Exílio: o vôo cego - Parte 2

O horizonte sempre me atraiu.Desde pequeno perco-me na tênue linha que corta o azul,mesclando a morte do céu e o nascimento do mar.Hoje acredito que,no fundo,esta contemplação sempre fora apenas disfarce para uma busca.A busca por algo além desta vida que me corrói essência e dias.No entanto,nada me vinha.Hora ou outra surgiam,quebrando a monotonia,as velhas plataformas de petróleo,tais como carcaças de dragões de outras eras,tingindo de vermelho o céu com suas colossais labaredas imortais,ou então vislumbres de alguma outra arca moribunda e sua corja de condenados.Restavam-me, assim,apenas as carícias do vento salgado e o consolo de meus sonhos quebrados.E foi em uma dessas tardes,enquanto debruçava-me no parapeito da proa da arca,que minha vida encontrou nova terra.

-Ora,ora,se não temos um sonhador por aqui!Sinto muito,mas na Marina 5 só se é permitido sonhar das 10 às 7 da manhã.

-O quê?Ah,é você Matheus,não o ouvi chegar.Faz tempo que está ai?

-Mais do que devia,menos do que preciso.Me diga Ivan –disse-me enquanto se apoiava de costas nas grades do convés pelos cotovelos e me encarava nos olhos-o que você tanto pensava?Pareceu-me mais absorto do que o comum,e te digo que o devaneio só é pertinente a dois tipos de pessoas:as criativas e as idiotas.Acredito que você não esteja no último grupo.

Conheci Matheus enquanto freqüentava a Academia de Ciências durante minha estadia na arca Marina 2.Eu era um calouro da turma de biologia,ele um veterano da engenharia.Fui colocado em seu dormitório após seu antigo parceiro pedir afastamento alegando impossibilidade de convivência.Tenho que afirmar que de início fiquei temeroso,mas logo me aproximei daquele excêntrico rapaz.Quando indagava o motivo da mudança do antigo morador,Matheus apenas me dizia que aquele era um entusiasta,e pessoas que vivem apenas por uma coisa acabam não vivendo por nada.E assim,aprendi a conviver com seus comentários ácidos e polêmicos,e logo,sem a menor pretensão,me vi fascinado por sua complexidade.Moramos juntos até o dia de sua graduação,e então imaginei não mais vê-lo. Porém,por vaidades do acaso,ou destino,como dizem os místicos,ao ser transferido para o Marina 5,encontrei-o como engenheiro-chefe do grupo de expedições ao qual havia ingressado.

-Sabe,-segui após alguns instantes de silêncio-às vezes acho que lutamos por nada,entende?Cada missão que voltamos sem avanço leva consigo um pedaço da esperança de um dia virar a mesa e parar de viver sem rumo.Isso também não te incomoda?

-Amigo,-disse-me enquanto colocava a mão sobre meu ombro-a angústia só vem para quem aguarda a mudança.Tanto aqueles que a desejam como os que a temem.Deixei minha esperança na penhora a tempos,e com os trocados comprei minha liberdade.Não perca seu tempo em mundos imaginários,apenas aproveite o extravagante show de nossa sociedade decadente durante cruzeiro Marina 5.-disse em tom irônico enquanto fazia uma meia reverência.

-Nunca sei quando te levar a sério.-respondi enquanto esboçava um sorriso.-Mas então, estava me procurando?

-Ah,sim.Prepare as malas,temos uma nova missão.Os satélite encontraram uns sinais incomuns vindo do continente.Parecem compatíveis com um bioma estável.Bom,eles sempre parecem,enfim...

-Um novo sinal?-perguntei com uma ansiedade incontida.

-Você é mesmo impossível -disse Matheus enquanto sorria.-Até parece que não ouviu nada do que disse a pouco.Ah,mas dane-se todo esse entusiasmo.Saíremos amanhã às 8.Te espero na base de lançamento.-e seguiu rumo ao setor interno da arca.

-Ei,Matheus.

Ao ouvir o meu chamado ele parou e virou-se em minha direção.

-O quê?

-Se você não acredita em nada disso...sabe,que um dia possamos sair daqui,ter uma vida nova e tudo mais,então porque continua nas expedições?

Por um instante pude ver a surpresa correr pelos seus olhos,mas logo eles tomaram sua forma provocativa habitual.

-Ora,não é obvio?Pelo porte de armas!-me respondeu dando um largo sorriso acompanhado de uma piscadela,enquanto me dirigia os indicadores na forma de uma pistola.Em seguida,como quem não disse nada,seguiu seu caminho.