O LADO OCULTO DA LUA

Ninguém escapa incólume do espaço. Nem eu escapei. Meus pés tocam a terra firme, mas há alguns meses, enquanto durou a aventura espacial que quase terminou em tragédia, eu nem me lembrava que existia uma Terra. Eu voltei, mas minha mente e meus sentidos ficaram para sempre lá em cima, na Lua, que brilha cheia com sua luminosidade emprestada do Sol. Será que algum dia estive realmente por lá ou tudo não passou de um sonho, um grande e infindável sonho? Não fossem as cicatrizes, que volta e meia me pego acariciando, quase como se acaricia um troféu de guerra ou a mulher que se ama, eu poderia jurar que foi tudo uma grande ilusão.

Hoje eles me paparicam e convidam-me para festas e entrevistas na TV, mas não foi sempre assim. Lembro-me perfeitamente quando me consideravam um astronauta de segunda categoria, o orgulho não me deixa esquecer disso, e então eu me recuso a comparecer, deixando-os confusos em relação a mim. Alguns acham que é por puro despeito – e não deixam de ter razão. Outros citam o trauma pelo qual passei, vendo dois companheiros de missão morrerem bem na minha frente sem poder nada fazer – também não deixam de ter razão, sob certos aspectos. Nas revistas me tratam como herói, alguém que foi aonde pouquíssimos homens já foram, e conseguiu retornar com uma história fantástica para contar.

Lembro-me quando ainda estava na quarentena, assistindo a uma mesa redonda na TV, em que um dos entrevistados, um psicólogo, disse que provavelmente eu jamais tornaria a ser o homem que era antes de embarcar naquela aventura espacial. Acho que foi aí que tive a ideia de ser aquele homem confuso e distante, recluso até. Resolvi desempenhar esse papel com medo de falar demais, de deixar que minha língua me dominasse e, sem querer, entregar o que de fato aconteceu durante os sete dias da Missão Espacial Cruzeiro do Sul. Sei que olhos atentos estão voltados para mim, sondando, inquirindo, tentando adivinhar os segredos eu trouxe comigo do universo distante.

Tento descobrir quando tudo começou. Talvez na infância, quando o primeiro brasileiro pode contemplar a Terra da cabine de um foguete em órbita. Foi ali que decidi um dia repetir o feito do astronauta Marcos Pontes no longínquo ano de 2006: eu seria um astronauta, e iria mais longe que qualquer brasileiro jamais fora.

Minha vida então se transformou em um mundo de cálculos e treinamentos sem fim. Fiz todos os cursos que sabia que me aproximariam do meu sonho, até conseguir ingressar no ITA, Instituto Tecnológico de Aeronáutica, onde me formei em Engenharia Aeronáutica. Tornei-me piloto de caça, consegui ser designado para servir no Centro de Lançamento de Alcântara, exatamente numa fase em que o governo se mostrou disposto a esquecer o acidente fatal de 2003, onde morreram 21 pessoas, entre técnicos e cientistas, e decidiu investir no Programa Espacial Brasileiro. Apresentei-me como voluntário e fiz todo o meu aprendizado aqui mesmo, no Brasil, que já dispunha de tecnologia de ponta para o treinamento de astronautas ao nível do primeiro mundo.

Nesse meio tempo, outros brasileiros estiveram no espaço, mas a Lua ainda era um sonho distante para mim. Qual não foi a minha surpresa ao saber do planejamento da nossa primeira viagem à Lua, a missão Cruzeiro do Sul. Fiz o possível e o impossível para ser escalado, mas o máximo que consegui foi a primeira reserva, o que significava que, caso algo acontecesse com um dos três astronautas escalados, eu assumiria seu lugar.

Durante dois meses fiquei na expectativa. Não desisti em nenhum momento, dei o melhor de mim nos treinamentos, eu sabia que a parte final do era dura e alguma coisa me dizia que aquela vaga seria minha. A três dias do embarque, um dos astronautas apresentou sintomas de Hepatite C, e eu pude, enfim, sentir-me astronauta.

Como substituto, fiquei incumbido de pilotar o módulo lunar; seria mais um a chegar perto e não pisar a superfície da Lua. Não me aborreci com isso: a sorte estava me ajudando, eu tinha plena certeza de que os deuses do universo já haviam me escolhido para ir a Lua. Não sabia como isso aconteceria, mas levava essa certeza dentro de mim quando, a 12 de outubro de 2036, subi aos céus a bordo do Veículo Espacial Cruzeiro do Sul, rumo à Lua.

Não sei descrever com palavras precisas aquilo que presenciei. Sinto que tudo o que possa dizer soe como reles sombras diante da grandiosidade do espaço aberto.

Ver a Terra do espaço é indescritível, algo que eu imaginara a vida inteira e mesmo assim não estava preparado o suficiente para vivenciar. Somente quem já foi lá em cima pode saber a que me refiro. É um encontro com Deus, não aquele velhinho de barba branca que pregam as religiões, mas o Deus matemático que abriu as mãos e plantou o universo negro e silencioso que se estende até onde a vista pode alcançar. Pude ver nas expressões dos meus dois companheiros de missão que também sentiam o mesmo que eu, o êxtase sereno de se sentir pequeno diante de tamanha beleza.

Quanto mais nos aproximávamos da Lua, mais eu ficava ansioso. O satélite natural aparecia cada vez maior na nossa janela, e eu não conseguia desgrudar meus olhos daquela fantástica visão. Já podia divisar cada irregularidade no solo lunar: os planaltos antigos, de coloração mais clara e cheios de imensas crateras de impactos que são visíveis até mesmo da Terra, os plácidos mares, onde talvez há milênio houvesse água, tudo o que eu mais desejara um dia ver, e tão ao alcance dos meus olhos...

Foi no terceiro dia do voo, quando nos preparávamos para alunissar, que os problemas começaram: perdemos o controle sobre alguns dispositivos internos de sobrevivência e o mau funcionamento do sistema de oxigenação do módulo lunar deixou um dos meus colegas gravemente ferido, tendo falecido logo a seguir. Na tentativa de consertar o sistema, meu outro colega acabou asfixiado e também não conseguiu sobreviver. Apavorado, entrei em contato com Alcântara e eles comunicaram a decisão de abortar a missão.

Eu não podia acreditar que havia chegado tão perto e teria de voltar sem ter realizado meu sonho de pisar na superfície da Lua. Confesso que fingi problemas na comunicação e reativei sozinho o sistema que havia falhado no módulo lunar. Deixei o veículo espacial no automático, sabia que o sistema de navegação estava falhando, mas não iria até a Lua para não tocar na sua superfície. Havia experimentos a serem feitos, uma bandeira a ser fincada em solo Lunar.

Alunissei exatamente no ponto previsto, ao norte da cratera Peary. Nas cinco horas em que fiquei em solo lunar, recolhi amostras de rochas e resíduos para serem analisados, deixei uma sonda que passaria informações para a base de Alcântara e que estaria em atividade pelos próximos cinco anos, além de fincar a bandeira brasileira em nosso satélite natural. Complementei os experimentos que havíamos levado para o espaço e que seriam importantes para a implantação de uma futura base de colonos na Lua e preparei-me para retornar. Eu sabia que precisaria estar mais leve por conta de ter perdido muito tempo em órbita da Lua, por isso retirei os corpos de meus dois colegas e improvisei um sepultamento, naquele que foi o primeiro enterro realizado fora da Terra. Filmei tudo com a microcâmera, pois precisaria justificar o motivo que me levara a não retornar com os corpos para suas famílias.

A volta foi um verdadeiro suplício. O estoque de oxigênio estava no fim, eu não sabia se a estrutura do veículo espacial iria resistir à reentrada na atmosfera. Tive de desligar vários comandos para economizar combustível e a temperatura interna chegou a 50º negativos. Pouco antes de atingir a atmosfera terrestre eu simplesmente perdi os sentidos, e não fosse o piloto automático, certamente não teria sobrado ninguém para contar a história da Missão Espacial Cruzeiro do Sul.

O resto todos já sabem: fui recebido como herói, o homem que salvou o país de um vexame internacional, completando uma missão praticamente perdida e retornando com vida a Terra. Eu, sinceramente, não me sinto um herói. Fiz o que fiz apenas pensando em realizar meu sonho de criança. Não acho que tenha me arriscado pelo meu país, foi por puro egoísmo, pelo desejo de pisar na superfície da Lua... Isso me deu uma força que nem mesmo eu sabia que possuía. É graças a essa força que consegui completar a minha missão e estou vivo. Sabe o outro lado da Lua, aquele que nunca é visível daqui da Terra, mas que todos sabemos que existe? É mais ou menos assim. Todos temos essa força dentro de nós que nos obriga a vencer nossos limites e medos, nos leva para um outro estágio. Temos apenas que deixar esse outro lado aflorar.

Gostaria de agradecer pelo seu tempo, você tem sido um bom amigo desde que retornei. Sei que minha vida jamais voltará a ser o que era antes, mas se há algo que quero preservar para sempre é a sua amizade. Eu precisava desabafar com alguém, mas não quero expor-me a esses abutres que só se interessam por uma matéria que traga audiência. Você é diferente, eu sei que se importa. De verdade.

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Os aplausos foram ensurdecedores. O auditório estava lotado naquela noite clara de verão. O apresentador do programa sorriu envaidecido pelas últimas palavras e chamou os comerciais. Graças a presença do único astronauta sobrevivente da missão Cruzeiro do Sul seu programa estava batendo todos os recordes de audiência, sendo retransmitido para vários países em tempo real. O drama que aquele homem vivera meses atrás e sua luta para se readaptar à sociedade estavam rendendo bons frutos. Nada que o bom e velho dinheiro não pagasse.

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Saiu do auditório e caminhou pela rua sem pressa. O cachê seria depositado no dia seguinte e era bastante satisfatório. De alguma forma precisava tirar proveito da situação, a fama não duraria muito tempo. Quem sabe algumas palestras, cobradas a peso de ouro... Essa era a hora de aproveitar a situação, e ele sempre soubera fazer isso muito bem. Um vírus aqui, uma sabotagem ali, dois assassinatos muito bem executados e ele era o centro das atenções, o homem que fôra a Lua e voltara como herói. Nada mal para um piloto de segunda e astronauta reserva.

O lado oculto da Lua? Sim, ele sorriu. Todos temos um lado oculto dentro de nós. O lado que nunca mostramos, que fazemos questão de esconder. Mas ele está lá, aguardando apenas o momento certo de vir à tona.