O Rancho Amor de Deus

Trimm!!

Quatro e meia da manhã e o despertador está ali, se esgoelando em sua tarefa de me acordar. Derrubo-o do criado-mudo com um safanão, mas a pérfida maquininha não pára.

“Saco!”, penso eu. Sou obrigado a levantar da cama, arrastando comigo lençol e travesseiro que caem em cima do relógio, abafando-o. Um alívio, mas sei que é momentâneo, pois olho para a minha esposa, se abraçando contra o frio, a leve camisola como uma inútil proteção contra os 18 graus lá fora. Pego o lençol no chão, e o trinado do despertador volta, fazendo-me cambalear enquanto cubro a patroa que, dormindo ou não, sussurra um “Obrigada, querido”.

Uma dor de cabeça aparece de repente. Hora de resolver o principal problema do dia. Vou até a janela e a abro. Uma lufada de vento glacial entra no quarto. Volto ao despertador e ele está lá, ainda executando sua percussão de uma só e agudíssima nota.

“Deus, ele não pára...”

Estendo a mão para pegá-lo e o examino, avaliando seu equilíbrio. E treme, ainda por cima. Nojento.

Assumo uma posição de lançamento, e o atiro pela janela, tal qual bola de baseball. Acompanho sua trajetória até ser engolido em pleno ar por Gatrang, meu sati favorito.

Satis são criaturas engraçadas. Dragões anfíbios com asas. São nativos de Vênus e possuem inteligência superior à dos golfinhos e primatas. Costumam medir 3 metros de altura e 300 quilos. Alguns são capazes de percorrer uma volta inteira ao redor do equador de Vênus sem descansar nem comer.

Os meus não são tão robustos quanto um desses campeões, mas com certeza estão entre os mais dóceis. Costumo dizer pras pessoas que é por causa do amor de Deus, que é assim que eu driblo a agressividade natural deles. Aliás, esse é o nome do meu rancho, Amor de Deus. Bonito, não?

Me lembro que tenho outras coisas pra fazer, e estou na janela, admirando meus animais e divagando. Fecho-a, e o sistema de climatização do quarto trata de aquecê-lo. Quando chego à porta, o quarto já está agradável novamente. As maravilhas do mundo moderno.

Ando pelo corredor, parando no quarto das meninas e espiando pela porta. Julie, a mais velha, tem onze anos e dorme pesadamente, com uma perna para fora da cama. É ela quem me ajuda com os satis. Vai herdar o rancho. Jade, a mais nova, tem sete e está enroscada num enorme sati de pelúcia. Ela tem medo de satis, mas quando dorme, se abraça a um. Vai entender. “Tudo normal.”, penso eu.

Finalmente, chego ao banheiro. Tiro a samba-canção e entro na banheira, já cheia do fluido de termocélulas. Deslizo pela banheira até o pescoço, dando tempo do fluido limpar meu corpo e em seguida se aderir à minha pele. Ele serve como proteção adicional aos rigores climáticos de Vênus ao ar livre, somada à proteção da vestimenta UNO.

Já ouviu falar de uns caras chamados surfistas, que vivem nas ondas de qualquer praia que você veja? Pois então, a UNO é como um daqueles macacões de neoprene usados por eles, inteiriços, com as diferenças de incluir pés e mãos na proteção, e ser feita de um material que até hoje não consegui pronunciar o nome. Politexacítrium, eu acho que é isso. É usado pelos astronautas e tudo. Já deu pra sacar, certo?

Saio da banheira, e lá está, a UNO, gloriosa. Sem ela, não posso cuidar dos meus animais. Tiro-a do cabide e a visto. O fluido de termocélulas ajuda, fazendo o colante deslizar nas partes mais apertadas.

Me sinto igualzinho um daqueles super-heróis terrestres do século XXI. Ela pinica ali atrás. Mas você acaba se acostumando. Falta só a capa.

Vou até o lavabo. Que não é um lavabo. Está mais para um painel futurista, de formato circular, cheio de botões e com uma membrana esticada no centro do troço. Aperto alguns botões e coloco minha cara na membrana. A coisa começa a escovar meus dentes e a fazer minha barba.

Beleza. A máquina terminou, estou de corpo e cara limpa. E o cabelo? Não tenho, sou completamente careca. Tem qualquer coisa de podre na atmosfera de Vênus que faz a queratina sofrer combustão espontânea. Então, pode conferir como minha cabeça é lustrosa. Quando minha esposa ou minhas filhas saem, aí é outra história. Todas têm cabelos compridos, então as UNOs delas têm capuz. Simples. Mas caríssimo. Por isso comprei capuz para elas, eu posso ser careca mesmo.

Saudades de quando eu era bonitão.

Certo, toalete terminada. Hora do café-da-manhã. Desço as escadas, passo pelo saguão de entrada e finalmente, o território da patroa. Tudo branco, asséptico, bem parece um hospital.

Brrr.

Me sento na mesa e um robô-servente traz a comida. Já viu um apresuntado em pé num prato? É exatamente igual. Mas é gostoso á beça, graças a sabores artificiais e não sei o quê das quantas. E é nutritivo, tem tudo que preciso para um dia inteiro de trabalho duro.

Pego o prato e a colher e começo a comer. O negócio desce com uma facilidade absurda, e termino a refeição em alguns minutos.

O robô-servente está parado, do meu lado, paciente, e exibia o lado superior da cabeça plana. Haviam duas ranhuras, uma para o prato e outra pra colher. Enfio os utensílios em seus respectivos locais e o robô vai embora, sumindo por uma abertura na parede mais afastada.

Isso sempre me dá o que pensar.

Será que ele tem medo de mim? Quero dizer, assim que eu coloco a colher no lugar, ele se afasta em disparada, quase cantando seus pneus. Não, isso é bobagem.

Me levanto da mesa, vou até a porta dos fundos, coloco os óculos protetores, ajustando-os bem, e abro a porta. Mais uma lufada de vento gelado, mas nem sinto frio agora, graças à UNO. Ponho os pés pra fora e logo ouço um rugido, como um daqueles extintos Tiranossauros Rex, vindo á toda, para me comer. É de congelar os ossos, mas esse é o som que os satis emitem. O autor do urro é o mesmo engolidor de despertadores, Gatrang, que nutre especial afeto por mim.

Tenho de tomar cuidado, é meu maior sati e não tem idéia da própria força. Com quatro metros de altura, é enorme para um sati de apenas três anos de idade. Além disso, ele tem uma cauda super musculosa, e quando ele a sacode, pode destruir. A última vez,

ano passado, o garoto destruiu metade da cozinha, quando ele viu qualquer coisa além do rancho e se virara rapidamente, fazendo a cauda trespassar a parede externa todinha, ponta a ponta.

Bom, Gatrang tá me lambendo agora e, se não fossem os óculos protetores, meus olhos estariam cegos agora.

Olho pra trás e vejo a cicatriz na parede da casa. Ela é orgânica, sabe? Pode se reconstituir.

Começo a andar até o celeiro, com Gatrang ao meu lado.

Jesus, que grude.

Eu o salvei quando ele era recém-nascido. Alguém tinha abandonado-o, no frio e no vento, e satis bebês não agüentam o clima áspero de Vênus, se refugiando em cavernas, casas ou qualquer coisa que oferecesse abrigo, até eles completarem seis meses, quando a pele deles se torna verdadeiramente um tecido de aço. Nunca conseguiram machucar um sati. São duros na queda, só morrem de velhice.

Pensando nisso, meu sati macho reprodutor já tá bem idoso, viveu quinze anos. Foi o primeiro sati a ser criado só por mim. Os anteriores, eu tive de comprar pra entrar no negócio de criação. Eu chamei esse meu primeiro sati de Um. Não sei onde eu estava com a cabeça naquele dia. Na lua, provavelmente.

Estou preparando o Gatrang para substituí-lo, mas ele não está nem aí para as meninas, por enquanto. Mimei ele demais, suponho.

Abro a porta do celeiro e sou recebido por quase cinqüenta satis, ansiosos por começar o dia de ócio.

Vou até o painel de controle do celeiro e aperto os botões necessários. A ração deles escoa por encanamentos até suas tigelas. Eles começam a comer, alegres. Aperto outra seqüência de botões, e o cercado de criação de dois hectares de área sobe do gramado para demarcar a área de atividade dos satis. Enfim, espero os satis terminarem de comer, e começo a abrir as gaiolas, liberando a saída de cada sati, um por vez. Não dá pra soltar todos de uma vez. Eles estão alegres, e você lembra da cauda, né?

Deixo apenas o Um na vaga dele, pois tenho de examiná-lo toda manhã, para saber detalhes da saúde dele.

Satis em fim de vida morrem abruptamente, de um dia pro outro. E dessa maneira, consigo saber quando ele vai morrer.

Felizmente, não vai ser hoje, assim, tenho mais um dia de treinamento com o Gatrang.

Treinamento entre aspas.

Tudo que tenho de fazer é colocar Gatrang na cela dele e rodar um vídeo de satis no maior deita-e-rola.

Nojento, mas necessário.

E estranho também. Onde já se viu, o aparelho reprodutor de um animal ficar formado e pronto pra uso, só vendo vídeos? Não faz muito sentido.

De maneira que Gatrang já está deitado, de cara pra porta e não pro televisor. Ás vezes penso que ele implica comigo.

Cara chato.

Faço-o levantar, amarro a ponta de uma corda em seu pescoço, puxo-o pro lado correto, amarro a outra ponta numa argola, colocada ali para esse fim, esticando a corda. Agora quero ver, se virar de novo. Ouço uma respiração rápida. Ele tá rindo, o safado. Pois bem. Ligo o visor e inicio o vídeo. Saio da cela, fecho o portão e olho pra dentro.

Lá vai, filme pornô para animais alienígenas.

Vou pra fora do celeiro, observar a atividade dos animais.

Ser sati é isso: receber comida de manhã; sair, pra voar, fazer necessidades ou simplesmente deitar e olhar o céu púrpura; voltar pro celeiro no início da noite; dormir e fazer tudo de novo, no dia seguinte. Gatrang que tem sorte, de poder fazer algo diferente em sua rotina.

De repente, me lembro que Um ainda está em sua cela. Como pude me esquecer de tirar ele?

Ah, estou ficando velho.

Aperto o botão e lá vai ele, abrindo suas majestosas asas verdes com a orla azul, o que é sinal de velhice.

Um espécime magnífico.

Começa a voar, e sai do celeiro executando giros dignos de shows de acrobacia.

Sati experiente, ele. Até os outros satis o respeitam.

Ouço um clique, seguido da voz da minha esposa no telefone do painel. Estava dizendo que levará as meninas pra escola, e me perguntava se eu queria que ela comprasse algo na cidade. Lembrei do finado despertador e respondi que queria um galo, daqueles que cantam quando amanhece. Ela fica surpresa, mas concorda em comprar.

Será que ela sequer deu pela falta da maquininha barulhenta?

Deixa pra lá.

Olho pra casa e vejo as luzes se apagando, e depois uma turbulenta coluna de poeira deixada como rastro do veículo dirigido por ela, com as meninas a bordo. Agora, é sentar e esperar a volta da esposa, e torcer pra não acontecer uma emergência entre os satis.

Uma vez, um sati engoliu uma quantidade tal de maçãs que elas ficaram entaladas no trato digestivo do animal. Tive de despejar goela abaixo um ácido, daqueles bem fraquinhos, pra dissolver as maçãs. O sati ficou bom, mas o cheiro da urina misturada com o ácido e as maçãs dissolvidas ficou no rancho por duas semanas, e era um cheiro horrível. Resolvi tirar as árvores frutíferas do alcance dos satis e ficar só com o gramado. A macieira tá do lado de fora do cercado, agora.

Por falar nela, vou pegar uma maçã pro Gatrang.

Beleza, tá aqui uma maçã fresquinha.

Dou uma olhadela no cercado e vejo Um voando. De repente, ele bate na barreira atmosférica formada pelo cercado, barreira essa que impede os satis de fugirem do rancho. Um está tonto, tentando entender o que aconteceu.

Bicho bobo. Ainda não aprendeu, depois de quinze anos?

Solto uma gostosa gargalhada e entro no celeiro. Gatrang continua onde o deixei, assistindo o vídeo com sincero interesse. Abro o portão, e Gatrang me olha de soslaio, se voltando ao vídeo depois de saber que era eu. Jogo a maçã na direção da tela e Gatrang a apanha com a asa, deixando-a escorregar pelo flanco até ficar ao lado do pescoço, ao alcance da boca.

Bicho sangue-bom.

Dou um tapinha na anca dele e ele me dá uma rabada que me joga longe, só parando de escorregar no chão ao bater na parede oposta do corredor do celeiro, com as costas doloridas. Para manter a calma nesses momentos, eu repito como um mantra: “Ele não sabe da força que tem. Ele não sabe da força que tem.”

Me levanto e fecho o portão.

Acabo ouvindo ele rindo.

Retiro o que eu disse, ele não é sangue-bom não, ele é safado mesmo.

Ouço um ruído familiar, surpreso. Minha esposa já voltou da cidade.

Mas já? Olho pro relógio, verificando espantado, que já estava quase anoitecendo e eu nem percebi. Aperto um botão no painel do celeiro e um sinal sonoro é tocado, chamando todos os satis de volta pro celeiro. Eles começam a voltar cada um pra sua vaga, e eu vou fechando as portas daqueles que já entraram em suas celas. Decido deixar Gatrang preso essa noite, como castigo pela rabada.

Pronto, todos os satis já voltaram, e posso fechar o celeiro. Desligo o cercado, que volta pro solo e aciono a seqüência de fechamento do celeiro. O portão começa a se fechar lentamente, me dando tempo de passar por ele e sair.

Celeiro fechado, vamos pra casa.

Entro pelos fundos, na cozinha, e minha esposa tá ali, decidindo qual será o jantar, que comeremos quando as meninas chegarem. Jogo um verde, perguntando: “Vai ser o quê hoje?”. “Surpresa.”, ela responde.

Engraçadinha.

Pergunto onde está o galo e ela aponta para uma gaiola do meu lado.

Cego, eu.

Ela tá rindo da minha cara. Tudo bem, gosto de ser palhaço. Cadê meu narigão vermelho?

Beleza, vamos cuidar do galo. Pego a gaiola e a levo pra fora, a dez metros da janela do quarto, para que eu possa ouvi-lo. Mas não terminei. Vou até a garagem da casa, e lá pego uma versão miniatura do cercado de satis. Armo o cercadinho ao lado da gaiola e solto o galo ali dentro.

Agora falta só a comida. Ela está em cima da gaiola, milho.

Jogo-o no cercado, assim o galo não morre de fome.

Volto pra casa, dou um beijo na minha querida esposa, e ela reclama que eu estou fedendo a sati.

Sei lá, não sabia nem que satis tinham cheiro... Ela deve ter um olfato extraordinário, pra sentir isso, só pode. Ou é neurótica.

De qualquer forma, tomarei um banho. Pelo menos estou sentindo o cheiro do meu suor.

Banho tomado, visto minhas bermuda e camiseta favoritas e aviso que buscarei as meninas. Pego o carro, e rapidamente estou na via expressa, a 400 quilômetros por hora.

Certo, tô chegando na minha saída, viro á direita, subo o viaduto, passo pelo trevo, desço o viaduto, viro na segunda á esquerda e voilá, cheguei na escola.

Julie e Jade já estão lá na porta da escola, me esperando. Paro o carro na frente delas e sou atacado por uma legião de beijos. Também pudera, é a primeira vez que elas conversam com o pai hoje.

“Certo, meninas! Apertem os cintos, hoje tem jantar especial!”, digo eu.

“Êbaa!!!”, gritam elas.

Não sei nem o que vai ser no jantar, mas deixa quieto.

Faço o caminho inverso para casa e rapidamente chegamos. As meninas ainda estão cheias de energia e entram correndo em casa, e o paizão aqui está um caco, precisando de uma boa poltrona e de um bom jogo de futebol. É Venusia contra os Intergalácticos. Ligo a televisão, e ainda está na novela. Céus, isso não acaba nunca?

Beleza, dá tempo de ligar para aquele comprador que quer dois satis dóceis para dar de presente pra filha.

Ricaço, e uma filha mimada. Não julgarei.

Confirmo com ele: “Pode passar aqui amanhã.”

Bom, é o que faço pra viver. E vivo bem.

As meninas correm e me avisam que a janta tá pronta, e eu replico que hoje elas podem comer na sala, por causa do jogo. Minha esposa olha torto pra mim, mas as meninas adoraram, o que suaviza a expressão dela. Elas saem correndo e voltam com a minha janta. Rosbife acebolado nas mãos da Julie e um copo com suco de caju com a Jade. Minha esposa não curte muito, assistir futebol, mas as meninas são loucas por esportes, e são venusianas roxas, como eu.

O tempo vai passando, o jogo vai rolando e eu termino meu jantar. O jogo acaba empatado. Pelo menos não perderam.

Me despeço das meninas e da esposa, para ir dormir, pois tenho de acordar cedo. Elas me dão um abraço grupal, me desejando bons sonhos. Eu beijo cada uma das três mulheres da minha vida.

Beleza, hora de pegar uma caminha. Tiro a roupa, pego uma samba-canção na gaveta e a visto. Depois, é só questão de me enfiar no cobertor e apagar.

Cocoricóóó!! Blam!!!

Odiei. Odiei o galo. Peguei o rifle de caça e matei o gajo. Tive a presença de espírito de abrir a janela. Quatro e meia da manhã. Dava pra ver um buraco do tamanho de uma moeda no cercadinho, e os miolos da cabeça do galo espalhados no gramado. Já contei que sou campeão de tiro esportivo?

Bom, quando a esposa sair pra cidade de novo, ela compra um despertador novo. E hoje, vou vender dois satis. Daria pra manter a família por oito meses.

Tá tudo ótimo, as meninas não vão pra escola hoje.

É sábado.