Os novos Adões e Evas

É a quinta vez nesta semana que o meu veículo aterrissa no prédio errado. Uso os controles manuais pra ir pro prédio certo. Seria coincidência ou o progressivo mau funcionamento de todos os dispositivos na indústria onde trabalho teria algo a ver com isso?

Desço do veículo e, enquanto caminho até o elevador, quase sou atropelado por outro que vem aterrissando aparentemente descontrolado. Estranho o fato de que o alarme do meu capacete não tenha avisado. Paro em frente ao leitor ótico que aciona o elevador e ouço uma voz impessoal me dizendo que estou sem crédito. Droga! Desço pelas escadas, onde encontro outras pessoas atarantadas como eu ao longo dos quarenta e sete andares até o meu apartamento. Tenho que usar a chave mecânica de emergência pra abrir a porta, porque já sei o que o leitor ótico da minha porta vai dizer. Como pode isso de eu não ter crédito, se ontem mesmo foi creditado o meu salário?

Pelo menos foi isso que o meu info de pulso acusou no fim da tarde. E me lembro muito bem, porque foi naquele instante que o trânsito aéreo começou a enlouquecer, quando parecia que todos os veículos passaram a ser guiados manualmente por pilotos um tanto destreinados. E os acidentes, que há anos não aconteciam, começaram a pipocar por todos os lados. Por pouco não fui abalroado e não foram poucas as vezes...

Entro no minúsculo apartamento e ligo o infobox no modo "recepção holográfica" pra ver o noticiário. Necas de imagem. Louco de fome e sede, aperto a tecla do modo "cozinha"... e o chuveiro liga lá no banheiro. Precisando relaxar, aperto a tecla do modo "música suave" e a cortina se abre. Pensando em reportar os defeitos pra central de manutenção, aperto a tecla do modo "comunicação" e a descarga da privada é acionada...

Será que nada mais funciona? Saio do apartamento e desço os restantes cinquenta e três andares pelas escadas, onde encontro novamente uma multidão de vizinhos subindo e descendo, todos com expressões perplexas estampadas nos rostos. Tento pedir informações a um ou outro, mas ninguém me responde. Estão todos esbaforidos pela falta de costume com esse tipo de exercício físico.

Chegando à rua, onde nem me lembro mais qual teria sido a última vez que andei por aqui, uma vez que há tempos voamos de um prédio a outro, saindo e chegando pelo topo dos edifícios, encontro outro perplexo aglomerado humano. Ninguém sabia onde, nem a quem se dirigir.

Eu me lembro vagamente de que havia uma agência da central de manutenção a poucas quadras dali. Com certeza lá saberão me informar sobre o que está acontecendo. Vou abrindo passagem entre as centenas de pessoas atordoadas até encontrar o lugar. No caminho, vejo pedaços de veículos aéreos caídos pelas ruas, janelas quebradas nos edifícios, gente ferida vagando sem rumo, robôs andando em círculos ou fazendo movimentos repetitivos.

Há já um considerável ajuntamento na porta da agência, onde um robô funcionário canta um trecho da ópera Carmina Burana, alheio às queixas e súplicas humanas dirigidas à sua cibernética pessoa. Neste instante, chega um funcionário de carne e osso -- apesar dos muitos chips e outros dispositivos implantados em várias partes do corpo -- e desce todo desconjuntado do seu obsoleto veículo mecânico terrestre. Em seguida, com as mãos em concha em torno da boca, anuncia aos berros pra quem possa e queira ouvir:

-- Atenção, concidadãos! Tenho imenso pesar em dizer que, devido às fortes tempestades solares que aconteceram na última semana, todos os dispositivos eletrônicos do planeta estão entrando em pane e deixando de funcionar.

O bramido inicial da multidão vai crescendo, até se transformar em comoção histérica e todos gritam ao mesmo tempo perguntas desencontradas. Afinal, tudo de que depende a manutenção da vida na Terra é eletrônico, cibernético e automático -- desde o fornecimento de energia, de água e alimentos, até a sua produção, e ainda os serviços de manutenção dos equipamentos e da saúde humana. Há anos nada mais é feito manualmente. Há anos nós, os seres humanos, desaprendemos como cuidar da nossa própria sobrevivência. Tudo o que fazemos é apertar teclas e reportar maus funcionamentos. O funcionário, impotente, é engolido pela turba em desespero.

*

Cinquenta anos se passaram.

A humanidade, neste período, sofreu uma baixa significativa. Primeiro foi o caos -- disputas encarniçadas pela pouca comida disponível, luta desesperada pela sobrevivência às intempéries e aos ataques dos inimigos, epidemias devastadoras dizimando populações inteiras...

Os poucos sobreviventes tiveram que aprender a plantar, colher e preparar alimentos; a fabricar suas próprias roupas e calçados, a descobrir remédios para os seus males; a construir os seus próprios abrigos. Há muito ainda que aprender e a desenvolver. Estamos apenas no começo, fazendo tudo na base da tentativa e erro.

E as antigas cidades, desmoronadas, destruídas e saqueadas naquilo que poderia ser útil no novo modo de vida, ficaram abandonadas e começam a desaparecer sob a vegetação selvagem. Novos agrupamentos humanos, rústicos, precários e pouco densos, surgiram onde antes havia os campos lavrados por robôs e máquinas. Novos Adões e Evas começam o trabalho de reconstituição da humanidade.

E eu, que milagrosamente sobrevivi a todo o caos, estando já velho e cansado, percebo que há uma espécie de esperança não formulada permeando tudo o que é feito, agora sob um regime coletivo e comunitário. Há uma legítima tendência à cooperação.

Pouco se fala sobre os tempos antigos. Até porque os nascidos depois do declínio da nossa dita civilização jamais entenderiam. E também porque estamos todos muito ocupados com a nossa própria sobrevivência. Em algumas gerações, todos terão se esquecido do passado tecnológico e individualista.

Começa um novo ciclo na História.

Daqui a muitos milhares de anos, é muito provável que tudo se repita com pequenas ou grandes variações, mas sempre retornando à mesma história. Porque imagino que estes ciclos ocorram como numa espiral ascendente -- ela sempre se repete, mas, a cada vez, num patamar acima.

Pode ser que, no futuro, a tecnologia sirva apenas como mero instrumento no auxílio à evolução da humanidade. E pode ser que a humanidade, então, seja de fato mais evoluída e humana.

Pelo menos, eu assim espero.

Maria Iaci
Enviado por Maria Iaci em 13/11/2009
Reeditado em 13/11/2009
Código do texto: T1921550
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