O PARAÍSO NA TERRA
O PARAÍSO NA TERRA
A humanidade do quarto milênio era imortal! Com a cooperação global o sistema de saúde unificado permitia o acesso para todas as populações às novas tecnologias, descobertas e trabalhadas desde o distante século vinte e um.
O processo de envelhecimento fora barrado pelas injeções de telomerase, a enzima responsável por estimular a construção do telômero, aquela tampinha que protege os cromossomos e que diminui a cada divisão celular, o que provocava a deterioração da célula e o conseqüente envelhecimento.
A renovação dos estoques de células mortas através das injeções periódicas de células-tronco, que têm a capacidade de formar novos tecidos e órgãos livrou a humanidade da rejeição dos transplantes e falência de órgãos.
As agressões ao corpo provocadas pela alimentação contornadas pela simulação da fome em pílulas, que disparam o alerta para otimizar os recursos que tem como as proteínas, com a descoberta e uso do resveratrol, que induzia o cérebro a registrar a restrição calórica, levando o corpo a se proteger do risco de quando a fome aperta, sem, no entanto que seja necessária a fome real, permitindo que o corpo esteja em constante recuperação.
A água pesada, onde o se troca hidrogênio por deutério, deixando a molécula mais resistente aos furtos de elétrons pelos radicais livres, e diminuindo e eliminando o dano envelhecedor às células.
Os órgãos artificiais criados a partir de células do próprio paciente, cultivadas em laboratório, permitindo a troca quase instantânea de órgãos defeituosos ou falidos.
Os nano robôs, do tamanho de células, que percorrem o corpo humano, limpando artérias e destruindo vírus, bactérias e tumores antes mesmo que qualquer dano seja causado ao organismo.
Além de todos esses recursos, havia ainda a possibilidade da troca da aparência, através de implantes e esculturas, tatuagens de efeito natural e artístico, reforma óssea e muscular e até injeções de cores na pele, na retina, nos lábios ou partes genitais!
O problema da fome foi remediado pela cultura dos hidropônicos e a sinterização de proteínas. A habitação revolucionada com as colônias submarinas e subterrâneas e posteriormente na Lua e em Marte, a princípio estatais, mas gradualmente postas à disposição de todos os interessados, não mais tolhidos pelo poder aquisitivo, equitativamente distribuído, ao longo das existências eternas e frutíferas.
Com a imortalidade, a aposentadoria simplesmente perdeu o sentido, e as pessoas passaram a dedicar-se a várias carreiras consecutivamente, promovendo o rodízio de profissionais e novas idéias nas diversas áreas e não permitindo a estagnação do sistema econômico e tecnológico. As artes conheceram um período de Renascimento eterno, com novas levas de gênios e dons insuspeitos adormecidos por talvez cem anos ou mais, que afloravam e surpreendiam.
Com a morte abolida, as famílias tornaram-se clãs numerosos e a convivência conjugal mais variada, pois o tempo infinito permitia constante troca de parceiros, sem prejuízo para o desenrolar das relações, que se estendiam pelo ciclo natural de paixão, amor, desejo, crescimento emocional e intelectual, e inevitável tédio e rotina; quando então os parceiros se despediam e partiam para novos encontros, sem pressa nem inseguranças ou preconceitos quanto à idade ou aparência. Assim era que, aos trezentos anos, uma pessoa podia contar algo como trinta relações duradouras e enriquecedoras, sem o estigma da inadequação ou da promiscuidade.
A educação sistemática, ainda atributo do Estado, foi reformulada, passando a ser contínua e ininterrupta, posta à disposição da população em diferentes níveis e áreas. O básico era o letramento e a iniciação às Ciências, e daí, o indivíduo poderia escolher a sua primeira área de interesse, sem preocupar-se em adquirir uma profissão para toda a vida, pois poderia ingressar em quantas carreiras quisesse, desenvolvendo todas elas e contribuindo em vários campos do conhecimento humano, o que aniquilou com o preconceito profissional e o status inferior de certas profissões. Um geneticista poderia optar por seguir a carreira de agrônomo, depois de cinqüenta anos ou mais exercendo a primeira profissão, ou mesmo dedicar-se a trabalhos braçais por algum período de sua eternidade, sem perder posições sociais ou econômicas.
O próprio conceito de capitalismo foi reformulado, eliminando-se o exército de mão-de-obra de reserva, pois sempre havia interessados genuínos nas mais diversas áreas e a negociação salarial passou a se dar em termos de tempo disponível e contribuições inovadoras. O dinheiro, motor do mundo, continuou desempenhando seu papel de moeda de troca, ao lado do escambo de mercadorias e idéias.
A pobreza ou a ostentação conviviam lado a lado como estilos de vida, escolhas individuais e inquestionáveis, direito do cidadão, pois, com a nova dinâmica social e trabalhista, qualquer um poderia alcançar o acúmulo de riquezas materiais e ideológicas que quisesse, necessitando e dispondo de tempo e meios para tal.
Num paraíso assim, por que os psicopatas continuavam proliferando? De todos os tipos, assassinos, estupradores, pedófilos, mentirosos compulsivos, ladrões e exploradores de pessoas. Nada do que a humanidade havia alcançado lhe permitira identificar, eliminar ou impedir os seres humanos que desenvolveriam comportamentos como estes, e a única solução passou a ser o controle total, a abolição da privacidade e a regulação pelo Estado das normas de convivência em todos os setores sociais, desde a família à escola, dos bares e clubes ao campo de futebol lotado. Das empresas às fazendas. Espaços públicos e privados tornados iguais, onde todos eram vigiados e monitorados seus batimentos cardíacos e movimentos, suas transações financeiras e encontros sexuais, suas incursões pelas cidades, guetos, prostíbulos e quartéis.
Sempre, a todo o momento, sem nunca falhar, a Polícia Unificada Planetária vasculhava bancos de dados, enviados imediatamente às centrais de monitoramento, e havia sempre uma patrulha por perto, invisível, no ar, na terra, no mar e sob o solo e os oceanos.
Era este o único segmento onde o rodízio de funcionários não era tão constante, e quando ocorria, mantinha-se invariavelmente o indivíduo dentro de seus limites, podendo apenas ser transferido de um setor de operações de campo para um de coleta de dados, ou do de análise para o de estratégia e assim sucessivamente, dentro da teia dos intricados meandros do Serviço de Controle Policial.
Era também um dos poucos grupos sociais com permissão de procriar, posto que o Governo não podia incorporar cidadãos oriundos de outros setores, sob o risco deste sofrer da Síndrome da Inadequação Entediada, e tentasse retornar às outras áreas de atuação, levando consigo segredos administrativos indivulgáveis. A Polícia Unificada tornou-se assim aos poucos, uma casta separada, de pessoas nascidas dentro dela e para ela destinadas.
Até que o status quo foi quebrado, com a invenção do microchip de detecção e reação. E esta foi a verdadeira revolução da humanidade eterna. O chip não só reconhecia e lia ondas cerebrais como as identificava, como uma telepatia unilateral e deflagrava o processo químico que induzia a dor, caso as ondas cerebrais não se modificassem em poucos minutos. O alerta vinha por meio de um similar ao choque elétrico, que percorria o cidadão em dolorosos trinta segundos, e o impelia a conter seus impulsos, retornando a cada recaída, independente dos intervalos entre elas, podendo as convulsões se repetirem indefinidamente e ininterruptamente, em casos de psicopatias incontroláveis.
Em tese, o chip era um aviso para controle, mas na prática, um julgamento e uma condenação instantâneas. As intenções aberrantes inerentes em certos indivíduos eram impossíveis de serem camufladas por estes, uma vez que o chip as lesse e o mecanismo de disparo fosse acionado, então o elemento passava a sofrer de convulsões incapacitantes, até ser recolhido pelas patrulhas, e nunca mais ser visto.
Foi assim que o paraíso da eternidade foi manchado com a morte. A sociedade não se furtou de aprová-la em casos como tais, e as execuções eram assistidas por todos, via internet, satisfeitos de terem eliminado mais um desajustado.
Ninguém contou com o recrudescimento dos comportamentos místicos, um retorno às religiões antigas, a renovação da fé em algo invisível, uma espécie de juiz moral, que condenava a pena de morte, e, aos poucos, passou a imiscuir-se em todos os setores sociais, desde o sexo até o vestuário, desde a cultura até a medicina, desde a igualdade de etnias até a igualdade entre os gêneros.
Este poder paralelo cresceu, à medida que a morte voltava. Abolida esta, não havia necessidade daquele. Mas com as execuções o fervor místico contaminou todos os segmentos sociais e chegou ao Governo, que, em poucos séculos, decretou a extinção dos chips, e a volta às condenações posteriores ao crime cometido, com as penas reduzidas para a contenção e isolamento dos trabalhos forçados e embrutecedores.
Logo surgiram místicos dissidentes, contrários a toda a forma de Ciência, pregando um estilo de vida primitivo, voltado para o estoicismo e a não satisfação das necessidades do corpo. E a guerra religiosa explodiu entre os eternos.
Os cidadãos comuns foram os que mais sofreram, como em todas as guerras antigas, pois não tomaram partido e foram considerados culpados de heresia e constrangidos a se pronunciar ou emigrar para as Colônias da Lua e de Marte, transformadas agora em guetos e campos de refugiados.
E foram estes em sua maioria, justamente os cientistas defensores da PIET – Pesquisa por Inteligência Extraterrestre, os intelectuais da Imprensa e das Artes e os astrônomos, professores, livre-pensadores comuns e geneticistas, que se negaram a compactuar com o expurgo e a guerra.
Alguns séculos depois, os alienígenas chegaram. E demoraram a acreditar que a vida na Terra havia sido extinta e o planeta estava totalmente radioativo. As colônias abarrotadas de degredados eternos e seus descendentes mortais, vivendo em condições espartanas de pouquíssimos recursos.
Foi assim que a História Terrestre foi ensinada pelos selenitas e marcianos, herdeiros da cultura terrestre, aos outros povos da Galáxia, que se deixaram fascinar pelos seus percalços, e se propuseram, eles mesmos, a desvendar no genoma dos humanos, o segredo da imortalidade, também para eles.
Mas não faltaram povos encantados por aquelas idéias de um ser invisível e controlador, do qual nunca tinham ouvido falar, que criara e regia todo o universo com um propósito único só dele, e estes se lançaram em recriar seus mitos, e fundaram a primeira religião inter estelar, que adorava um deus, conhecido como o Deus das Punições.
Não há registros nos livros de História Universal de qualquer confronto ideológico entre os crentes e salvos e os infiéis e condenados, que convivem pacificamente nos sistemas planetários habitáveis, com suas diferentes culturas e civilizações.
Não ainda.