HELENA
Até hoje a mente e a consciência constituem-se em um dos maiores mistérios para mim.
Acredito que esse segredo é a chave para desvendar toda a realidade que sentimos que está ali, além dos olhos e dos sentidos e que, muitas vezes, procuramos fingir que não a percebemos, apenas por que encará-la seria mais penoso. Admiti-la seria aceitar o quanto sabemos pouco, o quanto estamos distantes da grandeza que nosso ego insiste em nos atribuir.
Uma verdade tão ininteligível quanto negada.
Esse mistério sempre me fascinou, tanto que depois de concluir a faculdade de medicina fui trabalhar como professor assistente no Instituto de Ciências da Mente do centro universitário, onde passei a travar um contato prazeroso com as últimas teorias a respeito do tema.
Foi nesse período que conheci um dos homens mais intrigantes que já cruzaram meu caminho. Não somente pela sua inteligência e capacidade de raciocínio impar, mas pelo seu desapego de toda vaidade e necessidade de reconhecimento. Era quase um Dom Quixote em busca de uma verdade que o obsediava, o que o fazia ser visto por alguns acadêmicos como uma pessoa estranha, quase reclusa e antisocial.
Mas o professor Benjamin era mais que isso: era um visionário. Um homem à frente de seu tempo.
No ano de 1887, quando entrei para a universidade, ele era um dos mais brilhantes doutorandos, elaborando uma tese revolucionária acerca da interação da mente com a matéria, tese esta que foi endossada por diversos experimentos e coleta de dados estatísticos.
A universidade, na época, tinha a característica de ser bem liberal com relação às linhas de pesquisa, o que fez com que o Dr. Benjamin conseguisse levar adiante seus experimentos e seus estudos, ainda depois do término de seu doutorado, apesar das vozes contrárias que o tachavam de louco ou que diziam que ele estava gastando o dinheiro público em delírios pessoais decorrentes de seus desequilíbrios psíquicos.
Esse último comentário tinha como causa a crença que se tinha que, após a perda de sua esposa em um trágico acidente, ele teria perdido parte de sua sanidade e se dedicado tão veementemente à busca por explicações imateriais para os fenômenos que a ciência ainda não tinha conseguido catalogar.
Seja qual fosse a razão, o fato é que aquela noite ele estava prestes a fazer-nos uma revelação.
Há aproximadamente uma semana, quando cheguei ao meu escritório, constatei a presença de um convite em papel cartão, escrito à tinta preta: “Dia 29 de agosto de 1899: apresentação preliminar dos resultados de minha pesquisa. Conto com Vossa presença em meu laboratório às 10h00. Benjamin.”
Ao longo da semana, o convitinho tão singelo foi um dos principais assuntos entre os professores e cientistas da universidade, já que todos haviam recebido idêntico chamado.
Muitas zombarias e chacotas foram feitas pelo grupo dos que não simpatizavam com a obra ou com a pessoa do professor.
Apesar disso, um grupo, no qual eu me insiro, demonstrou uma curiosidade verdadeira pelo objeto do encontro marcado por tão instigante anfitrião. Estávamos realmente ansiosos pela chegada da noite da reunião, imaginando o que Benjamim revelaria. Com certeza seria algo polêmico. Sentia-me honrado por fazer parte de tão seleto grupo, apesar de não ter intimidade suficiente com o Professor Benjamin.
Chegada à noite esperada, me dirigi para o laboratório de Benjamin, juntamente com outros professores.
No local já havia uma aglomeração de aproximadamente 40 pessoas, acomodadas em cadeiras dispostas em linhas, como em um auditório.
À frente, havia um volume de aproximadamente dois metros de altura por uns três de comprimento, coberto por um pano preto que não nos permitia ver do que se tratava. De qualquer forma, sabíamos que ali estava o objeto da reunião.
Algum tempo depois e benjamim chegou, não de forma triunfal, mas vindo da entrada principal, por trás de todos e com um sorriso no rosto, à guisa de soar simpático.
Cruzando o pequeno corredor formado pelas cadeiras, adentrou à sala tomando a frente da multidão e repousando uma pequena pilha de livros em uma mesinha encostada na parede, na qual já estava uma pequena jarra de água com um copo de vidro vazio.
Colocando um pouco de água no copo, pigarreou, tomando um gole generoso.
Depois, virou-se para o público, que ainda estava inquieto e barulhento, desejando um boa noite formalmente.
Algum tempo depois e a massa silenciou.
Começou a falar.
- Inicialmente, gostaria de agradecer a presença dos senhores aqui esta noite. É um grande prazer poder contar com tão renomada plateia para o discurso que farei agora.
- De qualquer forma, sei que será um prazer para os senhores tomar parte no experimento que pretendo mostrá-los a partir de agora.
As últimas palavras tiveram como consequencia um silêncio incômodo que durou pouco tempo, tendo sido cortado pelas palavras de Benjamim:
- Como vocês sabem, venho me dedicando ao estudo da mente e de suas peculiaridades já há mais de dez anos. Nesse meio tempo, me confrontei com muitas situações, digamos, incomuns sob o ponto de vista científico, mas que serviram para impulsionar-me por um caminho menos convencional e que me ajudaram a obter um resultado, digamos, nada convencional.
- Estuda-se e acredita-se que o cérebro é a fonte, o substrato material para a mente, não existindo esta sem aquele.
Durante algum tempo acreditei nessa tese como a única aceitável.
Mas hoje, pretendo mostrar para os senhores que esta, na verdade, e a mais inaceitável das teses.
-E como vai fazer isso? Perguntou alguém.
-Vou propor uma reflexão aos senhores, disse.
-Imaginem o planeta saturno.
-O homem precisa de um telescópio para visualizar o planeta saturno e seus belos anéis. Mas, interessantemente, sem o telescópio o homem não vê saturno, o que, em hipótese alguma é considerado como causa da inexistência do planeta em análise.
-Percebem onde quero chegar? A “medição” ou “verificação da existência” de saturno só é possível por meio de um elemento material, o telescópio, já que o homem não possui sentidos que possibilitem a visualização ou outra forma de interação sensitiva com tal corpo celeste.
-Mas vejam: antes da invenção do telescópio, ou antes que o homem apontasse esse instrumento para a direção de saturno, ele já estava lá: já existia. E tal existência não depende da existência do telescópio: apenas sua interação com o homem o depende.
-Pensemos agora na mente e no cérebro.
-Quem nesse instituto nunca se viu preso na análise da famosa dicotomia mente-cérebro, imaterial-material, subjetivo-objetivo?
-Não entendo por que a ciência insiste em dizer que a mente é consequência do cérebro, se ela não encontra uma prova sequer de tal interdependência.
-Aqui eu acredito que a prepotência humana e a incapacidade de admitir que foram despendidos anos de pesquisa no caminho errado, por causa de preconceitos decorrentes de causas históricas e ímpetos protecionistas do objeto da pesquisa, em face de visões que de longe possam resvalar a de nossos antigos opressores, os religiosos, acredito que essas causas impediram a ciência de avançar e admitir que o mistério é muito maior do que parece e que as descobertas absolutas e finais estão muito mais longe do que parecem.
-O que você está querendo dizer professor? Que cérebro e mente são independentes? Que a consciência não precisa de um meio material para ser formada? Alguém perguntou.
-O que estou dizendo meu caro, respondeu o professor educadamente, é que o cérebro é o telescópio e a mente é saturno. A mente não precisa do cérebro. Nós precisamos dele. Por que é nele que lemos os impulsos elétricos e que vemos as imagens que entendemos ser a mente. Precisamos do cérebro para ler a mente. Precisamos fixar os eletrodos em algum lugar. Essa última frase foi acompanhada de risos simultâneos pela sala.
Aguardando, com um sorriso no rosto, Benjamim continuou:
-Mas é só porque olhamos para o lado errado. Não sabiamos onde procurar. Como vimos um rato saindo de um buraco, achamos que ali era o único lugar que tinha ratos, e demos as costas pra tantos outros buracos, não vendo assim a festa que eles faziam atrás de nós.
-Tantas evidências, tanta coisa apontando a existência de alternativas e, ainda assim, fechavamos nossos olhos, imaginando que realmente tinhamos a chave para tudo.
-Doce ilusão meus caros. Doce ilusão.
-Doutor Benjamim, alguém gritou: Uma coisa é o senhor apresentar um raciocínio até convincente como este: outra, completamente diferente, é comprovar isso, portanto, se o senhor realmente pretende nos impressionar, talvez deva sair da especulação e passar para a prática.
-É verdade, outro afirmou. É uma bela tese esta, no sentido de que a mente não depende do cérebro pra existir. Mas como o senhor mesmo disse, precisamos deste para ver aquela. Não vejo como isso possa ser diferente, a não ser que o senhor esteja interessado em nos fazer participar de uma reunião mediúnica.
A plateia riu.
O doutor Benjamim, sem perder a compostura, com o braço direito levantado e a mão espalmada, como quem pedisse para que a plateia esperasse, continuou sua explanação.
-Claro, claro. Entendo o ponto de vista dos senhores. Mas vocês não veem que a dicotomia é fruto da sua própria vaidade?
-Não está claro para vocês que tanto os religiosos como nós, cientistas, nos prendemos a um sistema de crenças quase fundamentalista? E, como já disse, por razões históricas, negamos tudo o que se refira ao sistema de crenças oposto?
-Isso é irracional amigos. Prestem atenção: no final das contas só devemos buscar uma única coisa: a verdade. Não quero ter, e imagino que os senhores não o devam ter também, qualquer compromisso com linhas de pensamento pré-estabelecidas, razão pela qual, não! não os convido para uma reunião mediúnica, mas para uma experiência científica que extrapolará os limites de sua forma de encarar o mundo que os cerca.
Essas palavras foram seguidas por um zum-zum-zum na sala, decorrente das conversas paralelas que se estabeleceram entre os circunstantes.
Eu estava fascinado pela capacidade retórica do Dr. Benjamim. Ele já me convencera, com toda certeza. Restava saber o que ele faria para convencer os demais acadêmicos.
Como que lendo meus pensamentos, ele fez um movimento brusco com as mãos, que agarraram o pano preto que cobria o objeto que estava à frente de nós, puxando-o de uma única vez, descortinando uma máquina estranha, formada por alguns tubos retorcidos e engrenagens.
A máquina tinha um pequeno painel à sua frente, no qual podíamos constatar uma alavanca do tamanho de um punho, que aparentava ser o que ligava e desligava o entranho invento.
- Senhores, vos apresento o psicômetro.
A plateia ficou em silêncio, limitando-se a trocar olhares entre si e a emitir uns cochichos esporádicos.
Todos estavam fitando o objeto estranho e seu criador, parado ao seu lado, orgulhoso.
E então Benjamim, valendo-se do silêncio e de forma quase teatral, mudou a posição da alavanca no painel frontal, o que teve como consequencia o início de um zumbido estranho que era emitido por tubos que se posicionavam acima de uma pá que girava à grande velocidade. Pelo que entendi os tubos amplificavam o som emitido pelo giro da pá, dando a este um volume que tomava o ambiente.
E então, naquela noite, pude presenciar algo sobrenatural, mas, ao mesmo tempo, apresentado de forma tão desmistificada que me pareceu normal e me fez me transformar no que sou hoje: um cientista humilde que sabe que ainda há um longo caminho a trilhar até que possamos estar em comunhão com esferas mais elevadas de cognição e interação.
O zumbido foi sendo substituido por um som metálico, inicialmente como estalos, depois, de forma mais inteligível, uma voz falou, uma voz diferente,que teve um significado bem maior para mim: não era apenas uma voz. Era como se fosse saturno, visto pela primeira vez no telescópio. Poderia ser chamado de fantasma, ou de consciência. Mas eu prefiro pensar que era um rastro de uma outra realidade, bem mais sublime do que a que hoje conhecemos. E, até hoje, não me esqueço daquelas palavras:
"- Boa noite, meu nome é Helena. É um prazer poder conversar com vocês esta noite."
FIM