Hologramas Reais
Sempre que um telefone toca no meio da madrugada acordamos com o coração acelerado. Talvez pelo susto, talvez pela interrupção do sono profundo. Uma sensação gelada percorre nosso peito e uma tremedeira incomoda anuncia a adrenalina liberada.
Há muito não sinto isso, mas os sintomas eram evidentes em Carlos, que levantou-se em meio à escuridão e tateou pelo aparelho estridente.
– Carlos...
– Carlos? Rodrigo, tudo bom? Desculpe pela hora...
– Rodrigo?
– Sim, da Vision. Amigo do seu cunhado.
– Da empresa de hologramas? Aconteceu algo com ele?
– Não, não... Seu cunhado está bem. Mas estou com uma urgência e lembrei de você.
– Do que você precisa? – ele sentou-se na cama e coçou a barba grisalha.
Morava sozinho. A mulher o abandonara há 30 anos. O motivo fora o stress causado pelo assassinato de sua filha, Nelita, com a qual ele sonhava antes do telefone incomodá-lo.
Pouco tempo depois a campainha tocou. O homem atendeu a porta e, cumprimentando o inoportuno colega, saiu às pressas.
– Obrigado por aceitar. Muito obrigado mesmo.
– O pagamento oferecido vem em boa hora. Dois meses de salário por uma madrugada é um valor atraente.
– Ótimo. – sorriu o outro, arrumando os óculos e tirando o cabelo bagunçado da testa. - Eu não conhecia mais ninguém que soubesse linguagem de sinais. Então lembrei que você lecionava isso.
– Sim.
– Foi por causa da sua filha, né?
– Sim.
Um assunto delicado que, com certeza, Carlos não gostaria de estender. Por isso o silêncio perdurou no carro, por um bom tempo.
– Qual é a urgência para no meio da madrugada, vocês precisarem de alguém como eu?
Rodrigo riu. Estava empolgado demais para não rir, por mais que a confusão de seu colega fosse obvia.
– Só posso contar depois que você assinar a papelada de sigilo.
– Certo. Só espero que não seja encrenca...
Silêncio. Rodrigo então ligou o rádio e concentrou-se na direção.
– Obrigado. – disse o homem ao recolher o contrato e conferir a assinatura e rubricas.
A sala era simples, com o logotipo da Vision estampado nas paredes e folhetos sobre a mesa. Carlos ajeitou os óculos e aguardou pela explicação do colega.
Este, por sua vez, passou o crachá na porta, revelando um corredor curto.
– Venha, vou lhe explicar.
– Só um segundo. – pediu tradutor, ainda sentado. – De repente me deu uma fraqueza.
– Sério?
– Sim.
Rodrigo puxou o telefone de uma mesa e discou.
– Regina? Estou na minha sala e um amigo está meio fraco. Traga, por favor, um copo d´agua.
Neste momento uma multidão já estava em volta, observando. Alguns confusos, outros ansiosos.
Logo a mulher entrou na sala, trazendo o copo de água na mão. Era uma mulher grande, de pele morena e cabelos presos. Todos, sem exceção, afastaram-se.
Carlos bebeu mais por educação que por acreditar que aquilo fosse ajudá-lo. Mas suas forças realmente retornaram.
– Melhor? – perguntou ela, colocando a mão em seu ombro e fitando seus olhos.
– Sim... Foi algo momentâneo.
– Deseja mais água?
– Não obrigado. – disse levantando-se e, com um suspiro longo, tentou contornar o constrangimento: – Coisas da idade...
– Obrigado Regina. Podemos continuar então, Carlos?
Com um aceno de cabeça os dois puseram-se a caminhar no corredor.
– Você se lembra quando falei da nossa tecnologia de hologramas, certo? Quando comentei do "Ovo", que já conseguia reproduzir imagens 3D em baixa resolução?
– Sim.
– Não tivemos muito progresso desde então. Sua capacidade de reprodução não alterou muito. Conseguimos ver formas, mas sem definição, apenas um espectro.
Uma porta dupla, no fim do corredor, abriu-se automaticamente, revelando uma ampla sala circular, de teto esférico. Conjuntos grossos de fios de energia e dados bagunçavam o chão.
Exceto por duas janelas, em um provável segundo andar, o restante da sala era coberta por placas com milhares de luzinhas brancas que variavam de intensidade harmoniosamente.
Carlos tinha um olhar confuso, sem conseguir imaginar o que aconteceria em seguida.
– Este é o “Ovo”.
O tradutor apenas arrumou os óculos e permaneceu observando.
– Esta é a imagem de que falei. – comentou, erguendo a mão para sinalizar a um homem que os observava da janela.
Um zumbido grave ecoou e as luzinhas revezaram-se na intensidade, realizando um belo padrão. Conforme piscavam, o padrão tornava-se mais rápido até que no alto da sala surgiu uma bola. Riscos fracos de tonalidades azuis, vermelhos e verdes moviam-se formando a esfera.
– Incrível. – Carlos estendeu a mão assim que a esfera movimentou-se e parou na sua frente.
– Estamos trabalhando duro para melhorar.
– E qual a urgência? Onde está o surdo mudo?
– Certo, tenha paciência e calma.
Ansioso, ele aguardou. De algum modo, sabia que algo estava errado, seu corpo revelava isso. Os olhos estudavam o local, suas pernas chacoalhavam sistematicamente, sua garganta coçava. Eu podia ver claramente.
Como não houve manifesto, Rodrigo tirou o cabelo da testa e fez outro gesto para o observador da janela.
Novamente as luzes mudaram o padrão de sua dança, movendo-se mais rápidas. Desta vez várias formas espectrais surgiram. Algumas altas, outras baixas. As luzinhas alteraram seu curso novamente, como se sintonizassem e braços e pernas puderam ser distinguidos em meio ao espectro tridimensional gerado.
Eram pessoas, algumas de pé outras sentadas, e logo que perceberam o olhar curioso do tradutor, levantaram-se afoitas.
Eu já estava ao seu lado e gesticulei um “Boa Noite”.
– Este é o verdadeiro foco do nosso projeto.
– Uma forma de comunicação holográfica? – achou graça. Então gesticulou uma resposta ao meu cumprimento e comentou: – Idéia interessante. Se vocês conseguirem mostrar os rostos, ao invés desse borrão, podem instalar isso nas casas e permitir visitas virtuais. Muito interessante.
– Isto irá mudar o mundo, Carlos.
– Qual a dificuldade em colocar áudio?
– Ainda não foi possível... Por isso precisamos de você.
– Não tenho conhecimentos profundos, mas não parece difícil.
– Mas é. Não conseguimos fazer isto porque estas formas que estamos vendo, são espectros de espíritos desencarnados.
Foi o que ele disse, evitando ser direto para dar tempo para o colega raciocinar.
Os olhos do tradutor sequer piscaram. Por três ou quatro vezes ele ensaiou uma risada descrente, mas parou, percebendo que vários espectros o cercavam.
– Eu pesquisava as captações do corpo astral por fotografias e vídeos. Então a Vision me encontrou e me colocou neste projeto. Aos poucos nos aprimoramos. De luzes simples, ao espectro dos chakras, então ao borrão do corpo e, finalmente, isso que você vê.
– Impossível.
– Não! É extremamente plausível. Em diversos lugares relatam o corpo astral como energia mais sutil, em outro plano, em outra vibração. Bastou encontrar a vibração certa, usando a tecnologia correta, e reproduzi-la.
– Não acredito.
“É verdade”, gesticulei. “Eu o encontrei e vim ajudar”.
– Que tipo de pessoa faria uma brincadeira dessas? Mesmo sendo para TV, é ridículo!
– É verdade! Este espírito veio a mim e usou a linguagem dos sinais. Por isso te chamei.
“Eu posso provar.”, coloquei-me diante dele. Todos nos cercaram, gritavam pedidos para que eu traduzisse. Ignorei-os.
– Regina... Ela é uma médium que pode vê-los. Ela comprovou isso para nós e hoje nos protege.
– Do que?
– Na outra sala... Sua fraqueza foi causada por eles que agarraram em você, por saberem o que ia fazer. Ela os afasta e nos protege.
“Eu posso provar”, repeti.
– Prove. – ele me disse. E o momento, esperado por décadas, chegou.
“Eu morri há 35 anos. Não estou enterrado em um cemitério, mas sim no meio da mata, onde você me deixou após vingar-se.”
– ...
“Eu ensinei você a se comunicar com sua filha e depois a tirei de você.”
O coração fica acelerado. Talvez pelo susto, talvez pela interrupção da realidade como se conhece. A sensação gelada percorre o peito e uma tremedeira anuncia a adrenalina liberada.
“Não contarei a ninguém. Isso é passado, apenas nos ajude.”
Ele corre. Soca a porta fechada até que a abram e some no corredor, seguido da multidão que o aguardava.
Sei que este é apenas o começo. O mundo jamais será como antes.