O Prêmio

"Esta cidade sem poesia de vida se fecha.

Se prende, se tranca/em mil unidades de desespero.

Esta cidade/desolada isolada/ilha de poeira morta

Subverte o silêncio/submerge os soluços."

(H. Dobal, "Os Signos e as Siglas")

O casal Antron Hoiden habita em Sampa, no Jardim América. Gosta de ficar assistindo programas de tv, alguns dos quais não vê em comum. O sr. Hoiden mantém uma tv com programações multicanal, 47 polegadas, no quarto, outra na sala, outra na área de serviço.

Quando o tédio incomoda, sai para alugar vídeomovies.

Numa dessas incursões em busca de emoção enlatada, preenche um cupom com direito a sorteio mensal. O casal está interessado em ganhar passagens para uma série de viagens tendo SoulPlanet por limite. É a moda do momento: fazer turismo em SoulPlanet, ou mudar-se para lá definitivamente, via sorteios de passagens num programa de tv.

As duas condições básicas para a participação no sorteio: o casal deve alugar, de uma só vez, dez vídeomovies e precisa, somadas as idades, ter cem anos, ou mais de cem. Não importa a idade cronológica de cada casal participante, a soma deve totalizar um mínimo de cem. Ele pode estar com 65 e ela com 35, ou vice-versa, ou 70 e 45, ou 40 e 70, ou 44 e 66. A soma, insiste o regulamento do concurso, deve ser 100 ou mais de cem.

Não sabem ao certo o motivo desta exigência, talvez porque promoção do Canal100. Quem sabe tenha alguma relação com as Centúrias de Nostradamus em bookmovie, que uma editora lançou no mercado de cdvídeo, através campanha de publicidade detonante, em vídeoclips.

Os vídeoclips dramatizam a descoberta de um lugar sem dialética, SoulPlanet, no texto do Profeta de St. Rémy, a partir de uma interpretação muita discutida das Profecias, feita por um cientista que fala e escreve em dezessete idiomas, entre eles, grego, latim, hebreu, e sabe tudo acerca de teologia. O cara é conhecido por alguns críticos, enquanto intérprete sensacionalista da parte das Centúrias recém-descoberta.

As diversões tvvisivas de 2035 estão cada vez mais competitivas, estranhas, inusitadas, ousadas. Os canais de tv, empenhados num vale tudo, para ver quem atualiza mais depressa as tendências de entretenimento do mercado. Atualizar as programações é a paranóia dos gabinetes da produção tvvisiva. A ansiedade pelo lusco-fusco, a estrela da bunda mais detonante do momento, a xoxota mais nova que fuma, fala e joga facas. O bum-bum mais cheio de graça, as mágicas das Três Marias, que segundo o showmen da hora do Canal100, são provenientes de um planeta da Constelação homônima.

Cada retransmissora, via satélite, busca o inusitado com maior avidez que as demais. A Guerra nas Estrelas das programações atinge piques de audiência, com baixarias tipo um programa kafikiano denominado Baratinha Livre, dirigido a idosos com mais de 80 anos. O limite de média de idade aumentou nessas duas décadas do século vinte e um. Os tvespectadores migram, canal a canal, em busca do embuste tvvisivo do mais lustroso personagem virtual do lusco-fusco de maior ibope.

As viagens psivirtuais das pessoas da sala de jantar, são receitas aviadas pelos produtores de “shows”, inspirados pelos resultados das pesquisas de campo. Elas originam os mapas astrais dos programas que os tvespectradores vão assistir. O ponto básico é a satisfação da exigência tvespectadores por comoção barata, supostamente dotada de inovações. Inovações que, na realidade, não passam de prestidigitações da publicidade e propaganda do Canal100. Alguns comentaristas definem tal agenda de programação das emissoras de tv como sendo “peixe podre para videotas”. O profissional mais cotado da praça chama-se “detonador visual virtual”.

O “detonador” do Canal100 criou alguns sucessos de audiência: Além do “Baratinha Livre”, são também líderes: Ratinho Preso, Papagaio Brega; Bacalhau do Lalau, Adriana Tudoteu; Guabiru “Black-tie”, Tudo Pelo Doleiro e Rebideré. Mas o quente mesmo, o sucesso incontestável, a labareda mais ardente a queimar nas mentes dos tvespectadores, são os quatro sorteios mensais do espetacular quadro “Portais da Esperança” do programa DomingãoDo100zão.

A casal Antron Hoiden está realmente surpreso por ter sido um dos vinte e quatro casais do último sorteio mensal. Por cada segundo de publicidade neste quadro do programa, o departamento de propaganda do Canal100 fatura U$ 30.000 (trinta mil verdinhas). Trinta segundos representam 900 mil verdinhas em caixa. E o programa desdobra-se por seis horas.

As empresas disputam o mercado via comerciais para seus produtos, com uma agressividade inaudita. A megaviolência que transborda de alguns “clips”, promete mais conforto, divertimento e lazer, se o tvespectador adquirir esse ou aquele produto globalizado, ao mesmo tempo que participar do sorteio de seis casas e outro tanto de automóveis importados.

Aos carecas, esses produtos milagrosos asseguram vastas cabeleiras em três semanas. Os que querem camuflar as cãs, podem conseguir com Fofim 2015, “a naturalidade da cor dos cabelos de quando você tinha quinze anos”. As gordinhas e gordinhos podem comer de tudo na quantidade que quiser, se, depois das refeições, ingerirem uma cápsula de Magrecil, corpo a mil, e você será um supergourmet, com uma aparência de atleta olímpico, pra ninguém botar defeito.

O sr. Hoiden, contempla emocionado os comerciais projetados em tela múltipla, no intervalo do programa em que está sendo entrevistado. Maravilhado, ele olha em volta para o auditório repleto: As opções são muitas. Ele não sabe para que palco olhar, tantas as tentações visuais tecnologicamente produzidas. Elas maravilham a ingênua sede de plumas e paetês dos tvespectadores. Os doze grupos de garotas que dançam sensualmente nos palcos, vestem doze diversas grifes concorrentes no mercado da alta moda , e da moda mais popular. Elas completam o visual dançante e delirante do circo “high-tech”, via satélite, com seus pentelhos coloridos por cabeleireiros especiais, com cursos de mestrado em lacinhos púbicos, nas donzelas dançarinas dos programas nobres do “showbiz”.

Um dos mais badalados comerciais do momento, mostra o vinco da bunda de uma mocinha abrindo-se aos poucos para os lados, a partir da gradativa pressão da ponta dos dedos das mãos, saindo do buraquinho, em direção à cara, não mais pasmada, do tvespectador, a bela plumagem proveniente de quatro tipos de aves em franca extinção na Amazônia. Somente têm direito a tal privilégio, as garotas do carnaval 100zãobeleza. Seguidas às plumas, da fresta baqueana das mocinhas, saem amostras da nova embalagem com que será lançada a mais recente marca de cerveja diet do grupo de bebidas cartelisado pouco depois de 20l0.

Outra garota, represetando o quarto grupo de dançarinas no palco monumental central do DomingãoDo100zão, aparece no comercial curvada para a frente, o sorriso magnífico, mostra os dentes grandes e branquíssimos. Ela olha para trás, por sobre o ombro esquerdo dobrado em arco ângulo, o suficiente para observar o zipe sendo pego pela ponta dos dedos indicador e polegar. Ela divulga verbalmente o slogan do produto: 100limite: “Cem centímetros de kama-sutra. Venha sentir as delícias de vestir este jeans”. A grife apresenta um modelo de bermudas e calças, sociais e esportes, com um zipe que abre para cima, subindo em direção à nuca pela espinha dorsal, a linha de costura curvando-se na altura do ombro esquerdo.

Uma vez aberto o modelito, a nudez da beleza da mulher brasileira, feita de amor, mostra-se tropicalientemente. Os grupos de dança no palco costumam representar encenações criadas para a venda de produtos e serviços. O casal Hoiden sempre teve curiosidade de poder apreciar bem de pertinho esse truque virtual: as projeções a laser de garotas seminuas que nadam no espaço do palco principal do programa, como se fossem peixes num aquário límpido. De perto assim, o visual consegue ser ainda mais surpreendente.

Suspense, ansiedade, expectativa e confiança, transbordam dos rostos dos participantes da platéia. Uma dose extra de oxigênio é fornecida a cada hora e meia, de uma central que o distribui por todas as dependências onde são realizadas as filmagens do DomingãoDo100zão. Seu animador é considerado a Besta do Apocalipse dos programas líderes de audiência das tvs.

Uma garota muito parecida com a Gletez, par com outra, clone da Xuxanca, tira de dentro de uma imensa urna ventilada, o envelope com os dados do casal ganhador. Telões repetem as imagens da premiação do último domingo do mês, quando duas séries de doze passagens completam a cota mensal de sessenta felizardos com embarque garantido para SoulPlanet.

O sorteio funciona assim: uma dúzia de passagens são sorteadas em cada um dos três primeiros domingos do mês. No quarto e último domingo, duas dúzias de passaportes especiais, com poltronas garantidas na 1ª classe da nave, são emitidos pela política Federal, autorizando seus portadores ao esperado embarque com direção a PlanetSoul (ou SoulPlanet), devidamente autorizados pelas instituições competentes, são distribuídos aos ganhadores das vinte e quatro passagens sorteadas na apresentação dominical mensal do DomingãoDo100zão.

A propaganda do programa alardeia, após muita fanfarra comercial: São sessenta premiações mensais, de um total de 720 passagens para Soulplanet distribuídas a cada doze meses. Seja você também um privilegiado explorador de PlanetSoul. Não faltam casais de Indiana Jones candidatos à premiação da hora.

Muita gente alimenta grande ansiedade por ganhar. A coisa funcionou para o casal Hoiden. Inacreditável, a senhora Hoiden olha a cartinha, amassadinha, miudinha, na mão do apresentador e exclama de si para consigo: Mal posso crer em meus olhos virtuais.

O DomingãoDo100zão confirma: ela e o marido foram contemplados com uma série de viagens, marítimas e aéreas, tendo SoulPlanet por limite. O casal Hoiden festeja com amigos e parentes, próximos e distantes.

— Que sorte, comenta alguém na festa, com uma taça de champanha a afastar-se dos lábios. A voz sensual de uma socialite, estudante de comunicação, insatisfeita pelas férias tediosas, reclama em tom lamurioso:

— Daria tudo para estar no lugar deles, pena que não possam vender as passagens, eu pagaria trezentos mil dólares por elas. A convicção do senhor Martins Flambert, de que ele também pagaria tal quantia à vista, cede lugar ao comentário da senhora Fonseca Dijon: “Infelizmente a produção do progrma proibe os ganhadores de vendê-las, eu faria um lance de seicentos mil dólares”.

Conhecer PlanetSoul está valendo uma grana preta.

O casal Hoiden sente-se privilegiado e feliz pela oportunidade de visualizar novos horizontes e paisagens: “Haaahhah. Exclama entusiasmado o senhor Hoiden: “Viajar”. A palavra “Viajar” traduz a saciedade de uma ansiedade por conhecimento de novos espaços e paisagens até então interditas.

“Woohalll, finalmente terminou”. Quase não conseguem acreditar que estão mesmo seguindo em direção a esse lugar cobiçado. Conhecer essa nova terra prometida, prerrogativa exclusiva dos ganhadores do concurso, tal como promete o slogan: Venha Conhecer Do Que É Feita a Alma. Ganhe Sua Passagem Para SoulPlanet.

Sim, finalmente a aflição pela exploração turística do lugar terminou para o casal Hoiden. Afinal, as abençoadas promessas foram ouvidas, pisar o solo desse local sagrado, dessa região mágica que todos, mesmo os tvespectadores não casados, ou os que não somam cem anos, nem ultrapassam esse limite de idade, tanto desejam conhecer. Sentem-se, a princípio, perfeitamente à vontade. Mas viver não é apenas chegar, cicia o senhor Hoiden, há de se chegar, adaptar-se e permanecer.

Uma vez em PlanetSoul, a senhora Hoiden comenta: “Esse sítio tem uma geografia incrível. Em nenhum dos países que conheci na Terra (sim, porque essa localidade não pode ser a Terra), há mais estranho visual, natural ou urbano.”

Nesse momento, sem saber porquê, uma inusitada nostalgia invade cada poro do corpo. O casal lembra-se, com imensa saudade, da poluída São Paulo, como se jamais fosse voltar a vê-la. A nítida sensação de que muitas memórias remanescentes permanecem mais vivas agora, trazidas à consciência por algum misterioso nicho propício da mente. Memórias que se manifestam através de signos estranhos, paisagens inauditas, prenúncio de revelações sobre algum inferno ou paraíso antiquado a explorar, interna e exteriormente.

O senhor. Hoiden extasia-se com seus botões, enquanto uma imensa estrutura, cor ocre, resplandece acima de suas cabeças: Que bela inutilidade, pasma-se. Misterioso êxito emana da vã intensidade luminescente do falso muro. Não consegue atinar como essa parede mostra-se capaz de "mastigar" a quarta dimensão. Juntando todas as impressões, essa paisagem é o próprio Tempo ou seu Criador?, pergunta-se:

— Quem teria financiado esse colossal cenário que intensifica sobremodo essa angústia? Por que não permitiram que continuasse interdita, a olhos humanos, se seu efeito é tão devastador? A física relutividade causa surpresas perceptivas.

A sensação de que o muro suspenso funciona como uma espécie de módulo mental de indução magnética inconsciente. O poder que emana desse lugar só pode ter sido criado e gerido pela força superior de um Deus. A senhora Hoiden treme, por intuir que o mais humilde dos deuses, que mesmo um Deus sem dentes, é capaz de mastigar a quarta dimensão, com a facilidade com que ela ou o marido teriam para saborearem uma tangerina.

Pensando na magnitude dessa força, o casal, perplexo, contempla as paredes internas da edificação, através da qual está sendo conduzido. As constante estéticas de proporcionalidade: imponente, magistral e imponderável arquitetura.

Outra indagação do sr. Hoiden não se faz esperar: A paisagem desse lugar simboliza que inaudita e desarticulada mensagem inanimada? A vivacidade imponente desse muro, doze metros acima de suas cabeças, transmite uma extenuada e impulsiva inanição, imune a qualquer interferência, simplesmente onipotente, como se a condicionar estranhas percepções.

O casal Hoiden contempla boquiaberto o suntuoso portal ilógico, ao mesmo tempo barroco e gótico, como se tivesse sido construído por arquitetos fanaticamente profanos e fastidiosamente sacros. Seus olhos deslocam-se para o alto, onde, parecendo desenhadas sobre vitrais, as pinturas da alta parede do muro suspenso, brilham, como se afirmações ilusórias, aleatórias, de um tempo outro. Será ele uma construção de metal?, pergunta-se o casal.

Estas considerações contraditórias passam pela cabeça obscurecida do casal. O senhor Hoiden estranha lembrar nitidamente de um parágrafo do livro de Léu Vaz, Páginas Vazias: “Porque a tal nível de perfeição haviam chegado os artífices de outrora na reprodução manual de vistas, cenas e figuras, que o prestígio de sua arte obnubilou o juízo e o critério dos homens.”

Ambos se fixam nas pupilas como se estivessem admirados com a propriedade de suas mentes fundirem-se numa única percepção. Já não são duas almas separadas, seus intuitos moram no interior de uma única tensão. Ambos não conseguem sair desse mesmo lugar interior, como se prisioneiros dele. Experimentam um deslumbramento inaudito, ao contemplar o nível de perfeição a que chegaram os artífices desconhecidos das cenas e figuras de significados indefiníveis, para o juízo e critérios desses turistas, habituados à cultura da civilização Terra.

Vêem agora um portal interliga-se com outros portais a cada cem metros, através desse muro. Ele mais parece uma fita marrom, um largo fio, quatro e meio metros de altura, largura equivalente e comprimento interminável: uma espécie de grande muralha da China a doze metros do solo, alta tensão, ligado a níveis profundos da inconsciência, sem nada, aparentemente, a sustentá-lo.

Esquivo e estupefato o senhor Antron admira o muro que separa nada de coisa nenhuma. A senhora. Hoiden rói os dentes, contraindo com força os maxilares para os lados, a pressionar o inferior a todo momento, certificando-se de que não está no transe de nenhum sonho esquisito. Sente-se, não sabe porquê, vertiginosamente culpada por não estar dormindo e sonhando.

As inquietações do senhor Antron parecem fundir-se morbidamente com a perplexidade da senhora Hoiden: estão, há horas, ouvindo estranha linguagem rítmica, será um “mantra” gregoriano? Os sons são como uma fórmula encantatória, com o poder de materializar a divindade invocada. Que divindade?

Esse mecanismo sonoro mágico, fascinante, conduz com facilidade seus pensamentos. Buscam atinar. Não, mais parece uma música “new age”, talvez uma sonoridade dodecafônica indefinível, tipo as composições atonais do austríaco Arnold Schöenberg, experiências sonoras efetuadas a partir do emprego dos doze semitons da escala temperada. Os sons parecem brotar do mais ermo cantão do Cosmo. Sentem-na trespassar todos os espaços do corpo com essas reverberações intangíveis.

A impressão de que, pelo menos 8/9 dessas novas sensações permanecem na mente, nas células do corpo, absorvendo-as em direção a um depósito inconsciente de inclusões psi inusitadas. Não sabem de onde vêm, nem o que significam esses timbres musicais. Sentem-se transformados em meras projeções dessa maquiavélica, benevolente e implacável intencionalidade.

No distante horizonte, parece mesmo muito longínquo, dois corpos celestes, seriam dois sóis ou duas luas? brilham suspensos no espaço, irradiando resplandecentes colorações astrais: magenta e ametista. A toada, remota, trazia-lhes à memória, acontecimentos memoráveis há muito esquecidos.

O casal, como que obedecendo à mesma e subliminar sugestão, olha para trás, na tentativa de visualizar uma paisagem que, dariam a vida, se preciso, para que ela fosse, pelo menos remotamente, familiar. Desejam, desesperadamente, sentirem-se parte de uma cidade poluída, descer a rua Augusta até a avenida Europa, caminhar aos domingos no Ibirapuera, fazer exercícios físicos nas dependências do Sesc Campestre, apesar do insuportável odor de podre que exala da lagoa próxima.

O lugar, os sons, ensejam, de algum modo, de alguma maneira trivial, que eles sejam muitas coisas que desejaram, mas não conseguiram ser. Coisas que cobiçaram, e, apesar dos esforços, julgaram fora de seu alcance conseguir, agora prometem ser suas. Não há limites para a satisfação de suas antigas vaidades, para a usura e a ambição desmedidas.

Ainda assim, ambicionam a todo custo fazer parte de algum larbirinto doce larbirinto, brega e decadente, mas situado na boa e velha Terra.

Intensifica-se, no casal Hoiden, uma saudade indescritível de estar fazendo parte da multidão de almas queimando no fogo da sobrevivência, nas calçadas da sociedade mercadológica, no dia a dia da Terceira Guerra Fria Mundial. A Guerra-Fria que se trava nas ruas da quase megalópole Sampaulo, com todas as dependências implícitas de uma vida tensionada por exigências urbanas, às quais não mais podem ser diferenciadas, desde que o real e o virtual são, agora, a única e mesma coisa.

Sabem eles que todos os nove e meio bilhões de habitantes do planeta de origem deles, a Terra, parecem conformados a aceitar a ditadura da comunicação tvvisiva, sem traumas. Como se fosse a coisa mais normal do mundo, a deterioração de todas as mentalidades, pelo poder econômico subterrâneo, por detrás dos interesses dos comerciais tvvisivos.

O senhor Hoiden gostaria de sentir-se, outra vez, a realizar desejos, vontades e ansiedades virtuais, que se confirmavam apenas no plano das personagens animadas da telinha. O casal Hoiden sabe que na Terra, na boa, saudosa e velha Terra, eram seres humanos vivendo uma vida de virtualidades, porém podiam senti-la real, quando caminhantes do calçadão da avenida Paulista.

As lembranças de experiências distantes chegam até ele. O casal sente uma esquisita certeza de que as percepções triviais não mais seriam vivenciadas. A espinha dorsal dói, experimenta uma sensação incômoda, uma saudade profunda de caminhar pela alameda Lorena, entrar numa agência bancária, passar horas numa fila para fazer um simples depósito ou pagamentos bancários rotineiros numa agência da Oscar Freire.

Afinal, a informática não solucionou os problemas das filas, exceto indiretamente. Passam horas nelas, como caminhantes em fileira indiana, arrastando-se lentamente em direção ao caixa da agência bancária. A diferença são os glasseslaser, em sintonia de canal fechado, que permitem aos peregrinos das filas visualizarem os novos lançamentos de produtos, e a agenda animada de noticiários e entretenimentos, online, via satélite. Neles as lentes dos óculos funcionam como se fossem micro monitores, e ninguém paga nada, basta sintonizar, como os aparelhinhos de rádio do século XX.

O casal Hoiden mentaliza: Nem sei mais há quanto tempo estou aqui. Um semestre, um milênio? Que importa? Ninguém perguntou se desejo voltar. Ninguém perguntará. Estpu prisioneiro desse maldito sadismo de SoulPlanet.

“Hahhhaahhh”, murmura a senhora Hoiden, ardendo no que lhe resta de melancolia: São Paulo dos raros pássaros nos parques cercados de almas e habitações de cimento armado. Sampa das áreas verdes, das aves que parecem artifícios mecânicos, como aquelas fabricadas por uma empresa que produz andróides em Blade Runner Five.

— São Paulo, pronuncia nostálgico o sr. Hoiden, como se tivesse abandonado num lugar magnífico, mas execrado, das sinagogas de hambúrgueres, dos templos dos sanduíches de salsicha dupla com batata palha, maionese, catchup e tortas de bana e maçã.

— Meu Deus, exclama saudosista a senhora Hoiden, ou ambos, simultaneamente, daria tudo que tenho para sentir outra vez o sabor do BigBladeMac, nem que para isto tivesse de enfrentar 200 km de congestionamento.

Estupefato, o senhor dirige-se à senhora Hoiden, mencionando mais uma vez suas impressões sobre SoulPlanet. Ambos desconfiam que nem precisam abrir a boca. Para expressar pensamentos, basta a simples menção de uma idéia, ela ressoa imediatamente na mente deles , sem precisar de vocábulos.

Pintores e paisagistas sentir-se-iam, em meio a tanta magnitude e estranheza, inspirados a reproduzir em seus quadros, imagens incomunicáveis, dessa imensa e anômala edificação de dramática beleza, da qual fazem parte, agora, como se meros bibelôs, apáticos e obsoletos, arcaicos como antigüidades de há meio século.

Por que se sentem tão desconfortáveis? Jamais poderiam imaginar que pudessem vir a mendigar que coisas lhes fossem familiares:

Um objeto, um inseto, um som, uma música. Desistiram de seus patéticos apelos pelo surgimento de qualquer ser que pudessem identificar, a partir do uso de suas antigas memórias. Essas memórias estão tão distantes, parecem não pertencerem mais a eles, talvez pertençam agora, a outras pessoas que viveram em épocas passadas, há centenas, milhares de anos.

A ansiedade terminal por alguma lembrança do planeta Terra, pelo lar original, estranhamente persiste. Persiste fragmentada em vã expectativa, em mil pedaços de ilusões. Notam, mais uma vez, que esse muro que separa o ontem, o hoje e o amanhã, prolonga-se longitudinalmente por sobre suas cabeças, até onde o olhar alcança.

Agora, pensa o sr. Hoiden, a impressão é de que a estrutura é de mármore de cores cambiantes. Não mais se apresenta como uma alucinação de vitrais, aquelas pinturas animadas desenhadas no muro. O efeito em perspectiva estende-se longe, muito longe, como se penetrasse nas profundezas imperecíveis do infinito.

Pode ser, se não for realmente apenas uma seqüência de alucinações, uma construção de titãs. Somente gigantes ousariam investir num colosso arquitetônico de egrégia solenidade, sem nenhuma serventia que pudessem atinar. Por mais que se estimulem, sentem-se desalentados, não conseguem acertar o porquê da complexidade sem função do conjunto arquitetônico. Esse ermo desconhecido produz uma angústia ímpar: quânticas quantidades de desamparo.

De que se alimenta?, qual sua fonte de energia?, talvez os conflitos, as neuras, a inquieta frustração emocional e econômica das pessoas, atraídas para essa espécie de black hole anímico. O maquiavélico desafio de estar em PlanetSoul, isto sim é pesadelo. Fazem um grande esforço no sentido de rememorizar o passado. Como foram capturados pela teia da aranha negra de SoulPlanet? Lembram ter bebido meia garrafa de vinho branco antes de chegarem ao palco do quadro Os Portais da Esperança, do programa dominical da emissora de tv do DomingãoDo100zão, para receberem os carnês de crédito e as passagens.

Evitavam excesso etílico ou outro qualquer. Afinal, tinham ambos, somadas, cento e quatro primaveras. A estrada da redundância não os tinha conduzido ao templo da sabedoria, mas ao mais tenebroso e indescritível tédio. Daí terem ganho com grande satisfação as passagens para esse lugar mítico que a propaganda desafiava: “Venha conhecer do que é feita a alma. Ganhe sua passagem para SoulPlanet.”

A senhora. Hoiden começou a memorizar, passo a passo, como haviam chegado a esse lugar extravagante, de paisagem enigmática. Como podem ainda estar aqui, sob efeito de que química alucinante? Que espécie de perversão virtual poderia mantê-los nessa perplexidade, com que objetivo inconfessável? Arrebatados pela irreprimível exaltação da sensibilidade, redescobrem, como se pela primeira vez, que estão envolvidos num diálogo sem sons. Pensam juntos as mesmas perguntas e respostas, como se só pudessem ser, quando muito, a imitasção do outro:

— Lugar estranho. Um vasto descampado sem fronteira física visível.

— Estou com medo.

— Não, estou apenas muito só. Nunca passei por uma sensação de tamanha inquietação. Nem quero, se tiver escolha, estar neste lugar outra vez.

— Para não ter de voltar, preciso primeiro sair dele. Não sei como fazer isso acontecer.

As ideoplasmas flutuam, ao mesmo tempo, na mente do casal, como se ambos tivessem uma só cabeça: uma espécie de diálogo sem interlocutor:

— Vamos lembrar como e por que chegamos aqui. Então, talvez possamos conseguir imaginar um jeito de sair (como se fosse possível essa felicidade indescritível): Dar o fora daqui, sair fora, voltar.

— Lembro, preenchemos um questionário na locadora de vídeo. Como poderíamos imaginar que estavam falando sério quando prometiam uma passagem, com ou sem volta, para uma visita, provisória ou definitiva, à desolada magia de PlanetSoul?

— Hesitamos em preencher o quadradinho da opção sem retorno. Sorrimos com a possibilidade de ganhar a ambicionada passagem para este ermo cósmico.

— Aqueles filhos da mãe do DomingãoDo100zão. Zombaram de nossa ignorância. Como éramos ingênuos. As lamentações não abonam o arrependimento. Muita idade e toda essa ingenuidade.

— Eles sabiam. Quando ganhamos as passagens de entrada para Os Portais da Esperança, tinham conhecimento desta desolação tecnológica desértica. Estavam querendo livrarem-se de nós, por algum motivo que não atino.

— Sabe por quê? Queriam nos distanciar de nosso lar, de nosso modo de vida. De nosso planeta de origem.

— Os produtores do programa líder em tvaudiência, o DomingãoDo100zão, talvez não soubessem ao certo o que acontece aqui. Esse lugar passa a sensação de que dele é negado sair para sempre. Sinto como se estivesse em estado de coma, numa espécie de pós-mortem, sentindo o que sentem milhares de pacientes nos centros de tratamento tanatológico, que narram experiências visuais, após terem clinicamente morrido, e depois de terem sido considerados mortos pelos médicos, conseguem, milagrosa e inexplicavelmente, voltar a pulsar. O pulso voltar a pulsar: é tudo que querem.

— Sim, o coração ainda pulsa. Sei que não posso mais usá-lo no sentido estimativo. Mas ainda pulsa, posso senti-lo daqui.

O coração de Antron outra vez começa a pulsar, como que reanimado por uma força estranha, uma vontade vinda dele. Tal força não deseja nem permite que voltem a fazer parte de outra dimensão, do outro lado da vida que tinham na Terra.

— Esse lugar então é o outro lado? A quarta dimensão?

— Sem que se tenha morrido? Não sei, talvez sim, talvez não seja. De qualquer forma não gostaria de está outro dia aqui. Nesta sala de estar da desolação.

O casal Hoiden sente-se conduzido, intencional e gradativamente, a um estado de imponderabilidade. Aumenta sadicamente o volume do monólogo e do "diálogo" interior. Ampliam-se os caracteres de suas personalidades, até fazerem deles pessoas insuportáveis para si mesmos. São abandonados por seus egos. A intolerância, a repetitividade enfadonha com que se manifestavam, exige deles uma mais alta intensidade, uma pressão sangüínea insuportável.

O casal sente-se culpado, terrivelmente culpado, por ter sido como era antes da viagem ao mundo de SoulPlanet. Pensava, com a viagem, burlar o tédio virtual do quotidiano, apesar de verem muitos tvmovies. Riam-se da arenga supersticiosa de algumas pessoas conhecidas. Na Terra suas opiniões eram francamente desfavoráveis a uma explicação metafísica da vida. Tinham tais explicações na conta das compensações para os impulsos mais primitivos e reprimidos na psique.

O casal Hoiden lembra vagamente dos versos de uma canção do início do século XXI. Cantava-se mais ou menos assim:

Nada tão natural/nada tão trivial/uma flor num jardim/Todo amor vai ficando/que nem sinal/o outro interpreta mal/A banalidade vira estopim/detona o caos/Nosso amor, enfim, tão normal.../Somos mesmo um casal/Um começo de mundo/Ou seu fim?

Agora sente-se induzido a aceitar que existem forças ancestrais poderosas. Elas estão submetendo casais incautos à benevolente violência insuportável dessas sensações tenebrosas, violentas e nocivas. Não têm liberdade de sair delas. Precisa organização contra elas. O racionalismo do casal Hoiden se diluiu nessas sensações, nas quais mergulharam de cabeça quando chegaram a esse lugar.

Antes do evento PlanetSoul a senhora Hoiden acreditava que as cenas terríveis e sanguinárias, que seduziam diariamente bilhões de espectadores dos jornais tvvisivos em todo o mundo globalizado, eram um fenômeno de má gerência, econômica e social, dos recursos da sociedade, administrados pelos políticos. Aceitava tudo com passividade porquê, afinal, essa conspiração, chamada civilização, é parte do desenvolvimento da cultura no planeta Terra. As coisas são dessa forma, e pronto. Queria-se pragmática.

Agora nem tanto. Sentia-se à mercê das contradições e inconsistências do que existe e inexiste, de uma paralógica muitíssimo mais intensa do que a lógica normal ou paranormal. O casal Hoiden sente-se parte de uma realidade fractal, da química de uma geometria de todos os tempos do Tempo manifestando-se simultaneamente.

Cada uma memória fragmenta-se em segmentações ancestrais que parecem não ter fim. Então agora sabem ser parte do “Aleph” borgeano, lugar onde convivem, sem conflito, todas as visões do mundo, sob todos os ângulos. O pássaro que é todos os pássaros alça vôo nos limites mágicos de um círculo cujo centro está em todas as partes. O anjo de múltiplas asas, voa simultaneamente direções, sem pontos cardeais, cósmicas. Cada coisa uma infinidades de outras. Daqui, todos os pontos do universo são visíveis.

O casal Hoiden sente-se agora sob controle de outros seres mais fortes e mais poderosos, como as Fúrias ou as Eríneas. Estão possuídos pela exaltação cega e irresistível, paradoxalmente tediosa. Ela os dirige e controla, coletivamente, impondo condutas pessoais e sociais destrutivas, criando uma sociedade na velha e distante Terra, onde a dor e o horror de seres programados para falhar e sofrer, alimentam os avanços da tecnologia, assim como alimentam a malignidade da paisagem desse lugar maldito, criado por arquitetos coniventes, construído por engenheiros da maldade, da cupidez e da corrupção. Nitidamente, o casal reproduz trechos de um parágrafo do livro Cinco Réis de Gente, de Aquilino Ribeiro: “Decerto que...me formigava na polpa dos dedos, com uma cobiça atávica, encadeada desde os tetravós romanos, sôfregos pelo vil metal.”

PlanetSoul é isso: estranheza (da paisagem) e morbidez (psi).

Sentem-se inadequados e destrutivos. Revelam-se as engrenagens cósmicas medonhas que, desde o nascimento, motivam a raça humana em direção ao abismo, aos muros imperceptíveis, invisíveis, que separam as pessoas e os países em interesses inconciliáveis.

O casal Hoiden sente-se parte de uma mesma alegoria, desconhecida e ao mesmo tempo estranhamente familiar. Uma terceira voz, que era também a deles, ressoa compassiva no âmago de suas mentes, vinda dos confins desses espaços, reproduzindo-se em intermináveis reverberações:

"Somos parte da mesma misericórdia. Do mesmo sono. Aqui não são cobrados horário e rigor. Estamos no tempo e na compassividade do tempo. Somos o sono e o sonhar, as simples realidades da alma universal."

Afirma-se:

— Sei quando estou sonhando, com outra sensação qualquer. Isto é uma espécie de supranormalidade. Por que estão fazendo comigo?

— Como é estranho falar sem frases. Passa algum tempo, a voz ressoa dentro da mente, confundindo-se com a tonalidade de voz da terceira margem:

— Não acha mesmo muito estranho?

— Falar sem palavras, incrível, Pensou se não estaria sem identidade.

— Antron, indaga afirmativamente a voz, em franco processo de despersonalização:

— Você lembra?, saímos do palco do DomingãoDo100zão com as passagens aéreas e os carnês de crédito internacionais.

— Pensamos ser tudo uma grande brincadeira esse negócio de passagem sem volta para SoulPlanet. A aflição de um última memória do evento premiação.

— O motorista, ao sair para o pátio interno da emissora, conduziu-me atenciosamente numa limusine até o aeroporto.

— A seguir, o embarque no avião da Transworld-United Airlines rumo à Base Internacional do Caribe.

— Usei os carnês de crédito para comprar roupas novas. Fiquei três dias no hotel Passagem da Esperança, depois seguimos no iate Hope para uma das ilhas no limite sudeste do arquipélago.

— Tudo pago pela produção do programa, enfatiza a percepção comum.

— A única condição para usufruir do ambicionado prêmio: seguir imediatamente, do palco do programa para o aeroporto internacional, com todas as despesas pagas, para os locais de transição rumo à estação final. E aqui estamos nesse lugar maldito.

— Uma armadilha perfeita para ingênuos e ambiciosos turistas.

O casal permanece tentando manter ativa a memória. Consegue o exercício de alguma vaga individualidade. Sente que a avassaladora força da ressonância natural do lugar, por momentos deles se afasta, como se fosse um poderoso e ameaçador cão de guarda, abandonando-o provisoriamente à mercê desses estranhamentos despersonalizantes, dessa memória fragmentada do que sobrou da individualidade dele.

Está a reforçar condicionamentos antigos, como se fossem meras engrenagens de um parque de diversões universal, de uma roda gigante girando numa espécie de lei do eterno retorno da mesmice e do tédio. Essa roda viva da memória do casal, vai-se ampliando, percorre agora todos os níveis de vida orgânica em direção ao passado, ou estará direcionada ao futuro?

Não, sem chance. Há muito tempo, nem sabe quanto, o casal regrediu da condição uterina, para a vida de antes de seus pais terem-se conhecido. Vidas passadas, então é isso, já existiram muitas, muitas vezes, anteriormente a esta. Aquela coisa de vidas passadas não era apenas oportunismo de terapeutas “new age”.

O casal pertence a esse “vírus imemorial” de que são hospedeiros. A percepção persistentes dessa realidade transitória de vidas antigas. Elas parecem não ter fim: quantas infâncias e adolescências, quantas vezes foram crianças, jovens, adultos e idosos.

A sensação de que aproveitou tão pouco das experiências pelos milênios afora, a ponto da vida estar nesse beco sem saída, nessa encruzilhada dos horrores, nesse planeta sem alma, ou melhor, com uma alma única e cósmica, pertencente a todos e a cada um, onde a individualidade é impossível.

Sentem-se produtos de espermatozóides quimicamente condicionados pela virtualidade da tv, regredindo a condição cromagnon, desde as mais remotas eras da civilização terrena, quando os humanos não passavam de seres lovecraftianos, à mercê da gerência sensitiva dos hormônios, subjulgados pela mentalidade pós-moderna dos cromagnons do colarinho branco, administradores dos conglomerados tvvisivos, que têm por único objetivo, globalizar as mentalidades das gerações sintonizadas na telinha, em jogadores de cassinos, toxicomaníacos pornográficos, transformando-os em seres, quando não de sexualidade indefinida, criminosos sádicos, “respeitáveis” funcionários da política institucional do colarinho branco.

Miríades de sensações, sentimentos, pensamentos, desejos e explosões de raiva, por milhares de motivos diferentes, todos eles banais, apoderaram-se do casal Hoiden, deixando à mostra a ambiguidade de ambição, pessoal e coletiva, de sua raça.

Hoiden passa por esses estímulos, como se a espécie humana da qual fazem parte, se caracterizasse pela pleniconsciência de uma maldade congênita, heterônoma, como se o homem tivesse sido criado à imagem e semelhança de um deus da iniqüidade, e flutuasse, por puro cansaço, entre um e outro estado dessas polaridades: de uma alomaldade para uma alobondade, e vice-versa. O que geraria essa situação em que se encontram de aloperdição alomórfica: do pária ao astronauta, do mendigo ao cientista.

Nunca puderam escolher nada. O medo foi sempre maior que tudo o mais. Aprenderam a desprezar tudo e todas as coisas que tivessem algum valor e perenidade. Venderam a alma para o trivial variado, o prato feito rato, o café com leite da rotina urbanizada, o salário e o entretenimento faustianos.

Ele inventa diálogos, respostas lógicas, comentários, para explicar o que está acontecendo. Mas, de que adianta estar logicamente convencido do que quer que seja, se isto não modifica em nada a condição alógica, alucinada, das sensações de despersonalização em que vegeta?

A parelha Hoiden comenta com certa afetação:

— Comprei roupas nativas. Os créditos dos carnês permitiam adquirir tudo.

— Passei uma semana na boa vida cinco estrelas do Hotel Portal.

— Segui, em grande estilo, no iate Hope, até uma das ilhas no limite noroeste do arquipélago.

— Uma viagem formidável pelo encantado mar do Caribe.

— Todas as despesas pagas.

— Aceitei as regras sem saber que tipo de jogo estava jogando.

— É como ter feito pacto com o folclórico demônio: ele atende às expectativas, porém, em troca, exige nada menos que a alma do adepto.

— SoulPlanet, murmura simultâneo o casal Hoiden com indisfarçável amargura. Compreendo o que significa ter vindo para este lugar.

— A Terra está superpovoada. Esta é uma das maneiras que encontraram para diminuir a superpopulação, e o governo economizar no pagamento da previdência.

Havia imaginado que a nave com comando informatizado, na qual embarcou com deliciosa expectativa, depois de divertidas férias nas ilhas do Caribe, não passava de uma simulação de nave interplanetária? A seqüência dos eventos mostrou: a aeronave que conduziu o casal Hoiden a SoulPlanet, era realmente uma nave interplanetária.

— Eles nos enganaram direitinho. Exclamaram telepática e simultâneamente.

"Venha Conhecer De Que é Feita a Alma. Ganhe Sua Passagem Para SoulPlanet.”

— O objetivo turístico está alcançado, mas daria tudo e todas as coisas para voltar outra vez à rotineira vida na velha mãe Terra.

O casal Hoiden convive com paradoxos inesgotáveis que se sucedem sucessivamente sem cessar, como aquele personagem do conto de Borges, O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam: Em todas as ficções, cada vez que se vê diante de diferentes alternativas, ele opta por uma e elimina as outras. Ts’ui Pên opta simultaneamente por todas.

Agora o par sente que virou personagem de ficção. Seu caminho é os caminhos, bifurca-se em direção aos vários futuros. Ele está no centro de um problema exata e infinitamente oposto: todos os segmentos de caminhos que se bifurcam, o fazem em direção ao passado. Realiza-se em direção à intensidade direcional das chamas do inferno ancestral. O futuro, enquanto dimensão através da qual toda vida deveria desdobrar-se, inexiste.

Sabem que tudo e todas as coisas que possam pensar são inúteis, insuficientes, fúteis, para tirá-los dessa situação de surrealidade. Não há ninguém para ouvi-lo, com quem possa negociar alguma condescendência. Alguém ou alguma coisa se apropriou da vida dele, e ele não pode fazer nada.

Sente-se absolutamente à mercê de uma opressão tão forte e definitiva, que consente em abandonar-se ao claustro desse tedioso horror, censurando-se por haver confiado demasiado nas propagandas de programas tvvisivos. Censura-se por ter aceitado, enquanto membro da sociedade globalizada, ser virtual, real e virtualmente condicionado pela supostamente inofensiva telinha da sala de jantar.

— Uma vida virtual, irracional, dopada pela droga da propaganda.

— Domesticados e delirantes. O sistema apenas usa e descarta a gente. Não reajo, sou membro de carteirinha de um rebanho bovino, amedrontado e passivo. Como os carneiros do filme de Buñuel.

O casal pensa-se: tinha mesmo de ser substituído por carne nova. O sistema quer sangue novo, gente com pouca idade, sem “know-how” emocional, sem experiência existencial, isento de formação intelectual. O sistema quer conviver com a força de trabalho que não exerça nenhum tipo de crítica, que não tenha aprendido rotinas de trabalho obsoletas, antes da megamecanização.

Para ele, é preciso substituir por gado novo, as velhas gerações. As novas, são facilmente compradas pela necessidade de sobrevivência. Vendem fácil suas almas, sua força de trabalho, para as engrenagens do sistema, sem nem desconfiarem disso, sem questionamentos. Ao contrário, sentem-se eternamente agradecidos, devedores subalternos dos senhores que lhes pagam o salário. Não questionam nada. Se livram a própria cara, o resto do mundo que se dane. No mais, está tudo bem.

“SoulPlanet, não passa de uma lixeira planetária”, nela, o casal Hoiden pode delirar à vontade. Ele e todos os outros milhares de casais que ganharam a premiação para conhecer este lugar, e aqui ficaram, trazidos pelo quadro Os Portais da Esperança do programa DomingãoDo100zão.

Na Terra, um jornal clandestino, editado por um grupo auto-intitulado Eco Guerreiros da Liberdade, promove a distribuição de um hebdomadário de dez milhões de exemplares, em vários países, denunciando como funciona o esquema globalizado, através do qual centenas de pessoas em vários locais do planeta, dividem entre si o espólio dos casais que ganham, através dos sorteios, o direito de viajar e ficar em SoulPlanet.

A Edição Extra do hebdomadário Eco Guerreiros da Liberdade, denuncia que os casais premiados, antes de embarcarem na suposta nave interplanetária, assinam a transferência cartorial de seus bens móveis e imóveis, para testas de ferro da cadeia de tv que promove o evento Venha Conhecer Do Que É Feita A Alma.

Todo o processo de premiação está legal e juridicamente justificado. O governo federal de cada país, fica com parte substancial dos lucros, a título de recolhimento de impostos. A parte do leão dos ativos financeiros dos políticos que recebem propinas para permanecerem silenciosos, está depositada em contas nos paraísos fiscais situados nas ilhas Cayman e nas Bahamas.

Momentos antes de se instalarem nas confortáveis poltronas da astronave para embarcarem rumo a SoulPlanet, os Eco Guerreiros da Liberdade reproduzem imagens gravadas através de microcâmeras, em canais clandestinos de tv, que mostram executivos do DomingãoDo100zão, muito solícitos bem vestidos e cordiais, a convidarem os casais a assinar os últimos papéis da burocracia do sorteio do programa.

Diz o editorial na primeira página: “Sob efeito de doses gradativas de hipnógenos, ingeridos nos vinhos de paladar deliciosos, nos pratos típicos especialmente condimentados, nas sobremesas irrecusáveis, os casais premiados subscrevem, risonhos e complacentes, os papéis, ignorando que esses senhores, educados e aparentemente serviçais, das emissoras de tv, em 32 países, estão se apossando de todo o patrimônio dos casais, premiados, inclusive de seus ativos financeiros.”

O editorial dos Eco Guerreiros da Liberdade denuncia: “Quem poderia neste momento limite, defender seus direitos, zelar por sua cidadania? O processo de posse de seus corpos, de suas almas e de seus bens materiais é absolutamente legal, do ponto de vista jurídico. Se causar posteriormente litígio da parte de parentes, insatisfeitos com os acordos jurídicos subscritos (subliminarmente) pelos premiados, os advogados da corporação que defende os interesses do Canal100, nas Américas, Europa e Ásia, têm recursos e estratégias jurídicas, para superar tais impasses.”

O jornal dos Eco Guerreiros desmascara o esquemão oficializado dos advogados de defesa do DomingãoDo100zão. Os Eco Guerreiros divulgaram entrevistas tvvisivas, nas quais, supostos casais que teriam ido e voltado de PlanetSoul, de "livre e espontânea vontade", na realidade não passavam de clones das pessoas premiadas.

Após as denúncias, houve muitas passeatas de protesto, com milhões de pessoas nas ruas, em dezenas de países, exigindo providências governamentais. Elas não gostaram de saber que mais de doze milhões de seus semelhantes (parentes, conhecidos), foram jogados no lixo, como se fossem objetos obsoletos.

Essas milhões de pessoas saíram as ruas porque desconfiaram de que, possivelmente, seriam elas as próximas vítimas dessa política. Por trás do programa DomingãoDo100zão, havia um verdadeiro exército de tecnocratas. O grande complô do funcionalismo público (municipal, estadual e federal) envolvido, representando a burocracia do terceiro ao primeiro escalão, nos Três Poderes.

A impressão geral de que os mortos tinham conseguido levantarem-se de seus túmulos, como nas profecias. A sensação de que a passividade coletiva virtual em que se mantinham as pessoas, foi suspensa. Elas se moviam de dentro de seus nichos apartamentos, confinadas que estavam, há décadas, pelos padrões de realidade virtual, para exigirem providências contra os esquemas oficiais que mantinham funcionando a principal premiação do Canal100.

Uma clínica administrada por famosos cirurgiões plásticos, foi invadida por policiais federais, no centro da Grande Maçã: Nova Iorque. Na batida policial foram recolhidos documentos falsificados de pessoas, funcionários públicos e da iniciativa privada, desempregados e ex-predidiários, que, através de operações plásticas substituíam, nas entrevistas, os supostos ganhadores das passagens para SoulPlanet, motivando milhões de pessoas à concorrência pelos carnês da premiação, incitando-as a conhecer a essência, a imanência, do que seria feita a alma.

As investigações ocorreram por pressões inéditas da opinião pública, como se as pessoas estivessem a despertar de um longo e profundo sono virtual, e começassem a reagir contra as imposições subliminares dos filmes, programas ao vivo, jornais tvvisivos, e da propaganda direcionada no sentido de faze-las participar da sociedade, apenas e exclusivamente, enquanto peças virtuais do enorme mercado consumidor globalizado.

O entusiasmo pela participação dos casais na competição pelo privilégio da premiação, antes tão intenso, diminuiu vertiginosamente. O detonador visual virtual do DomingãoDo100zão perdeu o emprego para outro profissional da área, pertencente a outro segmento do mesmo conglomerado tvvisivo, situado na Espanha. O conglomerado apenas reciclou internacionalmente alguns de seus funcionários, para simular que tinham sido substituídos.

Após as investigações federais supostamente efetuadas, foram feitas algumas prisões de profissionais detonadores virtuais, que apenas mudaram de país, mas continuaram a fazer parte do conglomerado tvvisivo, com programação globalizada, denunciada pelos Eco Guerreiros da Liberdade.

Enquanto isso, o casal Hoiden, após séculos, milênios, anos-luz talvez (quem poderia saber melhor que ele?), ainda migra entre dois portais, sem se importar com os milênios de tempo terrestre necessários para ultrapassar cada um desses infindáveis cem metros de eternidade.

DECIO GOODNEWS
Enviado por DECIO GOODNEWS em 03/04/2010
Reeditado em 25/04/2010
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