2072: Libido Tribal
Nunca jamais.
2072: LIBIDO TRIBAL
Nikal olha pela terceira vez o relógio. Jarid está burlando outro contratempo, do contrário, como justificar meia hora no atraso? Detesta esperar e se fazer zelar. Ele também. O lugar de difícil acesso, um bar de subúrbio escondido até para quem mora no bairro. Vai sair fora. Sessenta minutos, nada. Apreensiva, pergunta-se: “Terá saído da rota para despistar algum perseguidor da Guarda da Segurança Nacional?”
Pega a bolsa, chama o garçom, os lábios na tulipa para o último gole. Já não o esperava mais, mas aí está ele, a adentrar na pequena sala superior. Ela fala algo aborrecida:
— Estava saindo fora, que houve?
— Seguiram-me, nada fácil burlar os zelotes.
— Você tem certeza? Pode ter sido apenas paranoia.
— Acho que não.
— Não devemos mais ser vistos juntos. É perigoso.
— Sim, olham-nos de modo suspeito, preventivo, como se fôssemos de outra espécie.
— Talvez sejamos mesmo. Mês passado pegaram Astrid e Morrison. É mais que nossa aparência, uma questão de vibração, de olhar, odor do corpo. Vai saber.
— Muda tudo: o olhar, a fala, os gestos, a maneira de sentir, de pensar. Que aconteceu com eles?
— Estamos vivendo realmente em outra dimensão perceptiva.
— Virtual, para eles.
— Foram levados para o Departamento Nacional de Reprogramação Libidinal, onde serão submetidos a seções de recondicionamento bioquímico PSI. “Redirecionamento Matrix” da pulsão instintiva. Sabe-se que rótulos a mais eles criaram para definir esse tipo de comportamento considerado antissocial.
— Deram sorte, outros reincidentes terão de permanecer numa colônia penal, por comportamento antissocial, para o resto de suas vidas.
Jarid olha pela janela, E aponta o vidro:
— Aqueles dois agentes descendo a rua. São da Vigilância para o Bem-Estar da Libido Coletiva. Estão, possivelmente em nossa captura.
— Tira a cara da janela, se te vidiam, vão te deter. E eu? Perguntou ela apreensiva.
— Venha, vamos sair, estão vindo. Não há outro local por perto onde poderíamos ser encontrados. Aqui, logo, saiamos pela entrada de serviço, depressa, depressa. Depressa. Os zelotes são fanáticos.
— Sei, são chamados de coronéis da doutrina da libido do sistema.
O casal apressa-se escada abaixo rumo ao carro alugado com a falsa identidade de Nikal. Livram-se provisoriamente da perseguição. Na BR-3 Jarid liga o rádio. O DJ Nicanor, anuncia no programa musical “As Cores da Amizade Colorida Universal”: “a real beleza de fazer parte da libido Tribalista. A criação de uma nova espécie de homo sensorial toma conta da sexualidade planetária. Cada pessoa divide com todas as demais, suas tensões, sonhos, esperanças, neuras e prazeres”.
— A individualidade é coisa rara. Comenta Jarid.
— Raríssima e combatida, comenta Nikal.
Desliga o rádio, insere. Sem olhar as imagens sugeridas no mini écran, liga-se na letra da canção proibida:
Se te excluem do rebanho
És apenas um selvagem
Diga não, não siga
Se não quiser
A lei geral da libido
Dos deveres deste mundo
Não te excluas da fadiga de negá-los
A águia voa mais alto
Que os pássaros da praia
Um deles não sabe disso
E vence naturalmente
O Everest do voo Falconi forme
A seu modo salta sozinho fronteiras abissais
Vence a condição limite
Voa sobre nichos jamais alcançados pela águia
No voar mais alto
Abre as portas de praias longínquas
Despreza a coleira doméstica da paisagem tribal
Aceita o desafio das asas do anjo
Da insensatez. A paralisia
De não ficar nos limites do bando
Globalizado pela libido da tribo
Indomesticados pela lascívia
Os membros alados não são de cera
Objeto desse prazer solar
O bibelô coletivo lúbrico
Desconhece a força de ser livre
A liberdade de ir mais longe
De criar a vontade em seus voos
Não faz parte da programação
“Aldeia global padronizada”
Eleva-te do grande oceano vencido
Alado nas criptas do luar
Vê, afinal, o quanto é essencial
A desmemória da libido plugada
Na cultura calada do larbirinto
Obrigado, grande poltrão zelote
Eu ainda me emociono
Com as tetas de uma vaca
Estou bem, na trilha desse tesão formal
Da velha neurose conhecida
Fuque-fuque macho-fêmea
Sufrágio-serpente, gênese universal.
Jarid conduz a mão às coxas esguias de Nikal. Afagam-se. O infinito alimento da sensualidade hetero, flui dos pelos reluzentes da pele morena. Os poros ciciam segredos. O silêncio das ponta dos dedos adentra a calcinha pelo vinco dos pelos. Ela entreabre as pernas. Os artelhos afoitos, alongam-se em direção ao ponto Z, enquanto Jarid cicia, de si para consigo:
— “O preço do livre apreço não tem preço. Não vou comprar essa ideia, do DJ Nicanor que a estiver vendendo. Vender a alma, seja pra quem for, para uma ideologia política ou emocional, jamais vai estar em meus planos. Não, obrigado, grande irmão da libido universal, propagandista do nivelamento horizontal perceptivo. Prefiro a velha conhecida ração do fruto maçã. Preservar a identidade da volúpia à antiga. Se essa política é avanço, serei sempre conservador, reacionário mesmo”.
Nikal acaricia o braço dele, o pulso a pulsar na entrada molhadinha da vagina. O carro segue na velocidade permitida pelo piloto automático. Parar e amar, o certo. Mas não podem arriscar-se, nem precisam. O computador de bordo, a visão noturna, a conexão via satélite, os freios antiderrapantes: o tecno designer garante a segurança da jornada. A inteligência artificial domina todos os nichos da indústria. O sistema de controle ajusta a posição do veículo e a velocidade, de modo a mantê-lo numa distância segura de qualquer obstáculo ou veículo que se aproxime.
A fotografia do casal encontra-se, online, em todos os monitores do canal de Tv informativo dos graves delitos contra o Programa de Proteção ao Bem-Estar da Libido Social. Pelo vídeo são procurados na condição de perigosos e nocivos reincidentes: elementos ativos, ferozes, nocivos ao suposto bem-estar globalizado da libido comunal. A parte superior dos bancos dianteiros, ao toque lateral, arqueia-se, até o encaixe no banco detrás, forma uma ampla e confortável cama.
Nikal ingere uma cápsula Linfax-100. Ela atua no sistema linfático, preenche os interstícios dos tecidos, atravessa, por diálise, as paredes dos vasos capilares, agindo principalmente no plasma sanguíneo. Causa na pele o efeito esponja. Muda o humor, a temperatura do corpo, como se os poros de Nikal, estivessem agora, a sugar, como lábios, os coloides nos orifícios da epiderme de Jarid, permeáveis apenas ao soluto.
A mudança de temperatura de um dos corpos, facilita a interação térmica entre eles. Como se, fisicamente, estivesse a atuar os efeitos da segunda lei da termodinâmica: dois corpos não conseguem transar energia entre si, se ambos estiverem à mesma temperatura. O Instituto de Farmacologia do Bem-Estar Social garante a segurança total no uso da droga: inexiste qualquer efeito colateral. Ela substituiu com sucesso o antigo ecstasy, ao provocar o aumento gradativo da autoestima, sem excitação. E estimula a interação entre casais e a sensação de relaxamento.
As palmas das mãos de Jarid aderem à pele da fêmea como se essa estivesse lambuzada da cola do cavalo marinho. Lábios e ponta da língua nos bicos arrebitados dos seios. Penetra o botãozinho rosa-choque pelo dedo maior de todos. Enquanto o seu vizinho e o indicador fazem festa nos grandes lábios. A valsa dança vaginal valsa como se estivesse num salão da Viena de Strauss Jr. O “Danúbio Blue” ecoa em cada movimento.
Os corpos se unem num antropofagismo lento. Civilizadamente. As mucosas eriçam, abrem-se como comportas de estações espaciais orgânicas. A fêmea molhada e quente, doa-se, cidadela de carne: penetração ritual em tempo ao mesmo tempo simultâneo, paralelo à tênue e perene atmosfera de imponderabilidade e mistério, lugar onde a Terra aquém de uma saudade longínqua.
Estímulos naturais das glândulas e músculos predispõem-se ao entusiasmo de todas as fodas homéricas: as perpetradas e as apenas virtualizadas. Começa a disseminação das sementes: o gozo, não apenas localizado, abrange todas as moléculas do corpo.
A ternura animal com que se doam do fundo do coração, faz com que permaneçam em estado virtual, entregues à mediunidade da libido do animal dos animais. Depois de três horas de viagens, pelos poros e pelos em franca volúpia, o carro para no acostamento, por ter terminado o período de autonomia do piloto automático. A ninfa Nikal, de shortinho sensual, vezes sem conta despede-se outra vez da Blue blusinha e do sutiã adolescente. A calcinha, obedecendo-lhe as arfantes coxas. O mínimo suor aumenta os intensos efeitos afrodisíacos do Linfax.
Jarid e Nikall agem interativa, simultaneamente. Sentem abrirem-se nichos sensitivos após os exercícios entre membros. Despertam do transe virtual para a virtualidade do tempo real. Sabem não mais ser possível circular pelas cidades: são procuradas como criminosos, pelos membros da mutação da raça Gls. No início do século eram minoria, agora, querem-se maioria absoluta. Como toda a ditadura, a da libido Gay proclamou suas convicções pessoais, como se pudesse sobreviver apenas com o apoio e a adesão de toda a humanidade. Toda tirania anseia por unanimidade. A da libido não é exceção.
Começaram no século XX querendo apropriarem-se do significado das cores do arco-íris, do símbolo triângulo. Os políticos, os executivos das grandes empresas, os editores, os cineastas, os religiosos, os policiais, os profissionais liberais, desembargadores e juízes, os policiais representados pelos coronéis zelotes, toda a superestrutura ideológica da administração social LGBTQIA+ foi se expandindo no poder, até estabelecer a lei globalizada, de que toda pessoa socialmente ascendente, tem de ser, obrigatoriamente, membro da química Gay, representada pelo slogan: “siga a lei global da libido”.
O entardecer anoitece. No horizonte, nuvens muito brancas, como penugens supostamente angelicais, são trespassadas por linhas de cores na intensa luminosidade poente. Jarid olha para Nikal e sente, de forma individualizada, a tarde fundir-se nos poros da noite. O olhar de Nikal insere-se nele. As percepções desarmonizadas. A paisagem, uma extensão das sensações de independência das leis gerais que regem a libido e as relações interpessoais na década setenta do Terceiro Milênio.
Passam por um “outdoor”. Nele uma série de pessoas simpáticas e sorridentes convidam: “Sorria, você é um prisioneiro da segurança”. O cinismo da frase faz lembrar a Nikal a destruição gradativa, mas inexorável da privacidade das pessoas após a data limite dos ataques terroristas às Torres Gêmeas em setembro de 2001 nos Estados Unidos. Nenhuma novidade, desde há mais de um século os e-mails são rasteados, os hábitos catalogados, tudo em nome da segurança de empresas públicas e privadas. Dos ricos e poderosos.
O domínio se afirmou feroz, usando da propaganda com palavras suaves. A autoridade e a prepotência dos que possuem capital e tecnologia, sinônimo de domínio sobre as demais pessoas, no mundo globalizado dos supremacistas e suas hipnóticas mentiras. Você está sendo filmado em todos os lugares. Investigadores humanos e eletrônicos trabalham “full-time” para as centrais de monitoração ambiental, desde o início do quarto quartel do século XX. Sabem de todas as coisas que você faz: induzem você a fazê-las para poder te reprimir melhor e mais intensamente. a lista de mercadorias pagas no supermercado, as pessoas com quem conversou, sua anuência sexual que a propaganda quer que seja única. Daí a vigilância truculenta dos coronéis zelotes.
Tudo acontece sob a justificativa da segurança pública e do conforto. Empresas oferecem serviços para forjarem situações virtuais, que só aconteceram devido recursos técnicos com imagens obtidas em locais públicos e privados. Se o sistema não gosta de você, do que você é, do que você faz, forja lives virtuais com sua imagem destorcida. A situação de vigilância generalizada: empresas, famílias, vizinhos, curiosos de sua intimidade, usam sistemas de vigilância que funcionam de maneira semelhante ao Estado quando força o cidadão a se registrar oficialmente nas instituições de controle de dados pessoais. Tudo acontece de maneira “voluntária”. Entre aspas.
Nas ruas das cidades, em média existem 450 mil câmaras que monitoram as atividades de pedestres em prédios, parques lojas e calçadas. 90% dos locais em que você faz alguma compra, estão monitorados com micro objetivas, com filmes supersensíveis, que focam você em locais camuflados, até quando falta energia elétrica. Nada menos de 10 milhões de câmaras filmam tudo nas maiores cidades dos Estados Unidos, baluarte da “democracia”. Essas câmeras possuem sensores especiais com formas diversas de monitoramento: reconhecem as pessoas pela face, pelos tiques nervosos, pelo modo de caminhar, através de gestos espontâneos ou súbitos.
Os radares fotográficos do trânsito, são mais de dois e meio milhões nas megalópoles. Seus sensores identificam se você está usando corretamente o cinto de segurança, fumando um baseado ou trocando certas ideias que possam questionar a ordem estabelecida pela linguagem oficial do sistema. Para não falar da placa de seu carro. Nos prédios do governo e de indústrias privadas de médio e grande portes, o sistema “body Search” (busca corporal) permite a identificação de qualquer objeto sob suas roupas, inclusive seus pentelhos.
100% das companhias exercem controle de métodos de vigilância de funcionários e clientes. Pessoas são demitidas de suas firmas por fazerem, via Internet, críticas em “chat” a seus chefes. Os governos do “grupo dos oito” usam programas em monitores de tv, alegando serem apenas de verificação da eficiência da propaganda: literalmente são usados para perseguir e prender pessoas sem autorização judicial. Pessoas que não estão se comportando conforme as normas da libido tribal.
Nos Estados Unidos os materiais de engenharia de que são feitos os polimentos finais das obras de engenharia, prédios públicos e privados, estádios, escolas, museus, as obras de pintura, a decoração dos apartamentos e salas de reunião públicas, têm uma demão final, com elementos de construção magnetizados, que absorvem o fluxo de ar gerado ao redor do corpo das pessoas, para identificação, nelas, de porte de drogas, armas ou explosivos.
A patente está em nome da Gary Seattle da Penn State Research Fundation. Empresas de observação como a “Space Imaging”, permitem que uma pessoa seja monitorada, em qualquer ponto da aldeia global, com fotografias diárias de satélites. Bilhões de registros cinematográficos monitoram quase tudo que acontece nas ruas, praças, avenidas, empresas, cada “shopping center”, e lojas policiadas por controle informatizado.
Os “governos das oito” monitora todos os telefonemas internacionais, e quase 100% do tráfego da Internet. A tecnologia da Inteligência Artificial capta a emanação eletromagnética dos usuários de computadores e reproduz todas as imagens que aparecem nas telas.
O acordo entre aqueles países, denominado “Echelon” (Escalão), usa uma rede de satélites espiões que grampeiam os cabos de telecomunicações submarinas, aparelhos de escuta em embaixadas e aparelhos de rádio. As informações são trocadas entre esses países desde 1947, data da assinatura do acordo dos sete que na realidade eram oito. O “Echelon” monitora mais de 97% das ligações internacionais e a quase a totalidade do tráfego globalizado da Internet.
Desde o século XX a “Raytheon” trabalhava na manutenção dos satélites do sistema “Echelon”. Ganhou a disputa da concorrência do projeto “Sivam”, sistema de vigilância de 1,4 bilhões de dólares, implantado na Amazônia no governo do “rei Mulatinho”. O monitoramento das fronteiras e do interior da Amazônia nunca será efetuado apenas pelos órgãos governamentais brasileiros.
Somente escritores de ficção científica poderiam desvendar parte do muito que há por trás das empresas privadas aliadas aos governos que controlam o planeta globalizado via satélite. Numa democracia, que merecesse esse apelido, as pessoas, os eleitores, teriam de ser consultados sobre se desejam ou não esse modelo de monitoramento. Ele acaba com a privacidade de qualquer cidadão do planeta visado pelas câmaras ocultas do sistema de dominação totalitária do capitalismo cro-magnon.
O novo projeto da Microsoft, o “Hailstorm”, permite que pessoas façam compra na Internet utilizando uma senha única. Todos os documentos estão como que implantados em uma identidade apenas. Em termos de privacidade e cidadania, as pessoas estão cada dia mais fragilizadas.
Se as pessoas estão fragilizadas, adamadas, a sociedade também está. “Eles” os coronéis tirânicos, os cães de guarda do sistema, os zelotes dos governos que protegem, através da legislação que favorece sobremaneira o comando, a comunicação e o controle das companhias multinacionais, zelam pelo regime totalitário, voluptuoso, horizontalizado, da libido.
O projeto “Carnivore”, do FBI, herança do século XX, assim como o “Hailstorm” (chuva de granizo), grampeia a Internet não apenas de pessoas suspeitas. Os agentes instalam um “box” no provedor de acesso que enumera o tráfico de e-mail e de sites. O Teclado Mecânico “Gamer Husky Gaming HailStorm é fácil de manejar e barato de consumir. Todos têm um. E se orgulham disso.
Estes pensamentos flutuam interativamente de uma para a outra mente do casal Jarid e Nikal. Agora, teriam de se refugiar numa das “colônias selvagens”, como são chamadas pelos LGBTQI+, as comunidades de heteros de pessoas que não podem ser vistas fora dos limites de suas reservas, sob pena de serem aprisionados e conduzidos aos campos de concentração de reprogramação bi virtual, onde a maioria deles são quimicamente exterminados. A robotização agora não é cirúrgica, é química.
Parte do mapa guia da reserva, a direção do refúgio, está desenhado numa tatuagem no interior dos lados do vinco da região glútea de Nikal. De tanto olhar para ele, Jarid já sabe de cor todos os meandros da geografia Amazônica, local onde se localiza a Central de Refúgio e Proteção aos Heteros.