2024

13 de maio de 2024. Aqui estou eu, um homem de 40 anos, solitário, saboreando um café amargo. Sentado em minha cadeira, executo meu trabalho para a Oceania S.A. Circulares, ofícios, avisos... é meu papel revisá-los e encaminhá-los para o setor correspondente. Após um dia que parece interminável, o expediente chega ao fim, dirijo-me a saída, bato meu cartão. Finalmente livre por hoje... bem que queria mesmo estar.

Adentro o elevador com passos lentos, porém ansiosos. Cheio, como de costume. Esforço-me para não esbarrar em ninguém, embora isso seja impossível. Dez andares até o subsolo, trajeto agoniante e tortuoso. Saio daquela caixa e entro em meu carro. Faço o trajeto de costume até meu apartamento, no caminho, um filho da puta (sempre tem um) atravessa minha preferencial. Sinto um imenso desejo de verbalizar minha repulsa por sua progenitora e mandá-lo para seu devido lugar... melhor não, podem estar me observando.

Exausto, chego em minha casa, a vontade de tirar os sapatos apertados e a camisa quente é imediata, porém realizo o processo no banheiro. Não confio nessa televisão da sala, muito menos nesse quadro estranho na parede. Sempre desconfiei dessa espécie de “surto de bondade” pelo qual as empresas atuais têm passado. Estão todas fornecendo moradia a seus empregados e sem nenhum custo, na que trabalho não é diferente. Estranho, muito estranho. O que se passa na cabeça desses empresários excêntricos e megalomaníacos, que espalham retratos seus por todo o prédio da empresa, até nos banheiros?

Sento no sofá e ligo a televisão, assisto o noticiário mas mal presto atenção no que é dito. Ultimamente tenho evitado dizer minha opinião a respeito de certas coisas, e para não dizer minha opinião, é preciso não pensar, e para não pensar, é melhor nem saber dos fatos. Em poucos minutos, a televisão me enche o saco. Resolvo caminhar pelas ruas, observo alguns bares e casas noturnas. Ah! Que inveja sinto desses jovens... visual usado para agradar a si mesmos, conversas despreocupadas sobre política, cultura, sexo... enquanto eu... dentro e fora do trabalho trajando as mesmas roupas formais, corte de cabelo padrão, medindo cada palavra que digo, raramente bebendo uma simples cerveja.

Há pessoas contratadas para observar meu comportamento, sei que há. Me lembro bem daquele funcionário que encheu a cara de uísque em uma festa de família, no outro dia foi demitido por “não se adequar à política da empresa”. Há também o caso daquele que saiu com prostitutas, aquele que xingou alguém no trânsito (como quase fiz hoje), aquele que criticou a empresa em uma conversa entre amigos, aquele que gostava demais de Bukowski... todos demitidos pelo mesmo motivo.

Até quando e até onde irá essa perseguição moral? Sou mesmo obrigado a suportar tudo isso? Um sentimento subversivo se instaura em mim. Preciso quebrar essas regras. Não posso resistir. Penetro em uma rua escura e vejo um bar, entro lá e sento em frente ao balcão. Aqui não vão me achar, é um bom lugar, não podem me achar. Peço uma dose de vodca, viro em um só gole. Peço outra, novamente bebo de uma vez. Já um pouco zonzo, peço a terceira, o sujeito ao meu lado puxa conversa:

- Olá, você é estranho por aqui

- Ahn... Olá... Ééé, sim, não costumo sair muito de casa...

- Ééé, percebe-se pelo seu tipo.

- É, pois é.

- Ô, cara, você tem um ar de intelectual. Seguinte... gosta de literatura?

- Gosto. Costumava ler muito, mas agora ando evitando.

- Ah é?

- É.

- E em sua época de leituras, chegou a ler George Orwell?

- Não.

- Devia ler, ia aprender algumas coisas...

Nesse momento, olha para a parede do bar e lá está, um cartaz de propaganda da maldita Oceania S.A. Na parte inferior, um desenho de seu dono, exibindo um sorriso sarcástico, seus olhos indo de encontro aos meus, me vigiando, investigando. Ouço risadas vindas do homem ao meu lado, do garçom, do público a minha volta. Tenho certeza que amanhã serei chamado à sala do chefe.