O homem de vidro

É um homem de vidro, e se calhar o último homem do planeta, pois há imenso tempo que não vê ou sente a presença de alguém.

É um homem de vidro e tudo à sua volta é transparente, menos o céu quando cai a noite, conferindo com o seu manto de estrelas a única cor ao planeta.

Mas em tempos há muito idos tudo era diferente, pois ele lembra-se das cores, das pessoas, da civilização, memória antiga, quase tão esbatida como as cores na sua memória.

Inúmeras vezes lembra-se o que terá levado a tal.

Lembra-se apenas que um dia acordou no seu apartamento, reparando que ela tinha partido, reparando que a humanidade tinha desaparecido, deixando no seu lugar um mundo transparente.

Quando se apercebeu do tamanho da sua solidão, chorou, e dos seus olhos translúcidos saíram lágrimas transparentes, frias lágrimas de vidro.

Tinham-lhe roubado tudo, e até a cor, até a textura das coisas, tinham-lhe roubado tudo, menos as sensações, a capacidade de se emocionar, de rir, de chorar, menos de ficar indiferente, a última coisa que queria, pois seria a indiferença a separa-lo da loucura de viver naquele mundo de profundo pesadelo.

Do seu quinto andar, e devido à transparência de tudo, conseguia ver vastos quilómetros à sua volta, e apesar de tudo indicar o contrário, procurou a floresta mais próxima onde iria encontrar a cor perdida.

Era inquebrável, não o sabia na altura, mas até o descobrir, andou o mais cuidadosamente possível, desceu as escadas transparentes, entrou na rua sem cor e olhou a civilização morta, mas sem marcas dessa morte, a não ser um insustentável vazio, de casas abandonadas, de carros e autocarros sem a gente que lhe dava significado.

Desesperado começou a correr em direcção à natureza, reparando nesse percurso em vastos bandos de aves que voavam sobre ele, sem cor…Pressentiu o pior, e quando se abeirou do rio para beber um pouco de água, reparou que não tinha sede a matar naquelas águas sem cores onde proliferavam cardumes de peixes translúcidos.

Foi com o horror da certeza que entrou na floresta quase invisível, que olhou petrificado mesmo as mais belas flores sem as cores que as caracterizavam. Instintivamente tentou colher uma rosa para levar ao seu amor, hábito velho seu, desde que descobrira esse amor, mas, ao tentar colhe-la, partiu-a, deixando no chão mil e um bocados de vidro, de cor amarela, a cor do sol ainda intacta, mas até quando?

Entrou pois na segunda fase da sua vida, a fase maior, pois aprendeu a contar o tempo em traços que fazia numa parede, cada traço, um risco, e tivera que arranjar outra paredes que começavam a faltar devido à enorme quantidade de traços acumulados.

Percebendo que a Terra era o único local que ficara assim, e os homens os únicos seres desaparecidos, perguntou incontáveis vezes a si próprio

Porquê?

A humanidade crescera ao ponto da conquista do espaço começar a ser rotineira, mas não deixara velhos hábitos, como as desigualdades sociais, as guerras, a violência, os egoísmos, a sobranceria prepotente com que os mais fortes olhavam os mais fracos…

De que lhes servira conquistar os céus, dominar a natureza se a humanidade continuava igual a si própria?

Não sabia se acreditava em Deus, nunca o soube, sabia apenas que o sentia, e se calhar isso era fé, era acreditar, sendo que foi tal que o lançou em determinadas dúvidas…

Será que foi um castigo divino, tipo “Sodoma e Gomorra” o desaparecimento da humanidade e a transparência do planeta, sendo ele deixado vivo para testemunhar em nome da terra o castigo divino?

Ou será que tudo não passava de um sonho do qual ele demorava a despertar, pois afinal o mundo onde vivia tinha as cores de alguns dos seus sonhos?

Não o sabia, sabia apenas que há mais de mil anos que vivia assim, sabia apenas que o seu único consolo se encontrava quando a cor da noite o cobria, sabia que tinha saudades do seu amor, saudades da vida, saudades de viver fora daquela espécie de aquário infernal.

Ele era o homem de vidro, o último homem do planeta Terra, deixado assim, sem a cor que a caracterizava, deixada sem quase nada para o resto da posteridade.

Miguel Patrício Gomes
Enviado por Miguel Patrício Gomes em 05/10/2009
Reeditado em 05/10/2009
Código do texto: T1849444
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