VIDAS VICÁRIAS

Vinte anos esperara por esse momento. Secaram-lhe as lágrimas, venceram todos os prazos marcados em seu único foco de luz perfurando a escuridão da sua morte em vida. Tentava distinguir na aridez do ambiente um significado novo, há tanto tempo vivendo de construções internas elaboradas a custo pela imaginação e de lembranças dos seus anos de vida real e intensa. Tetraplégico, vira-se reduzido a uma mente que, pela total ausência de novas sensações, ia, aos poucos, esgotando-se em si mesma. Chegara enfim a hora do tudo ou nada. Finalmente o Dr. Sergei Dziekaniak conseguira concluir a sua pesquisa instalando seus aparelhos num laboratório clandestino onde ele seria a cobaia de um experimento surreal e fantástico: sua mente transportada para o corpo de um homem saudável e a sua ressurreição deixando pra trás, por algumas horas, a sua realidade de morto-vivo.

Abriu-se uma porta e por ela entraram um homem baixo, calvo, olhar penetrante sob os óculos e uma mulher de meia-idade. Outro homem já tinha sido induzido ao sono. Era o seu primeiro doador. Para suas memórias já tão gastas, as sensações do corpo que tivera até os vinte e cinco anos, tudo vinha como um velho filme desbotado. Sentiu a dor de uma picada em seu braço. Em seguida, uma dormência na boca e entrou em um sono letárgico. A mente de Ramiro instalou-se por ação misteriosa no corpo que logo depois caminhou rápido para a porta e saiu. As luzes da cidade, os carros em grande velocidade fizeram-no recuar um pouco. Pernas!! Teve um sobressalto ao perceber-se de corpo inteiro e dentro do peito pensamentos atropelados movimentando um coração em enlouquecidos batimentos. Na memória, imagens aceleradas junto com sensações corpóreas de um passado vivo e colorido. Um homem encurvado, envolvido em andrajos, comia alguma coisa segurando com as duas mãos. Um grito saiu da garganta do novo Ramiro e se perdeu no ronco do trânsito e das buzinas. Tocou a calça jeans, olhou para os tênis, viu suas mãos jovens, o corpo, o rosto, os cabelos. O mendigo pára a sua frente e lhe pergunta: “Quem é você?” E como ele somente permanecesse mudo e de olhar fixo, o velho o espiou assustado e foi-se afastando a resmungar. Outra vez entre os vivos e, diante do trânsito, revive o acidente do passado. Uma súbita tontura e sente-se erguido por braços fortes. Ao entrar na sala, vê seu antigo corpo ao lado de aparelhos esquisitos. Então percebe que está indo ao encontro de si mesmo.

- Vai ter que aprender a dominar a memória subjacente do doador, diz o médico.

Ramiro sente uma raiva inexplicável daquela loquacidade superficial. Olha para aquele cadáver, seu corpo sem vida que ele tem carregado, uma excrescência inútil e monstruosa. Aquela aberração de pernas atrofiadas, tronco enrijecido, mãos esquálidas de dedos retorcidos é sua morada e logo estará com ele em sua cadeira especial, manobrando o computador com a ajuda de eletrodos fixados em seu cérebro que lhe permitem fazer as operações pela ação do seu pensamento. Um estalo seco e percebe que está "de volta". Então vê "seu" recente corpo andando em direção à porta. O homem sai sem falar mais nada. Muitos corpos experimentou daí em diante, todo tipo de criaturas cujas vontades e hábitos marcados nos músculos e nas tendências de movimentos e sensações físicas, fizeram-no sentir-se sempre uma criatura nova, a ponto de já ter sua individualidade multifacetada e na memória um acúmulo de lembranças e vivências que não lhe permitem mais uma auto-imagem coerente.

Certa tarde muito fria, uma chuva fininha e cortante, a cidade sumindo em cinza-chumbo, o doutor Dziekaniak chama Ramiro. Aparecera alguém. Levado pelo carro-ambulância que o transportava sempre, foi introduzido na sala.

- Acho que vais gostar de Epifanio, falou o médico com entusiasmo. Ele tem bom físico e uma ocupação bem surpreendente: ele dedica-se ao ocultismo.

Ramiro já sequioso por alguma novidade, logo se submeteu à passagem. Abrindo os olhos, levantou e se foi para a noite. No entanto custava a se movimentar, pois o corpo parecia ter vontade própria. Tentou novamente ir em uma direção e se viu indo em direção oposta. Daí em diante era um mero espectador do que realizavam pernas, braços e vontade que não era a sua. Quase corriam aquelas pernas e na sua mente começavam a surgir idéias e pensamentos que ele também não controlava mais. Nada que ele pensasse em fazer acontecia, e dentro dele, uma voz falou com rudeza: "tua mente agora me pertence, estamos juntos no mesmo corpo, irás me emprestar tua experiência, conhecimentos, serás meu espírito escravo! Temos algo em comum: você rouba corpos e eu, as suas almas. O jogo agora está a meu favor!” Enquanto isso, lá na clínica, a sua carcaça parecia imperturbável. Até que o médico, aproximando-se, percebeu com incredulidade que ele morrera há umas boas duas horas.

tania orsi vargas
Enviado por tania orsi vargas em 29/09/2009
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