qualquer hipótese.
Ele começou a ter problemas para ingressar na universidade onde trabalha como técnico em impressões óticas porque o leitor de registro de dados do PSS (poly smart system) estava acusando erro, não permitindo acesso à leitura da íris para finalizar o reconhecimento e o consequente ingresso nas suas dependências. Certo dia foi recusado e ele teve que se dirigir à administração central para que os dados do chip do aparelho fossem comparados com aqueles registrados nos arquivos do Serviço de Registro de Pessoas Naturais (SRPN), onde ficou retido. Nesse caso ele não poderia ingressar no ambiente enquanto não houvesse resultado da perícia a ser realizada, para o que atribuíram prazo de três dias.
Quando algum PSS não é reconhecido pelos leitores, é disparada investigação paralela sobre a pessoa envolvida, a fim de se confirmar todos os dados a seu respeito e as suas prerrogativas na sociedade que envolve diversos níveis de interesse. O principal deles é evitar espionagem, dependendo da função que a pessoa exerce, e, principalmente, que sejam utilizados indevidamente e prejudique alguém ou alguma instituição e, também, para que nenhum robô se passe por humano, como é comum.
O esforço para aprimorarem cada vez mais os androides, faz com que alguns deles atinjam nível tal que podem ser facilmente confundidos. Na maioria das vezes, por culpa dos próprios humanos, pois muitos têm a intenção que seus companheiros androides se assemelhem a eles. Por isso os robôs praticam pequenos delitos para suportar as suas vaidades, pois não são remunerados pelo exercício das suas atividades. O pagamento pelos seus serviços é destinado aos seus proprietários na forma de aluguel.
Marcel recebeu comunicado da Central de Registro de Androides (CRA), informando constar nos registros daquele órgão que ele utilizava um robô humanoide do sexo feminino modelo SIM1 código 044640157 e, segundo fora apurado, ele não tinha as qualificações necessárias para possuir qualquer tipo de androide. Por conta disso, segundo constava no documento, a ginoide deveria ser levada imediatamente ao Departamento de Concessão de Licenças (DCL), onde seria retirado o chip, que lhe seria entregue por ser o proprietário legal. Quanto ao robô, ficaria retido sob a custódia da CRA, até que ele regularizasse a sua situação relativa ao nível necessário ao privilégio.
Existe um tipo de discriminação pior do que a racial ou social, a discriminação da inteligência. Quando saem da adolescência, os humanos são obrigados a fazer diversos testes e ao final é emitido um cartão de identificação com os seus dados em meio magnético. As pessoas são selecionadas mediante a apresentação do cartão de identificação (mas não sabem disso). Por isso alguns não conseguem trabalhar desempenhando o tipo de atividade que gostariam em função do nível de capacidade intelectual. São aproveitados de acordo com o seu QI (cociente de inteligência) por meio de testes de raciocínio lógico e criatividade. Às vezes se inscrevem em programas de treinamento para determinada função e não são aproveitadas sem explicação. É como se a seleção natural de Darwin fosse aplicada dois séculos depois. As pessoas menos privilegiadas vão reduzindo suas expectativas de nível social até conseguirem um emprego de acordo com o seu intelecto.
É comum, por conta disso, o uso de neurocosméticos, potencializadores para o cérebro, que ajudam a reorganizar as ideias e a pô-las em prática, aumentando a concentração e a atividade dos neurônios para melhor executar as tarefas. Existem drogas usadas nos centros de controle que atuam sobre neurotransmissores ligados à memória reprogramando o cérebro para esquecer alguma coisa ou se livrar de um vício. Essas drogas foram desenvolvidas a partir das revolucionárias descobertas relativas ao funcionamento do cérebro humano, pela utilização de ressonância magnética e da intricada rede de relações e interações que produzem a inteligência e a capacidade de resolução de tarefas, o que faz algumas pessoas utilizarem estratégias mentais mais sofisticadas que outras. Os robôs, por sua vez, são criados para executarem serviços específicos por programação dos respectivos chips.
Marcel ficou desesperado diante de possibilidade de perder Simone, pois não imaginava viver sem sua companhia. Pensou em fugir com ela para um lugar remoto nas montanhas, até que a situação fosse esclarecida, para uma das regiões de reflorestamento, onde uma parcela dos “green jobs” possibilitam a recuperação do ecossistema. Ele tem um amigo engenheiro de ecossistemas que trabalha por lá. Mas pensou melhor e, também, influenciado por ela, que tem medo de serem obrigados a viver eternamente escondidos, resolveu cumprir, apesar de pesarosamente, a determinação da CRA. Então, apresentaram-se, como determinado, ao DCL.
Despediram-se com um beijo apaixonado, quando ela foi convocada pelo autofalante:
“A ginoide 044640157, deve se apresentar à sala quatro, ala A.”
“Mais uma vez esse autofalante foi o veículo que comunicou o afastamento do meu mais precioso bem, do meu infortúnio” – ele pensou. Meia hora depois, lhe entregaram o chip numa caixinha lacrada, com os códigos que designavam a sua Simone, como se fosse o coração dela.
Os androides que ficam sob a custódia da CRA são designados para executarem serviços de acordo com as suas especificações técnicas e a Simone foi encaminhada para a Lua. Iria trabalhar no setor de energia solar, como um robô operário. No satélite foram implantadas diversas usinas de captação de energia solar que são transmitidas para a Terra por micro-ondas além da mineração de helio-3 que lá existe em abundância enquanto muito raro na Terra. A descoberta desse elemento no solo da Lua foi fundamental, pois a sua fusão fornece cerca de um milhão de vezes mais energia que o carvão. Produz muito pouca radioatividade residual e o estoque existente pode fornecer energia para a Terra por centenas de anos, além de prover combustível para os veículos espaciais, ao passo que os recursos do planeta estavam se esgotando e o mundo aproximando-se da fronteira com o caos. Enterrado no solo lunar, também é guardado o lixo radioativo proveniente de usinas nucleares e de armas que deixaram de ser fabricadas bem como de materiais utilizados na medicina.
Os homens ficam pouco tempo na Lua porque as condições atmosféricas são adversas e não permitem que eles lá vivam naturalmente. Por isso quase toda a população é constituída de robôs operários.
O afastamento da sua querida Simone, no entanto, provocou em Marc um forte processo de angústia que progrediu para depressão profunda em curto tempo. Ele foi afastado do serviço e encaminhado a uma clínica neurológica onde foi implantado um chip no cérebro para corrigir o funcionamento bioquímico inadequado da atividade do sistema de neurotransmissores.
No exame do seu PSS foi constatado que estava com um defeito no circuito tridimensional do chip interferindo na leitura correta dos dados. Comunicaram-lhe que deveria dirigir-se ao SRPN para identificação e qualificação, a fim de que lhe fosse fornecido outro cartão, de modo que pudesse retornar as suas atividades.
Tendo sido corrigida a disfunção neurológica que o afetava e de posse do novo PSS, que lhe garantiu o restabelecimento do nível social, Marcel foi à CRA munido do chip que era usado por Simone e da nota de compra registrada, a fim de saber da possibilidade de que ela lhe fosse restituída. Foi informado que tinha condições de se utilizar de um robô, mas infelizmente a ginoide que ele adquiriu não poderia ser devolvida, porque foi encaminhada, como de costume, para trabalhar como operária em uma unidade qualquer, já que o tipo de chip que os robôs recebem quando são confiscados não os qualifica para função específica, não sendo consideradas quaisquer diferenças entre eles e, sendo assim, não importa registrar os seus destinos. Mas ele poderia, como foi informado, retirar outro robô que lhe interessasse entre os que se encontravam disponíveis no setor de logística, antes de serem encaminhados para as unidades de trabalho.
Diante dos fatos e desanimado em contraste com a euforia que o excitava pela expectativa de recuperar a sua Simone quando chegou à CRA, aceitou a possibilidade de escolher outra cujas características se assemelhassem às dela. Encontrou somente uma, mas de padrão um pouco inferior. Como ele estava há algum tempo sem companhia, aceitou aquela que estava disponível.
Foi buscá-la três dias depois e, como a original, ela sabia tudo que aconteceu entre eles desde o momento que o chip foi ativado. Era como se fosse a Simone em outro corpo, tanto que prontamente o reconheceu e, como da primeira vez, o recebeu com o mesmo gracioso: “Oi meu amor, porque demorou tanto?”
Mas apesar da ginoide ser bonita, não era igual a sua Simone. As atitudes dela em todos os sentidos eram as mesmas, já que a sua personalidade estava gravada no chip. Mas não funcionou do mesmo modo a química entre eles. Ele achava estranho. Não conseguia se adaptar a sua Simone com outro corpo. A original era perfeita, a boca, os olhos, os seios, tudo... era diferente. Ele gostava muito do celular em forma de flor acima do seio. A nova também tem uma tatuagem, mas é meio esquisita, no pulso direito. Tem a forma de uma letra “C” escrita no interior de um círculo.
Certa noite, ele estava assistindo uma reportagem na TV sobre a extração de helio-3 na Lua e viu a sua Simone entre alguns robôs operários. Era ela, sem dúvida. Ele congelou a imagem e gravou no PSS. No dia seguinte, sem que a ginoide que estava com ele soubesse, foi à CRA com a intenção de verificar a possibilidade de trazê-la de volta. Foi informado pela atendente que aquela situação nunca tinha sido registrada antes, mas orientou-o a preencher um requerimento e encaminhasse pelo PSS para a CRA, mediante um código numérico que ela lhe forneceu como protocolo. Disse-lhe que não custava nada tentar.
Ele fez o requerimento sob a justificativa que o robô tipo SIM1 – código 044640157, do sexo feminino, do qual era proprietário, conforme a nota de compra juntada, foi apreendido indevidamente pela CRA, por erro de leitura no seu PSS, e encaminhada para a Lua. Anexou, também, um arquivo com a imagem da Simone para facilitar a identificação. Alegou que a ginoide oferecida em troca não lhe atendia a contento.
Ele não queria que a sua companheira atual soubesse do seu desejo de trazer a Simone de volta. Ele tinha receio de magoá-la, apesar de intelectualmente ser a mesma. Ele ainda não conseguia separar o aspecto físico dos registros da memória.
Demorou longo tempo, havia decorrido mais de um ano desde o momento em que ela foi friamente arrancada do seu convívio fazendo o seu coração viver com dolorido sentimento de perda. Mas finalmente ele recebeu uma comunicação do CRA informando que a sua querida ginoide estava a sua disposição e poderia ser retirada, no estado em que se encontrava, mediante devolução da que estava em seu poder.
Ele, sem perder tempo, levou a ginoide à CRA, alegando que era necessário fazer atualização do chip. Achou que ela estava desconfiada e meio triste, parecia estar pressentindo alguma coisa. Ficou sem jeito e com sentimento de culpa, porque estava mentindo para ela (ele não consegue entender muito bem a relação entre a memória e o corpo dos robôs. Sente, embora sem explicação técnica, que há certa ligação, uma afinidade que evolui com o tempo de interação, embora tecnicamente sejam independentes). Mas o amor que ele sente pela sua Simone é a maior justificativa e, intelectualmente, seria ela mesma no seu corpo original que finalmente voltaria para casa.
Três dias depois, ele foi buscá-la. Estava tão ansioso que tentou falar com ela várias vezes pelo comunicador do turbocar e também pelo PSS, mas não conseguiu concluir a ligação. Então, lembrou-se que o celular em forma de flor incrustado na pele, um pouco acima do seio direito, não deveria estar funcionando depois de tanto tempo na atmosfera da Lua e, provavelmente, na condição em que ela estava, não teria direito de usá-lo. Restou ficar observando a sua imagem na tela do PSS, que ia aumentando á medida que se aproximava do local onde ela se encontrava. No momento que a reencontrou reviveu a cena que proporcionou o primeiro beijo, quando ouviu o som agradável das palavras dela: “Oi meu amor, porque demorou tanto?”
“Se você soubesse quanto tempo demorou para mim...” – Ele pensou.
Para ela o lapso foi curto, foram só três dias. Para ele, foi longo demais o tempo que deixou de ver aquele olhar expressivo que denotava o amor especial que ela sentia e que ele reconhecia como puro e verdadeiro. Ele não sabia o porquê, mas era diferente e único. Ele tinha a impressão que Simone sentira, também, a separação prolongada. Abraçaram-se por longo tempo e ele pode comparar a diferença entre as duas até na maneira de beijar e no contato do corpo. Ele pegou a mão dela e novamente saíram para viver o seu amor.
- Você está tão magro meu amor. O que está acontecendo? – Ela falou enquanto voltavam para casa no turbocar.
- Não está acontecendo, aconteceu. A sua falta me fez ficar deprimido. Tiveram que implantar um chip no meu cérebro pra que eu pudesse voltar a ter vontade de viver. Eu estava sem condições de continuar. Também estou tomando, melhor, tomei daquelas pílulas inteligentes que liberam as doses pré-programadas de substâncias pra tratamento de uma úlcera nervosa. Agora não vou precisar mais delas, porque a minha cura está aqui ao meu lado – ele disse pegando a mão dela. Estavam me transformando num androide, com um chip no cérebro e um computador no estômago.
Quando chegaram à casa, ela tirou a roupa para substituí-las, a que estava usando estava um pouco apertada e Marcel percebeu que ela ficou por longo tempo examinando o seu corpo nu na imagem em 3D que ele via na imensa tela que ocupava uma parede quase inteira do quarto, captada por um conjunto de nanocâmeras. Examinou a flor acima do seio e uma nova tatuagem no pulso direito, idêntica à da outra ginoide. Em seguida, como se estivesse pensando alguma coisa, notado alguma diferença, passou o dedo indicador direito sobre uma cicatriz um pouco acima da virilha esquerda. Ela saiu do quarto e mostrou a tatuagem do braço para ele. Perguntou se aconteceu alguma coisa durante a sua estada na CRA que possa ter provocado a cicatriz que curiosamente tinha a forma da letra “M” bem desenhada e a tatuagem no pulso, uma letra “C” dentro de um círculo. Ele abraçou o seu corpo nu e beijou-a sobre a cicatriz próxima à virilha.
- Estranhos esses dados que estão escritos aqui no meu pulso direito, parecem códigos de classificação, porque puseram isso? – Ela questionou.
- Eu só vejo uma tatuagem na forma de “C” dentro de um círculo no teu pulso – ele disse. Os nossos olhos veem algumas coisas diferentes por causa das suas lentes, isto é, eu vejo o desenho de uma letra “C” dentro do círculo e, certamente, os robôs e câmeras especiais enxergam outra coisa.
Ele suspirou e disse:
- Querida, eu tenho que revelar uma coisa: você não ficou somente três dias afastada de mim, pelo menos o corpo, foi quase um ano. Você foi mandada para a Lua e provavelmente foi lá que aconteceu alguma coisa que lhe marcou desse jeito. Eu confesso que achei linda essa cicatriz na virilha com a inicial do meu nome, foi a forma que o destino encontrou para dizer que você é minha pra sempre.