A chama do Universo - parte 1

UMA VOZ murmurante despertara Adam de sua hibernação, ou foi a programação estabelecida. Afinal, apesar da confusão mental resultante de seu estado de repouso na câmara criogênica, resistiu à tentadora vontade de perguntar “o que disse?”; seu espírito já o havia preparado para a insólita empreitada e seu maior desafio: a solidão. A missão, estacionar na zona limítrofe do alcance de um buraco negro e perscrutar o seu comportamento, era até simplória se comparada à tarefa de suportar a idéia de que nunca retornaria ao convívio humano. Mas havia sido preparado para tanto, e inclusive alertado sobre a hipótese de vozes imaginárias. Só queria saber o que a sua própria voz, logicamente fruto do subconsciente, havia dito – afinal, quando na Terra, não tinha o costume de falar dormindo. Mas era momento de concentrar-se em sua localização atual, a mais privilegiada que o ser humano nunca esteve: o núcleo da Via Láctea.

Cercado por estrelas vermelhas e alaranjadas por todos os ângulos da sua esfera transparente de sete metros, Adam se pôs a contemplar por alguns segundos aquela cena mágica. A sua esquerda, uma imensa nuvem girava velozmente em direção a seu próprio centro, mais uma tentação se fazendo presente, porém perigosa, pois fitá-lo exercia alto efeito hipnótico e não era nada sedutor para quem se recuperava dos efeitos do estado de hibernação. Mas mesmo de relance reconhecera, de imediato, Sagitário A, a nuvem-mor da “via de leite”.

Sua única companhia dependia da confirmação de sua posição para se fazer audível. Apertando a tecla mais colorida do painel, Adam faz contato.

- Adam?

- Oi, Even, estou são e salvo, antes que pergunte.

- E aí, como é?

- Normal, nada que eu já não tenha visto nos simuladores 4-D e nas festas raves da faculdade – mente Adam, que nunca gostara de música eletrônica e nunca foi convencido por simuladores.

- Manda uma imagenzinha aí, vá...

- Depois do seu, lindinha.

Devido às suas localizações, enviar imagens era como assinar um atestado de óbito espacial. A atração gravitacional ao redor era tão grande, mas tão grande, que qualquer meio de envio seria desviado para o lado contrário e levaria junto seu emissor para um beijo do desconhecido. Não que não houvesse a opção: em caso de morte iminente, o condenado espacial tinha a nobre e derradeira missão de enviar quantas forem possíveis para todos os lados.

- E você, se divertindo muito?

- Qual nada, acho que nunca uma mulher foi tão longe atrás de uma minhoca preenchendo um buraco.

- Porra, Eve, assim você me deixa excitado.

A minhoca a que a cosmonauta se referia era o fluxo de atividade magnética que ora se intensificava, ora se retraía, em um ponto próximo á cápsula de Even, em ciclos de tempo que, segundo os cálculos de prospecção do Projeto, deverão se reiniciar a qualquer momento. O comportamento sugeriria a ação do chamado “buraco de minhoca” de vários loucos que assassinariam para testemunhar tal evento. Ainda assim, Eve preferiria algo mais dinâmico, como uma investigação no Cinturão de Kuiper ou uma exploração em solo de algum exoplaneta.

Apesar de ser assumidamente um pouco anti-social, Adam estava feliz por ouvir a voz de Even. Só a encontrara uma única vez, num congresso em Davos, e a imagem que passara era de uma criatura alegre e comunicativa, do tipo que faria bem a um introspectivo e agora solitário astronauta. Além disso, era bonita, algo raro numa cientista com tantas titulações. Pena não ter lembrado de procurar alguma foto sua para levar à missão, a fim de evocar seu rosto feminino toda vez que a ouvisse. Even o fez, e pendurou uma fotografia de close do colega distante assim que soube que ganharia sua companhia espacial. Mas isso ela não revelaria a Adam, pelo menos por enquanto.

Comparativamente, o trecho de espaço ao redor de Even era mais perturbador do que o que cercava Adam. Enquanto o do eslovaco era composto de uma nuvem turbulenta previsível, a americana se encontrava submersa num mar de passividade cósmica, no manto escuro do vácuo permeado de pontinhos distantes de astros já catalogados. Apesar desta aparente tranqüilidade, os instrumentos ali apontados volta e meia ficavam ensandecidos, denunciando uma atividade eletromagnética que desafiava os padrões atuais da física teórica. Assim se justificara a necessidade de montar guarda científica o mais próximo do local.

- Eve, capto elevação no nível. Desligando.

- Tchau.

Elevação significava aumento nos níveis eletromagnéticos, e, por precaução, o canal de comunicação era desligado.

Adam monitora os registros no painel de controle quando uma leitura em especial lhe toma a atenção. A cápsula se movera durante femtossegundos em direção ao centro gravitacional, contrariando os cálculos iniciais da base que previram influência na escala de nanossegundos. E este foi o registro de cinco minutos atrás, quando encontrara seu posto de observação espacial. Num ímpeto, antecipou os dados da leitura seguinte no teclado e seu coração gelava: o módulo Tav avançara três metros de sua posição original, rumo ao buraco negro. Adam se orgulhava pelo poder de seu inevitável algoz.