A Herança de Ana Margarida

POR: ANTONIO CENTEIO

I

Namoraram muitos anos, porque entendiam que se deviam conhecer muito bem para que depois do casamento tudo decorresse em perfeita harmonia. Falavam de outros casais que se davam tão bem mas com o passar dos anos os seus casamentos e dos problemas que iam surgindo desmoronavam-se ao mínimo toque com uma pirâmide de dominó. Ao mais pequeno conflito tudo se desfazia.

Durante o namoro, Celestino e Joaquina, sonharam e projectaram como seria a vida deles como tudo que gostariam de ter. Uma das coisas que mais faziam questão era a casa em que iriam viver.

Deveria ter muitas divisões, ser solarenga, ter uma boa vista, bem situada, de fácil acesso e situada numa zona bem central. O problema era o preço que uma casa assim poderia custar, mesmo que sendo um grande proprietário e tendo bens acima da média, o que lhes dava uma vida confortável, também tinham que pensar que no futuro, viria um filho ou uma filha e os encargos passariam a ser outros.

Das poupanças que já tinha acumulado durante os poucos anos que exercia a actividade de proprietário para além da ajuda dos bens que herdou de seus pais, que sempre lhe disseram sempre lhe disseram que quando cassasse lhes ofereceria a casa para onde fosse viver. Tudo indicava que o futuro não seria cinzento.

A avenida da Implantação da República é a mais longa e larga da cidade. Feita numa época em que o crescimento e desenvolvimento económico apareceram, o arquitecto que a planeou, apercebeu-se que para tudo fazer sentido e se enquadrar na nova zona da cidade, teria que ser construída dentro de um certo planeamento urbanístico. O curto tempo se encarregou de provar que a sua teoria estava correcta.

Dezenas e dezenas de prédios com vários pisos foram construídas ao longo da Implantação da República. Todos tinham nos rés-do-chão enormes galerias com espaços comerciais que fizeram dela a avenida mais movimentada com os fluxos de pessoas numa louca correria e num vaivém que mais parecia ser uma cidade americana, daquelas que se vêem nos filmes, do que uma cidade da província, mesmo estando bem perto de Lisboa como servida de vias que num curto tempo levaria as pessoas a deslocarem-se a qualquer parte do país num instante com a maior das facilidades. Foi este rápido progresso, que o arquitecto se apercebeu, pois sabia que a localização da cidade que crescia de dia e de noite, mais tarde ou mais cedo seria um nó de trânsito que a ligaria à A-1 e a A-23 e por consequência a outras vias rápidas. As galerias que cercavam toda a avenida num instante se tornaram no ex-libris da cidade.

Composta de uma babilónia de comércio, na maior cidade do pais, de tudo um pouco havia. Lojas de roupas que representavam as melhores marcas, supermercados, lojas de informáticas, dezenas de cafés e bares, sapatarias, livrarias, farmácias, perfumaria, bancos, joalharias e outras, que todas juntas transformaram a avenida numa zona de consumismo. Até as caixas de Multibanco rebentavam pelas costuras de tanto serem utilizadas.

Os milhares de pessoas que aqui viviam, de tudo tinham à mão como as suas habitações de um momento para o outro especularam nos preços que o mais pacato cidadão interessado em comprar aqui um pequeno andar tinha que pagar uma fortuna.

Para completar e valorizar esta parte da zona nova da cidade, a avenida viu nascer no seu meio o mais moderno centro comercial. Esta enorme árvore de betão armado comercializava no seu interior de tudo um pouco, superando no seu conjunto todas as actividade e mais algumas das que já existiam nas proximidades

Feito e projectado a pensar nos fins do século XXI, tudo foi pensado ao pormenor, onde a segurança e vigilância era factor predominante. O seu autor, um famoso arquitecto e professor universitário, tinha a longa visão de que o futuro seria uma perfeita mutação – não fosse um profundo admirador da obra do Marquês de Pombal.

Tudo foi planeado ao mínimo pormenor. O suficiente para este edifício com milhares de metros quadrados ser invejado pelos responsáveis das grandes cidades, já que o movimento e alterações que originaram na cidade de província, modificou toda a região. Afinal a Implantação da República era qualquer coisa que até nem parecia deste mundo.

Ladeada de centenas de plátanos, quer de um lado quer de outro, com as suas enormes ramagens dão uma visão que quase torna esta artéria numa floresta, tal é a sua beleza. No Verão, os passarinhos aconchegam-se no seus ramos, depois de um dia de cansaço e de tanto terem voado em busca de alimento.

Logo ao amanhecer do dia os milhares e milhares de passarinhos que na noite dormiram protegidos pelas estrelas e pela lua iniciam o seu percurso habitual sem nunca perderem o norte de onde tinham saído para com a chegada do crepúsculo voltarem, cujo barulho que fazem quando se colocam nos locais demarcados fazendo um alvoroço com os seus chilreares que é a alegria dos petizes, tendo estes o prazer de poder assistir a este prenda da natureza.

Nos passeios, os bancos recebem a sombra e a fresquidão que o calor tira a quem circula pela mesma e que consola quem os utiliza para poder ver todo o rebuliço das pessoas que andam nos dois sentidos.

Depois o cheiro das flores plantadas em pequenos canteiros perfuma com o seu odor toda a extensão fazendo com que até as borboletas sobrevoam baixinho, ou quase rentinho das cabeças de quem está sentado.

Nas noites de Verão, é ver as pessoas nas suas janelas recebendo de graça o fresco da noite enquanto ao mesmo tempo vêem quem anda caminhando lentamente apreciando as mais variadas exposições de tanta montra espalhada.

Numa tarde de um fim-de-semana propício a um passeio de lazer, ambos foram procurar onde encontrar a casa que seria o seu poiso para o resto da vida. Foi na República o local escolhido.

Dois andares no mesmo piso de um prédio foram comprados. Não por necessidade mas por uma questão de um dia o fruto do casamento viver próximo deles. Cada um tinha: três quartos, duas casas de banho, duas salas de estar, cozinhas, dispensas, dois sótãos e duas garagens. Para as noites frias o aquecimento central dava o calor que o frio roubava.

Com duas frentes o prédio tornava-se solarengo já que apanhava Sol tanto pela frente como por detrás, o que fazia – como tinha dito o pai de Celestino - um prédio saudável e inimigo das doenças, já que a humidade seria impossível um dia de se instalar no interior dos dois andares, assim como em todo o prédio.

Bem localizados, com um bela vista e mesmo na frente do Centro Comercial, para quem ia iniciar uma nova vida, melhor não podia ter sido encontrado.

II

Quando Ana Margarida nasceu, decorria o sétimo mês da década de sessenta do século XX. Foi-lhe dado o melhor quarto que mais tarde lhe seria de grande utilidade.

Nesta altura, Joaquina, fez questão de chegar a um acordo com Celestino para que durante um ano, pudesse dormir no quarto da Ana Margarida para que esta se habituasse ao seu quarto e ao espaço que seria sempre seu. Aceitou logo a ideia porque já era uma tradição na sua família haver um quarto próprio para quem nascia. Defendia como pai e homem de tradições, que esta forma era a melhor para se educar uma criança, dando-lhe o seu espaço e a sua intimidade. Foi assim que cresceu e viveu.

O quarto foi pintado de branco com quadros nas paredes nos quais se podiam ver pequenas figuras de animais. Mobilado com uma cama ao centro para a mãe poder acompanhar o crescimento da filha enquanto bebé, um berço em madeira castanha com pequenas e simples ripinhas, colocado a um canto do quarto, um armário da mesma cor e igual feitio do berço.

O feitio do berço não era luxuoso mas de uma enorme simplicidade. Uma tábua rectangular com a altura aproximada de um metro por setenta centímetros. Na parte superior da cabeceira tinha figuras de dois meninos brincando no meio de flores vendo-se o mesmo na tábua oposta.

Ao meio, segurado por duas ripas fortes estavam as ripinhas, que num conjunto de uma obra-prima de torneiro, não existia quaisquer arestas para que não houvesse qualquer perigo de ferimentos. Eram nos arredondamentos das fasquias que estava a beleza do berço.

Por cima do berço existia uma pequenina caixa com o formato de um palhaço que emitia melodias suaves.

Na mesa-de-cabeceira da mãe, encontrava-se uma pequena boneca electrónica para alertar a mãe quando a criança chorava com extensões espalhadas por todas as divisões. Mais ao lado uma pequena cómoda para guardar a roupa infantil; uma banheira apropriada para o banho e mudanças de roupa.

Em cima da cómoda estava uma pequena cesta forrada com pano em rosa onde continha os produtos de higiene. Pelo quarto encontrava-se vários brinquedos, como peluches, bonecas e outros. Pela janela com cortinados em tons de rosa a condizer com a colcha da mãe e do berço da criança, entrava o Sol da manhã que iluminava todo o espaço infantil.

Até aos três anos, foi um bebé doce e terno. Nunca incomodou nos sonos nocturnos quem deitada estava a seu lado. O único problema era o come, tinha uma enorme alergia a tudo que tivesse que ser metido na boca. Sua mãe chorava por não ver a sua filha a querer comer, tinha que cantar canções entoadas num som que ela própria nem sabia como cantar, mas que, mesmo fanhosa ia conseguindo que comesse. Foi assim num longo tormento que viu que o esforço deu resultado.

Dos três aos seis anos, acabou o tormento para começar as pequenas doenças: gripes, dores de dentes, papeira, rebela, varicela e mais algumas que se renovavam sem pedir licença, fazendo com que o médico, amigo da família, raro era o mês que não ia visitar a sua mais nova cliente.

Tudo começou a normalizar a partir dos sete, altura em que Ana Margarida começou a interessar-se por tudo que a rodeava como da origem das coisas e dos porquês. Valeu à mãe, a ama que sempre acompanhou o crescimento da sua filha como pela experiência que tinha com crianças. Era uma excelente protectora de crianças. Tanto que, quando a sua aluna foi para o ensino obrigatório, quase tanto sabia como as que andaram no pré-primário.

Custava todos os meses uma pequena fortuna ao casal. Valeu-lhes ter rendimentos para suportar as despesas da ama da filha. Da fortuna que Celestino tinha herdado, grande parte eram enormes fazendas, e terrenos, espalhadas por todo o Ribatejo e algumas no Alentejo. A Herdade, talvez a maior de todas, situava-se nas margens do Tejo com milhares de hectares. A terra era de tão boa qualidade, que para além de uma enorme vinha, até centenas de cabeça de gado lá se criava.

No Ribatejo, as plantações com centenas hectares de videiras davam a seiva que fazia o vinho num dos melhores produzidos na região. Ainda a vindima não tinha começado e já os armazenistas e comissionistas rondavam a casa agrícola, solicitando-lhe que não vendesse o vinho a mais ninguém.

Astuto e manhoso que era para o negócio, conhecedor do principio da procura e da oferta para lhes juntar a qualidade, dava-se ao luxo de nunca se comprometer com ninguém para depois de o mosto estar nas pipas, então ir, como quem não quer a coisa, falar com quem já o tinha visitado. Aquele que lhe pagasse melhor e a pronto seria aquele que ficaria com o néctar que tão procurado era.

No Alentejo, onde de sete em sete anos, a cortiça tirada dava rios de dinheiro, era: todo aplicado em contas a prazos, na compra de apartamentos para depois serem alugados por períodos curtos mas com mensalidades caríssimas. Só no Algarve, tinha perto de uma dúzia que foram comprados a preços de saldo para depois darem milhares de Euros de lucro nos três meses mais quentes do ano.

Num ano que a Bolsa de Valores andava a atravessar dias cinzentos, fez um negócio de intermediário, que após concluído, meteu na sua conta centenas de milhares de Euros de comissão. Tantos que, um quarto foi investido numa nova carteira de acções. Tinha dias que os Deuses da Fortuna estavam com ele. Num espaço curto de meses, quadruplicou tudo o que tinha investido.

Pelas acções adquiridas, passou a ter assento em vários conselhos de administração de empresas que também passaram a ser sua. Das que vendeu aplicou os valores nos mais variados bancos para reiniciarem o antigo provérbio «dinheiro faz dinheiro».

O seu maior desgosto, que não dizia a ninguém, era de não lhe ter nascido um filho com faro para o negócio como ele. Se tivesse nascido, era o homem mais feliz.

Nunca deixou de gostar da filha, mesmo quando nas profundezas do seu ser, o seu desejo seria um rapaz.

Não que desconfiasse da filha um dia tomar posse do seu património, mas de quem um dia lhe entraria pela casa adentro pedindo a mão de sua filha.

III

A partir dos dez e até aos quinze anos, depois de Ana Margarida vir das aulas do secundário e de ter feito os trabalhos, levava as tardes a ver quem entrava e saia do enorme edifício que se situava mesmo de frente do seu quarto. Da janela do seu quarto podia ver a todo o momento a grande azafama de quem entrava e saía do mais moderno centro comercial.

Conseguiu aprender a decifrar pelos movimentos das pessoas, pelas horas de mais ou menor movimento, pelos embrulhos enfeitados nas mãos, dos embrulinhos que davam a entender que eram prendas especiais que tipo de pessoas que eram.

Nas tardes de Verão quando abria a janela do seu quarto escutava as conversas das pessoas que passavam e depois numa metamorfose recapitulava à sua maneira para de seguida fazer uma análise e concluir o seu pensamento, que por acaso até era certo, isto é: raramente se enganava.

Concluiu então: que as pessoas que se vestiam de determinada maneira, eram de uma camada social; pelo andar, das possibilidades económicas e que pela qualidade da roupa que vestiam sabia as profissões.

Segundo a estatística que fez durante anos, garantia a quem a queria ouvir, que noventa por cento era garantido.

De tão pouco sair de casa, a sua cor era desmaiada; mais parecia um anjo celestial de tão branca ser. Coisa que não agradava a sua mãe que insistia constantemente que passeasse com as amigas e que fosse com elas ver os monumentos, que arranjasse amizades masculinas e que não estivesse enterrada à janela todos os dias.

- A cidade tem tanta coisa porque não és como as outras raparigas? Dizia-lhe a mãe.

- Mãe, se temos mesmo em frente da nossa casa o maior centro comercial da cidade e se todas as pessoas adoram aqui vir porque não tem o nosso privilégio, porque razão hei-de sair? Respondia.

A maior preocupação da mãe era quando ia e vinha para a escola. Situada ao fundo da avenida, a filha tinha que atravessar algumas ruas que embocavam na longa artéria.

Mas orgulhava-se de ter uma filha sossegada e estudiosa para além de moça exemplar. A sua pombinha, como lhe chamava, era um amor de filha, assim dizia para as amigas.

Tanto se fartou de ouvir a mãe que quando chegou aos dezasseis anos começou a frequentar o complexo comercial, que até tinha na parede frontal do edifício, as cores que tanto adorava, o cinzento e faixas de amarelo. Quando tinha quase dezoito anos, a natureza entendeu que estava na altura de transformar alguém que tinha nascido num berço de ouro e tirar-lhe a cor desmaiada.

Tornou-a numa mulher linda. Alta, tinha quase um metro e oitenta de altura, sensual, de uns olhos castanhos assentes num fundo branco, até pareciam estrelas, um cabelo a puxar para o louro que quase pareciam de seda, uns lábios carnudos e um corpo esbelto e um pouco de vaidade que só lhe ficava bem, parecia uma deusa grega.

Nos anos seguintes, todos os seus momentos livres eram ali passados. Sabia mais que ninguém, quando mudavam as empregadas das lojas, quantas empregadas tinha cada loja, sabia quando começava e acabava os saldos, sabia quando mudavam as monstras e quando eram apresentadas as novas colecções de roupas ou algum novo lançamento de perfumes - a loja que mais adorava era a que tinha uma montra ostentando as melhores jóias do mundo.

Era um mundo que a seduzia e encantava. Chanel, Christian Dior, Burberry, Armani, Dupont, YvesSaintLaurent eram nomes de marcas e perfumes que conhecia perfeitamente. Sabia a história e a origem dos nomes com dos países.

Gostava tanto da Chanel, que quando o pai foi a França, lhe pediu para trazer um livro com a história da marca.

Quando o pai regressou com muitas páginas da história da Chanel, se gostava da marca passou a adorar.

Achava que mulheres destas, só mesmo num país como a França. Uma fortuna e projecção de um nome que se tornaria uma das marcas mais famosas e caras do mundo. Quando um homem de minúsculo bigode declarou guerra ao mundo, uma simples e desconhecida costureira soube aproveitar, para fazer e inventar aquilo que não passava pela cabeça de ninguém.

Quando acabou de ler o livro, seu pai deixou-lhe uma mensagem, talvez para nunca se esquecer como se faz e mantém uma fortuna «é nas situações de crise que se fazem fortunas» para reviver uma pouco os tempos em que nasceu.

IV

Então contou-lhe algumas histórias da família. “No tempo da Segunda Guerra Mundial , os tempos foram difíceis para os países invadidos como para os aliados. A diferença de quem viu a sua pátria ocupada e de quem era aliado, resumia-se a duas coisas: os ocupados sujeitaram à regra do mais forte e os aliados tinham que colaborar, mesmo que tudo não passasse de uma simples hipocrisia. Tudo começou a faltar no mercado e até alimentos para comer estavam racionados. Nada era vendido sem o controle do governo, que na altura era governado por um homem licenciado em economia e finanças, chamado António de Oliveira Salazar, que manteve durante quase quarenta e oito anos o país sobre rédeas curtas. A classe mais baixa e mais desfavorecida não tinha dinheiro para comer nem para dar aos filhos. Tinham que pedir nas entidades institucionais senhas de racionamento. Levantavam-se de madrugada para poderem comprar um simples pão, açúcar, azeite e outros produtos indispensáveis numa casa de família.

Como as moedas, a vida também tem o reverso. Então quem tinha alguma coisa de si e muita astúcia, mas acima de tudo que não tivesse medo e fosse capaz de andar nas noites frias e escuras, encontrava no contrabando tudo aquilo que não existia no mercado tradicional nem era permitido vender. Foi assim que teu avô fez fortuna. Comprava aos contrabandistas, sabão que até ganhavam pelos por estarem escondidos na meio da palha; petróleo; açúcar;, azeite; farina; pneus, que na altura era difícil encontrar-se e mais coisas que sem elas não se podia passar.

Arriscou a vida, o ambiente familiar e os filhos. Perdeu muitas noites viajando numa carroça puxada pelo lindo cavalo e sempre acompanhado pelo seu fiel empregado. No seu bolso levava sempre uma pistola, porque os assaltos eram frequentes e a luz da carroça mais não era do que uma lamparina acesa com azeite.

Passava pelas estradas descampadas e pelo meio dos sobreiros para numa grande herdade de sobreiros se encontrar com quem lhe vinha fornecer os produtos. O negócio na altura era feito no «toma lá dá cá». Não havia fiados nem créditos. Tudo a pronto pagamento.

Um dia em que o Sol ainda não tinha nascido e que o negrão da terra estava no meio do branco, na estrada do Vale Marquês, dois assaltantes interpolaram a carroça do teu avô que ia carregada de farinha e mandaram descê-lo mais o condutor da carroça para ficarem em terra e levarem o meio de transporte. O primeiro a descer foi o velho Augusto, empregado do teu avô, ia já para mais de vinte anos.

Só um parêntesis: Este velho Augusto, era quem nas horas livres, levava teu pai a andar no melhor cavalo que havia na casa do teu avô. Sentava-me em cima do Russo, assim se chamava o cavalo e percorria o quintal da casa dos avós ,e onde eu, teu pai, fui criado.

Não podes imaginar, como ainda hoje, seu pi se comove quando se lembra destes momentos e daquelas tardes de Verão em que o Augusto assobiava para os cavalos beberem água e de seguida os lavar com uma mangueira ligada a uma torneira que existia nas paredes da grande adega. Enquanto os lavava, escovava-os com um grande escova com dentes de aço para ficarem bonitos e brilhantes.

Ana Margarida, estes momentos de felicidade só serão esquecidas quando a terra fria pisar o meu corpo.

- Acredito avô. O avô fala de uma forma tão profunda que até parece que está a viver as coisas. Continue

- Ainda bem que compreendes minha linda menina, são recordações de momentos que mexem em nós.

Era impressionante a entrega e cuidado que o velho Augusto tinha na higiene dos cavalos. Ainda hoje penso que quando eles sentiam a água que vinha da mangueira, que até sorriam e os olhos brilhavam de tanto prazer.

Ah!....mas o Russo, era um cavalo vaidoso. Alto, elegante, castanho, com um pequeno sinal branco em forma de triângulo no meio da cabeça, que quando galopava pelas ruas sentia-se como um príncipe. Sabia que as pessoas olhavam para ele. O seu galope era tão certinho que, até os seus guizos encantavam quem ouvia o seu tilintar.

Mas continuando; mal o Augusto meteu os pés no chão, uma forte paulada lhe caiu nas costas para ficar logo estendido. Foi neste momento de curtos segundos que os assaltantes olhavam para quem tinha sido agredido que o dono da carroça, teu avô, puxou pela pistola, mandando dois tiros para o ar. Foi remédio santo.

Ai pernas para que vos quero! Assim fugiram sem mais alguma vez incomodarem quem ali passava com frequência.

Teu avô, a partir desta aventura, passou a utilizar outra táctica para poder sobreviver e proteger quem tanto lhe era fiel.

Quando passavam no vale, um quilómetro antes e um depois, vinha o Augusto a pé sozinho, com uma pequena distância da carroça, que teu avô conduzia. Se ao Augusto algo o alertasse, dava um sinal de coruja para que quem vinha atrás invertesse a marcha.

Nem sabes como nos dias de Inverno quando se juntava a família na velha cozinha ou nas vésperas dos Natais em que a tua avó Joaquina, uma grande mulher, estava na cozinha com um avental, batendo a massa que iria fazer os felozes e as chalaças que depois toda a família comia, o conforto reinava entre todos os presentes.

Teu pai e mais alguns familiares, todos juntos ao calor da lareira ouviam as histórias que o avô contava. Eu, o mais pequenino, pedia: «conte pai aquela história do Vale de Marquês». Já a sabia de cor, mas pedia-lhe sempre porque o jeito que o meu pai tinha para contar as aventuras deixavam-me enternecido, controverso, curioso e medroso para dizer para comigo: «o meu pai é o maior homem do mundo. Até faz os ladrões fugirem».

Foi sempre um ídolo para mim, Ana Margarida”.

Outra história: “Como sabes a guerra durou de 1940 a 1945, a meio da guerra, começou a haver falta de palha. Sem palha não se podia dar de comer aos cavalos. Teu avô tinha para cinco cavalos que eram o meio de transporte mais usado na altura. Sustentar estes animais todos e não haver palha para lhes dar era o fim do mundo. Por portas e travessas, teu avô soube que algures num barracão de uma fazenda que fazia extrema com uma das dele, centenas de fardos de palha estavam escondidos. Os cavalos mal tinham já força para puxarem as carroças, que pensa teu avô fazer? Era a lei da sobrevivência e consequências da guerra, combinou com o Augusto para numa determinada noite levaram duas carroças e irem roubar uma carrada da palha. Assim fizeram.

Lá foram pela calada da noite, carregaram os fardos de palha e regressaram a casa. Descarregaram a mercadoria. Quando o teu avô menos esperava aparece-lhes uma patrulha da GNR a notificá-lo para ir depor ao posto. Nunca passou pela cabeça do teu avô que alguém tivesse visto ou assistido quer ao embarque quer ao desembarque. O comandante do posto, um velho sargento fiel ao regime, acusou-o de ter andado de noite a roubar fardos de palha ao proprietário de uma fazenda que fazia extrema com a dele e que por acaso até por extremas eram vizinhos.

Teu avô desmentiu categoricamente, até porque não havia provas do roubo. O graduado responde-lhe: “ com que então não existem provas?” Muito bem, seja feita a tua vontade. Chama por uma patrulha para os acompanhar, e vai daqui, foram todos juntos para a fazenda onde estava os fardos de palha, só que agora reduzidos.

Então à entrada do dito barracão estavam pequenos bocadinhos de palha. O sargento volta-se para o teu avô e pergunta-lhe: “continuas a negar” claro que sim.

- Vamos seguir toda a palha que está espalhada pela nossa frente e vamos ver onde acaba” disse o militar

Lá foram fazer aquilo que teu avô começou a desconfiar. Como já deves ter percebido, acabava na entrada do palheiro da casa do teu avô. Mas mesmo sendo o fiel servidor do regime ditatorial, o velho sargento era humano e propôs ao teu avo e quem o acompanhou, duas condições: ou vão presos ou tornam a levar a palha de onde veio. Lá teve que levar o que tinha trazido e tudo ficou abafado.

- Mas o avô quando trazia a palha nas carroças nunca olhou para traz para ver se não deixava rasto?

Qual quê, Ana Margarida, o medo, o pouco tempo que havia, a preocupação de chegar depressa, nunca mais se lembrou. O que queria era chegar a casa.

Outras histórias te poderia contar, Ana Margarida, mas para além destas peripécias, teu avô era um homem esperto e astuto. Arriscava a vida, porque afinal tinha uma família para sustentar e empregados cujas famílias dele dependia. Aprendeu quem em tempos de crise como foi o tempo da guerra, mesmo comprando-se caro no contrabando, ainda dava para fazer fortuna.

Depois....., depois, Ana Margarida, os anos seguintes não foram fáceis.”

V

Perdia horas numa grande livraria que existia no centro. Uma livraria que vendia e representavas as melhores editoras. Dos mais simples aos mais complicados, dos mais baratos aos mais caros, dos piores aos melhores escritores, dos menos aos mais famosos, de tudo um pouco aqui se encontrava à venda e em exposição. Para os mais eruditas, até uma secção de alfarrabista.

Foi nesta secção que teve conhecimento que no Brasil existe um escritor que já vendeu milhões e milhões de livros pela maneira como escreve como pela simplicidade.

Ficou a saber também que este escritor escreveu um livro chamado «Brida» que fala sobre feitiçarias e que tudo na vida é mensagens. Gravou para sempre na sua memória uma frase de um outro livro do mesmo autor “ Ninguém tem medo do desconhecido, porque qualquer pessoa é capaz de conquistar o que quer e necessita. Só sentimos medo de perder aquilo que temos”.

Escrever livros para serem lidos por todos não é como escrever livros técnicos. Há quem julgue que escrever uma carta, escrever para jornais, escrever crónicas, escrever romances, tudo é igual. Puro engano. Casa coisa tem uma maneira muito própria de se escrever.

Foi num momento de lazer no mundo dos livros que um dia soube que a escritora Sveva Casati Modignani era um dos nomes mais populares da ficção italiana, cujos obras se tornavam todos em bestselleres, como foi num destes momentos em que assistia ao lançamento de mais um livro, ouvir do seu companheiro de fila, esclarecimentos sobre um poeta chamado Pablo Neruda. Não sabia era que às vezes os poemas se tornam mágicos para quem os ouve como muitas vezes traçam o futuro, como ficou a saber que este poeta descreveu com palavras sublimes a exploração dos homens que passavam horas e horas debaixo da terra recolhendo nitrato que depois de vendido para quase todo o mundo se tornava na maior receita do Chile, mas que eram tratados e explorados como escravos. Pablo Neruda tirou da profundeza da sua alma, palavras que hoje estão escritas no tempo com palavras de ouro.

Das muitas honrarias e cargos que recebeu e ocupou durante a sua vida, para Pablo, só uma teve valor: aquela quando ia a pé num dia infernal a caminho de uma mina e de dentro de um buraco saiu um homem alagado em suor e com os olhos esbugalhados com cor de sangue que lhe disse “ Bom dia Irmão”. Para quem não sabia ler mas apenas o conhecia por ser o maior poeta do mundo como o maior defensor de quem era explorado e maltratado, prestou sem querer o que só os grandes homens merecem: o reconhecimento. Nunca mais seria esquecida estas palavras ditas por quem foi para que as imortalizasse numa obra que publicou.

Às vezes em casa perguntava a si própria porque gostava tanto de ler livros que falavam sobre coisas do sobrenatural, de espiritismo, de coisas herméticas, etc. Nunca encontrou resposta, mas dizia sempre para consigo própria que, alguma razão deveria existir.

Nunca acreditou naquilo que alguém lhe disse uma vez: “ quem lê este tipo de livros, fica paranóico ou passa-se para o outro lado, pois tornam as cabeças fracas”. Até lhe disseram que lhe acontecesse alguma fatalidade na vida poderia “ficar tonta”.

Muitas vezes sorrateiramente, fingia que lia um livro para ouvir as conversas de quem ela julgava saber muito. Raramente se enganava, tanto que, quando ouvia as pessoas mais idosas e com óculos com lentes muito grossas, no seu entender era por lerem muito, falarem nesta ou naquela obra, fixava o titulo mentalmente e no dia seguinte a horas diferentes, ia ter com o gerente da livraria para perguntar se tinha o dito livro. Se sim, comprava-o logo. De tal forma, que o responsável passou a ter uma admiração por ela, não pelos livros que comprava mas por ser tão nova e já se interessar pela leitura. Dizia-lhe muitas vezes “ vai longe, menina, vai longe!”.

A sua avidez pelos livros e pelas conversas nunca lhe deu para ver e fixar a cara das pessoas como das que também andavam pelos corredores que esperavam pelos descuidos de alguém.

Foi aqui que um dia também ouviu falar de um livro chamado “ A Casa dos Espíritos” de uma escritora chamada Isabel Allende. Ficou fascinada com esta autora. Mal sabia que ir ser lançado um livro da sobrinha de um homem que um dia pretendeu modificar o Chile, comprava-o logo.

A sua biblioteca era qualquer coisa de sublime. De fazer inveja a muitas bibliotecas municipais que por aí existem.

VI

Quem a seu lado estava sentado, pouco mais velho do que ela, falou-lhe de tal forma que ficou encantada. Vestia elegantemente com calças bem vincadas e casaco aprumado, uma camisa e uma gravata a condizer, colete, aroma de boa água-de-colónia, sapatos bem engraçados e florescentes que até brilhavam como os anéis de Júpiter, com o penteado bem arranjado, um relógio que usava como talismã, como uma personalidade bem forte e uma maneira de falar que mostrava por ser um simples cabeleireiro de homens, não era homem que mostrasse ser ignorante.

Da longa conversa que tiveram, ficou ainda a saber que também cantava lindos fados como contava histórias. Muitos dos seus amigos quando casavam, convidavam-no para as suas festas de casamento, com a condição de cantar para os acompanhantes dos noivos

Tanto gostou de o ouvir que a Alma do Mundo os juntou para ficar traçado naquele momento todo o futuro. Coisas do destino.

Uma amizade profunda nasceu entre Ana Margarida e Miguel ao ponto dos encontros se tornarem contínuos para passado pouco tempo atravessarem juntos a avenida para ir conhecer os pais dela que ao saberem ficaram todos babados para quem iria futuramente fazer parte da família.

Joaquina, andava desconfiado da euforia da filha porque já tinha idade suficiente para saber que quando uma mulher anda eufórica a chama do amor por perto deve andar. Tanto a apoquentou, que Ana Margarida acabou por confessar que a paixão estava a entrar dentro da alma e que o coração estava a ficar inflamado.

- Tens que o trazer aqui a casa para o conhecer. Se o teu pai sabe quem vai ouvir coisas que não deve ouvir sou eu.

-

Ana Margarida, sabia que a mãe tinha razão e estava na altura de dar a conhecer quem um dia seria pai da sua filha ou filho.

- Prometo-te que no próximo domingo o Miguel virá cá a casa para pedir a minha mão ao pai.

Assim foi.

Depois de ter falado com ele, ficou marcado que no domingo seguinte por volta do meio-dia, iria almoçar em família, para todos se conhecerem. Miguel, não dormiu na noite se sábado para domingo. Nervoso, levantou-se bem cedo.

A manhã outonal e a temperatura estavam amenas. Foi a uma esplanada de um jardim para saborear um pouco daquilo que só este espaço de lazer sabe oferecer.

Sentado numa mesa, olhava para as folhas que o leve Vento despregava suavemente das árvores enquanto ao mesmo tempo contemplava a beleza e os contrastes da natureza.

Olhou para o relógio e viu que ainda faltava muito tempo. Continuou a olhar para as árvores, quando viu o cair de uma folha do ramo de uma árvore, torcida pelo passar dos anos e de tão queimada estar do calor. Os seus olhos seguiram todo o percurso. Quando se acomodou na terra fria, viu no meio de duas árvores uma pequena sombra de algo que parecia ser uma pessoa. Continuando a olhar, esperou algum tempo para ver se não estava a ter alguma ilusão óptica ou se o perfil se deslocava. Nada aconteceu. Então levantou-se e saiu da mesa para ir ver o que era ou quem era porque a rectaguarda do grosso tronco não lhe permitia destrinçar a verdade da ilusão sombrio de um julgado perfil humano.

Voltado para a rua, sozinho e encostado à árvore castanhada estava uma fraca figura humana com pouco mais de doze anos que passava despercebida aos menos atentos. Perturbador, era o seu estado físico de tão magro estar.

Vestido com roupas todas desalinhadas e amarrotadas, com um cachecol de lá axadrezado no pescoço a aconchegá-lo, de cor castanha como a árvore que o amparava; sapatos a puxarem para o desleixado e a mostrarem que os seus melhores dias já há muito tinham acabado; os seus cabelos lisos, fininhos e alourados, não eram nem curtos nem compridos, simplesmente estavam oleosos e sujos; uma cara linda mas com uma cor torrada de tanto queimada estar pelo Sol para além de ressequida pelo Vento; orelhas transparentes pela claridade que nelas trespassava e um nariz achatado.Com uns olhos azuis da cor do mar, uma pequena lágrima vinda do seu olho direito, evidenciava uma profunda dor e amargura – talvez por a vida não lhe sorrir; olheiras profundas, demonstravam que dormir e comer eram coisas há muito que seu franzino corpo necessitava.

No momento exacto que olhou para esta pequena de gente, sentiu a sua voz interior dizer-lhe: “ és um privilegiado da vida; vives num mundo diferente e nem sequer abrevias os passos apressados que dás durante o dia para pensares e veres como o mundo destas crianças e tudo o que o rodeia”. É verdade, Reconheceu que muitas vezes a correria da vida e o desejo de chegar mais depressa, impossibilitava-o – aos outros também – de olhar para o que se passa a seu lado.

Esta voz interior mexeu bem dentro dele. Levou-o a pensar que às vezes para se encontrar o caminho certo tem-se que andar por caminhos errados.

- Quem és tu e porque estás aqui sozinho?

Olhando-o «olhos nos olhos» respondeu-lhe:

- Que tem o senhor a haver com isso?

Das suas palavras, compreendeu logo na aspereza das mesmas, que a vida não lhe sorria.

- Queres sentar-te comigo alia na esplanada, que te ofereço um copo de leite e umas torradinhas, porque pareces estar com fome?

Continuou a olhá-lo, bem lá no «seu fundo» e algo lhe disse que merecia a confiança que estava a tentar conquistar, respondendo-lhe:

- Sim aceito, porque tenho tanta fome, senhor. Já quase à quatro dias que nada mastigo.

Devorou tudo com satisfação o que tinha sido prometido pelo Miguel. Depois de ter conversado um pouco com ele, mais confiante, começou-se a abrir e contou um pouco da sua atribulada e curta vida.

A ingratidão da vida, o ambiente em que fora criado e a revolta interior, eram coisas que se reflectiam na conversa.

Seu pai músico saltimbanco, vindo e fugindo da miséria espanhola, veio para Portugal, porque alguém lhe disse que em “Portugal, ganha-se bem a vida pedindo esmola”. Explorava o filho com o pouco que sabia tocar, já que tinha o dom de aprender com o ouvido. Um luxo demais para uma pequena criança, que bem sentia na pele, o preço de saber aquilo que nunca deveria saber.

Obrigava-o a tocar melodias tristes nos locais de grande movimento em zonas turísticas, com uma concertina toda esfarrapada para que as pessoas, dele tivessem pena e lhes dessem esmola, que por sua vez, tinha que restituir diariamente ao pai todo o valor obtido.

Quanto não lhe davam o valor que o pai achava justo, a agressão e as ofensas eram coisas comuns na vida e ambiente familiar do pequeno, se ambiente se poderia chamar, a quem dormia dentro de um automóvel sem vidros, com bancos esfarrapados e apenas por pano roto e encardido de tanto ser usado.

Para agravar mais a situação, o seu estômago já não recebia qualquer tipo de alimentação há alguns dias, porque não trabalhou para ter mais receitas, que o pai gostava de receber e precisava para gastar no álcool, enquanto o seu rebento tocava na frente daqueles que sentados nas esplanadas das zonas de lazer, saboreavam os melhores acepipes, olhando-o com desprezo por estar descalço, sujo, roto e, ainda por cima, tocando músicas nostálgicas, quando na verdade queriam era: divertirem-se, pouco lhes interessando a miséria que na sua frente aguentava a passagem das tempestades.

Ainda hoje, Miguel, sente na boca o gosto amargo das suas lágrimas, quando o miúdo, depois de satisfeita a sua avidez, com uns olhos ternos, mas tão cavados, olha para as profundezas da alma de quem lhe matou a fome e lhe disse: “senhor, é tão triste estar a tocar e na minha frente ver as pessoas comendo e bebendo coisas que eu não sei o gosto que tem e pensar se algum dia terei o prazer que estavam a ter?” para lhe acrescentar docemente “sabe quando pesa a minha concertina?” claro que Miguel não sabia “às vezes, quando tocava, encolhia-me com dores na minha barriga de ter tanta fome”.

Porque as manhãs de Outono são mais curtas e o diálogo já ia longo, perguntou-lhe a razão de estar sozinho na cidade, para lhes responder “fugi de meu pai e das arrebatadas que me dava todos os dias por não lhe dar o dinheiro que queria”. No momento, Miguel ficou sem argumentos tendo em atenção a idade do pequeno.

- Para onde vais agora? Sem dinheiro, sem documentos, sem conheceres os locais e tão pequeno que és?

Erguendo o seu curto tronco e olhando para o Céu, que tinha a cor dos seus olhos, disse:

- Nem eu sei! Não é por aqui que se vai para Fátima?

Não foi a pé para Fátima, como pensava ir. Miguel num gesto de amor, levou-o e deixou-o numa casa de crianças carenciadas e abandonadas.

Hoje, sabe que está bem. Ali está e quer ficar; ali quer aprender a ser um homem justo, para que um dia possa estar sentado numa esplanada vendo o seu “filho comendo um gelado e não ver na sua frente uma desgraça de criança”.

Já a tarde ia a longa, quando Ana Margarida, depois de ter ouvido tocar a campainha, foi abrir a porta e deu de caras com Miguel.

- Miguel, parece impossível. Pela primeira vez que vens aqui a casa conhecer meus pais e teus futuros sogros, chegas a estas horas? Já julgaste o que os meus pais não vão pensar de ti e já pensaste o que me disseram por causa da tua demora?

- Ana Margarida não te preocupes que vou justificar as razões do meu atraso. Acredita, que eles vão adorar saber que os meios justificaram as causas.

- Espero que sim e que tenhas razão. Justificou a namorada.

Feitas as apresentações e justificadas as razões, o mérito de boas acções favoreceu-o em todos os sentidos perante os donos da casa. Mas, nada isentou que Celestino não lhe desse um recado.

- Não te preocupes com os outros Miguel, porque as pessoas não merecem que nos preocupamos com os seus problemas. Preocupa-te é com o que é teu, porque é assim que se arranjam grandes fortunas.

Passadas algumas horas de convívio, foram feitas as devidas despedidas, com um abraço e um recado “ até um dia ou até uma próxima oportunidade”.

Fechada a porta, Ana Margarida levou o maior raspanete da sua vida.

- Não tens vergonha de quereres para teu marido um barbeiro que não tem onde cair

morto? Pensas que ele gosta de ti? Ele gosta é do meu dinheiro e da minha fortuna.

Ana Margarida, ouvia e nada dizia.

- Nunca terás a minha benção para este casamento. Só no fim de morto. És uma ingénua. Logo haverias de arranjar um maltrapilho que só sabe é falar de livros e contar histórias como ajudar os outros! Se pensas que o teu avô levou um vida de cão para arranjar uma fortuna e eu a multiplicar por quantas vezes, desengana-te. Argumentou o pai

A mãe que não tinha dito nada, só dizia:

- Acalma-te Celestino que tudo se há-de resolver.

Foi então que Ana Margarida levantou-se e de tronco erguido com as palmas das mãos em cima da mesa, disse:

- Fique com a sua fortuna e com tudo que tem, que não troco nada disso pelo Miguel.

Assim foi, porque na verdade o grande amor pelo Miguel continuou e o pai teve que ceder ao longo do tempo aos caprichos e teimosia da filha, mesmo vivendo o resto da vida contrariado.

Afinal, Ana Margarida, até se borrifava para a grande fortuna. Haverá coisa que tenha tanto valor como o verdadeiro amor?

Com ou sem hipocrisia, o casal, teve que aceitar a decisão da sua única filha. Tanto que quando Ana Margarida começou a falar em casamento, Celestino, foi o primeiro a preocupar-se na compra da mobília e no local da festa do casamento.

O enlace tinha que ficar na história, porque o nome da família não era um nome qualquer.

VII

O casamento ficou mesmo na história. Quando Ana Margarida saiu de uma das casas de seu pai, que se situava numa das suas herdades ribatejanas a caminho da Igreja de Santiago, onde decorreria a cerimónia, com um lindo vestido desenhado por uma conhecida costureira francesa, já os seus convidados à muito a esperavam debaixo do velho carvalho que tinha sido plantado por um dos seus antepassados. Enquanto esperaram foi-lhes servido um pequeno-almoço composto das mais gostosas doçarias, já que até ao momento de os padrinhos testemunharem o compromisso, algum tempo demoraria.

No momento que se assumiu à porta, pronta a partir, um empregado devidamente fardado a condizer com o acto solene, que mais parecia um porteiro de um hotel de cinco estrelas, veio logo com uma charret toda engalanada com fitas de seda e flores, com o cavalo também todo enfeitado com enroladas num sisal muito especial.

Sentada na espécie rara, toda esta ficou tapada pelo branco do seu vestido, partindo assim a caminho da igreja com os convidados na rectaguarda.

Na Vila já toda a gente sabia que a filha do senhor Celestino e da senhora Joaquina se realizava naquele dia. Um dia de festa para a população que teve a possibilidade de poder ver passar o cortejo. Todos sabiam que o senhor Celestino era um «unhas-de-fome», mas o dia do casamento da sua filha, não era um dia qualquer. Neste dia abriu os cordões da bolsa e numa das partes dos terrenos da quinta, reservados para a populaça, como gostava de dizer, ofereceu um banquete que ainda hoje se fala.

Talvez por esta razão, enquanto a noiva passava pelas ruas, até as janelas das casas estavam enfeitadas com flores, colchas e enfeites especiais. Uma coisa nunca vista na terra. Mesmo quando um dia lá foi o Bispo da Diocese para inaugurar a igreja, se tinha visto tal coisa.

Como supresa e oferta dos habitantes a Banda de Música, acompanhou toda a manifestação tocando musicas adequadas ao momento. O pai e a mãe que iam no cortejo, quando a meio do percurso viram sair de uma ruela, a Banda, as lágrimas correram pelas suas caras. Muito intimamente, Celestino, então pensou que as pessoas não são tão más como ele as julgava. Quem diria que o povo que tanto criticava, lhe faria uma partida destas?

Chegados à igreja, até lá de cima, Santiago, deveria ter sorrido para o que estava a ver. No portão do adro da igreja, estava o noivo e seus convidados esperando pela noiva como pelos convidados da noiva.

Ornamentado estava todo espaço frontal à igreja com fitas feitas de papel dourado que dava um aspecto estonteante. Do lado direito estavam em fila indiana as senhoras e raparigas, do lado oposto, os homens e os rapazes. No meio, um grande alcatifa vermelha com pequenas tochas ardendo, como que a iluminar o caminho a quem ia assumir um compromisso vitalício como a promessa.

Até as imensas acácias espalhadas estavam cheias de flores, que quando os habitantes souberam, vieram correndo para ver que flores seriam. Ainda hoje estão por saber. Mas, há quem diga que vieram de propósito de Itália num avião que o pai da noiva fretou.

Quando o pai da noiva envolveu o braço com o de sua filha para entrarem na igreja, vários trovadores devidamente trajados com roupas, que pareciam ter vindos da obra que imortalizou Alexandre Dumas, começaram tocar e a cantar .

Quem estava no altar esperando pela noiva, sentiu neste momento, correrem-lhe pela face da cara, algumas lágrimas, não por tristeza mas por sentir a falta de seus pais. Se estes estivessem presentes como tudo seria diferente. Tinham falecido os dois quando Miguel tinha dezoito anos, num acidente de viação para os lados de Arruda dos Vinhos.

Mal entraram no centro da igreja, cujos bancos estavam cheios de orquídeas, vindas directamente da Holanda, uma enorme orquestra iniciava o toque de uma Avé Maria entendida por alguns como uma benção para quem dentro de pouco tempo estaria casado.

Realizada a cerimónia, Ana Margarida e Miguel, então já casados, seguiram com os padrinhos para a sacristia a fim de assinarem o livro oficial da paróquia para que tudo ficasse legalizado.

No enorme adro da igreja, estavam todos juntos, quer os convidados e familiares da noiva quer do noivo. Quando viram que Ana Margarida se vinha juntar a eles, milhares de bagos de arroz caíram do ar como milhares de pequenas pétalas de flores.

Parabéns e beijos, demoraram o tempo suficiente para que ninguém ficasse sem cumprimentar o feliz casal que se desdobrava numa onda de simpatia para agradar a todos. Os abraços e os parabéns dos seus tios maternais, que tomaram conta dele após o falecimento dos pais, comoveram-no.

Mesmo assim, uma dos velhos amigos de Miguel e companheiro das farras, não evitou, como quem não quer a coisa, de chamá-lo à parte e lhe dizer em segredo “ seu grande pulha, agora deixaste de ser cabeleireiro para passar a ser um ricaço. Não te esqueças dos teus velhos amigos!

Tiradas as fotografias nos locais mais belos e com a companhia dos convidados, partiu o cortejo a caminho da velha quinta, onde em zona especial, um enorme banquete os esperava, onde três orquestras faziam companhia musical.

Para que nada faltasse a quem participou num casamento, que ainda hoje é falado nas redondezas da célebre Quinta das Palmeiras, por detrás de um dos palcos improvisados para os músicos, vários cozinheiros, contratados nos melhores hotéis da Europa, assavam centenas e centenas de leitões, de javalis e outras espécies de animais. O cheiro que se perdia no ar até parecia que provocavam os peixes do rio que passava mesmo ao lado da extrema da quinta.

Talvez por r esta razão, é que Celestino, nunca se quis desfazer destes terrenos, porque nem todos tinham o privilégio de no fundo da enorme quantidade de terra preta que se perdia no horizonte, terem um rio que ia desaguar em Lisboa e que dava para abastecer toda a qualidade de plantação com milhares cabeças de gado.

O almoço e copo de água prolongaram-se até, estarem tantas estrelas no céu, que já a noite caminhava para o dia.

Quando alguém se lembrou que, estava no momento de chamar os noivos para ajudar a abrir uma das milhares de garrafas de espumante que Celestino tinha mandado preparar com a devida antecedência - e em segredo – é que se aperceberam que marido e mulher tinham desaparecido para algures, mas que, ninguém sabia onde.

Só a velha ama de Ana Margarida sabia para onde tinham ido: num avião a caminho da Ilha de Margarita.

Uma lua-de-mel passada num país tropical seduz o mais imortal. Miguel nunca tivera possibilidades de viajar para outros países porque os seus magros rendimentos não lhe permitiam tal coisa e Ana Margarida porque nunca se interessou passear por outras terras, porque achava que tudo o que tinha lido e visto nos livros como nos filmes, tudo acabava por ser parecido. Apenas os hábitos e tradições eram diferentes mas no fundo era tudo parecido.

Costumava dizer a quem lhe perguntava a razão porque não ia passear para o estrangeiro, quando o pai era tão rico e nunca lhe recusaria qualquer viagem, que “ os outros países são como as religiões. Existem centenas de religiões no mundo. Uns adoram Deus, outros Alá, outros o Buda, mas no fundo, exprimidos os nomes e a fé de cada um e, em tudo que acreditam, o fim e as crenças, é tudo a mesma coisa. Um só Deus”.

Nunca Miguel, tinha tido tanto dinheiro depositado na sua conta bancária. Quando estava na ilha de Margarita, muitas vezes perguntava a si próprio: «se isto é uma milésima parte daquilo que um dia será meu, que vai ser de mim quando tudo for meu?». Nem ele próprio sabia responder.

Um quarto de luxo no Margarita Internacional os esperava. Quando entraram no quarto, uma supresa aguardava-os: garrafas de espumante, taças com saladas de frutas, de gelados e jarros de flores.

A cama era modelo light e composta de lençóis de seda, coisa que não era estranho para Ana Margarida. Agora para Miguel aquela sensação de seda a passar-lhe pelas mão mais não era do que estar a sonhar com as Mil e uma Noites.

Era possível ser verdade tudo que lhe estava a acontecer? Para quem sempre viveu numa casa situada de uma freguesia rural, isto só podia ser um sonho ou então estava no paraíso e não sabia.

Enquanto pensava, Ana Margarida disse-lhe que ia arranjar-se à casa de banho para depois saborearem juntos os acepipes que lhes tinha sido oferecido. Quando regressou, Miguel teve uma miragem e uma mudança de cor que a sua jovem esposa até pensou que estava a sentir-se mal disposto ou alguns dos morangos que estavam em cima da mesa lhe tivessem feito mal. Mas não, era a beleza de poder ver pela primeira vez o corpo da esposa em trajes menores, cuja transparência dava aos seus olhos uma visão qualquer.

Não resistiu aos encantos de quem estava e como estava na sua frente. Numa fracção de segundos despiu-se e agarrou a esposa para levá-la ao colo direita à cama.

Ana Margarida, estava tensa e contorcia-se toda com esta atenção. Não que desconhecesse que os noivos na primeira noite fizessem estas coisas, só que: nunca tinha passado por esta sensação como também não estava a acreditar no sucedido que estava a suceder.

Miguel, tinha aprendido na sua vida de boémio e trovador como se amava uma mulher. Já algumas tinham passado pelos seus braços. Nunca lhe disse, mas sempre que ela lhe perguntava, respondia-lhe que jamais tinha tido relações sexuais com mulheres.

A sabedoria de um e a ignorância de outra, acabou por ninguém sair lesado. Foi então que Ana Margarida, sentiu pela primeira vez que o seu corpo tremia como varas verdes, tal era a ternura e meiguice com que Miguel a beijava.

Quando as suas línguas se entrelaçaram, Ana Margarida, fechou os olhos para começar a gemer. A vergonha era tanta que pediu a quem a consolava que desligasse a luz para se amarem às escuras.

Todo o seu corpo tremia e toda ela se encolhia quando as longas mãos do marido acariciavam o seu longo e perfeito corpo.

Momentos de loucura e de entrega total, foram os longos minutos mágicos que os dois sentiram quando os dois corpos transpirando se colavam. Quando chegou o momento da entrega e Ana Margarida sentiu que algo estava entrando dentro de si, os gritos de prazer quase faziam despregar as pequenas bandeiras que ornamentavam as pequenas taças de saladas de fruta e de gelados que estavam espalhadas por toda a mesa. Quando sentiu o orgasmo a aproximar-se e compreendeu que Miguel estava a apertá-la demais, fazendo parecer que os dois corpos se transformassem num só, descobriu o que era o amor. Durante os trinta dias que estivarem na Margarita tudo visitaram.

Levaram alguns dias visitando as principais cidades da ilha. Adoraram a Playa La Restinga, Punta Arenas, Las Marvales, a Playa Parguito. Quando regressaram ao hotel os seus passeios eram diários. Foi quando descobriram o El Centro Comercial y Recreacional de Margarita, situado na Avenida Luisa Cáceres de Arismendi. Um mundo diferente do que conheciam. Uma super feira de comida, salas monstruosas de cinema.

Do que gostaram realmente foi das duzentas Tiendas do Sambil que é um centro comercial que mete num canto aquele que Ana Margarida tão bem conhecia no seu pais. Nas Tiendas do Sambil, viram uma livraria que pensavam só existir nos livros. Quando entraram viram um grande letreiro que anunciava:

“ Hoje «Tiendas do Sambil» apresenta o maior contador de histórias da América”. Como não poderia deixar de ser, foram ver.

Um homem numa secretária anunciava que dentro de pouco tempo iria ler para todos os presentes a história que mais gostou de escrever. Uma história que correu mundo por ser tão verdadeira. Dizia que quando a escreveu, as lágrimas lhe corriam pela cara de tão comovida estar e de tanto ouvir o seu coração chorando.

Miguel e Ana Margarida sentaram na plateia bem perto do contador de histórias. Quando começou a ler a história de «Leilla, uma estrela do deserto» apenas escutaram as palavras ditas como sentiram a emoção com que foi contada.

“Tinha uns olhos pretos como uma azeitona que assentes num branco límpido faziam lembrar o branco do casario árabe. Apenas o seu olhar mostrava estar sempre numa agitação de tristeza. A sua pele com uma cor a puxar para o cálido do deserto e o seu cabelo escuro fazia com que fosse uma criança bonita.

Com uma doença esquisita desde a sua nascença, levava já nos seus dez anos, muitos dias passados no parapeito da janela do seu segundo andar, ora vendo quem passava ora vendo outras crianças brincando no recreio de uma escola frontal à sua casa que fazia extrema com a rua movimentada. Tão movimentada, que: carros, bicicletas, animais e outros meios de transportes puxados pelo homem, a poeira do ar, por causa do movimento e das confusões, fazia da comprida artéria uma babilónia de coisas que tanto alegrava quem não podia nela circular ou brincar.

Depois a elevada temperatura, as vozes misturadas que mais pareciam uma orquestra desafinada, as buzinadelas estonteantes dos carros e a gritaria das crianças fazia, deste lugar, um sitio encantador, alheando-as dos perigos que as cercavam.

Às vezes até o menino do golfinho, por andar sempre com o desenho do mamífero estampado na camisola, passeava ao ombro o seu saguim, dando estes guinchos delirantes. Costumava arreganhar os seus pequenos dentes, brancos como os icebergues para assustar quem distraídamente circulava. O menino do golfinho tinha uma missão: passar de vez enquanto por baixo da janela de Leilla.

Depois assobiava num som agudo, para quem estava em cima, ouvisse e visse que nos seus ombros ia aquilo, que numa troca de olhares, fazia macaquices de propósito para quem não podia brincar. Eram estes curtos e mágicos momentos que os dois pequenos seres sabiam ser exclusivos de ambos.

O dono do macaco nunca soube dos motivos da «criança não brincar com o seu bicho». A única coisa que sabia era a amiga do seu bicharoco «ter uns olhos lindos como as estrelas do deserto».

Por não andar e ser como as outras crianças, ouvia e via coisas que os adultos não viam, ou fingiam ver. Pela altura e posição que tinha a seu favor, estava todos os dias numa situação de privilegiada. Às vezes sua mãe, para não a contrariar, fazia-lhe as vontades todas. Uma delas era dar-lhe o almoço na boca, mesmo que muitas vezes não soubesse o que estava a comer, tal era a sua curiosidade para ver as brincadeiras das outras crianças. Os seus olhos estavam sempre voltados para quem brincava.

De tão pequena ser, sua boca nunca se abria para qualquer lamento. Sofria interiormente mas evitava que sua mãe se apercebesse.

Já a tinha visto muitas vezes chorar e ouvir palavras confusas, ditas num turbilhão de frases sem nexo, mas compreendendo que a sua doce e protectora sofria por nada poder fazer.

A mãe olhava-a bem nos olhos e via que as suas azeitonas brilhavam num choro cujas lágrimas nunca escorriam pela face mas enrolavam-se naquilo que um dia a sombra da terra taparia para sempre.

O desgosto de ambas era tal, que apenas lamentavam morar num bairro daqueles, onde as disputas da lei do mais forte eram as coisas mais normais deste mundo, fazendo com que muitas vezes a desordem se instalasse na zona e onde nem a policia mostrava vontade de ir, não pelos residentes mas pelos negócios escuros que lá se faziam aos olhos do dia, não havendo interferência de ninguém, excepto daqueles que viviam dos rendimentos dos produtos que vendiam. Um desassossego que importunava quem lá morava como amedrontava que visse e falasse.

Muitas vezes as raimonas da bófia, como lhes chamavam os traficantes do bairro, visitavam as ruelas mais escuras mas sempre vigiadas por quem encostado às velhas e sujas paredes fingia nada ver ou perceber para servirem de pombo-correio a quem percebia dos sinais que se perdiam nas noites.

Todos sabiam no mundo em que viviam, mas todos tinham feito a promessa de “ nada saber para os outros” de modo a que o silêncio por não ser comprado era ameaçado.

“Um inferno este bairro. Se tivesse dinheiro comprava uma casa numa zona sossegada e civilizada nos subúrbios da cidade” dizia muitas vezes a mãe solteira para o seu rebento quando via confusões e a retirava da janela, até ao dia em que esta lhe pediu para lhe fazer um pudim de leite-creme. A mãe que não queria que nada faltasse a Leilla, porque sabia que a sua vida seria curta, o seu maior desejo era fazer com que se sentisse feliz.

Num instante, correu para a mercearia mais próxima para comprar o que tanto iria adoçar a boca da coisa mais querida que tinha neste mundo.

A força do mal estava atrás da porta e quando nada indicava, rebentou uma confusão de fugitivos e de fardados, para num abrir e fechar de olhos, os tiros e balas cruzarem-se por percursos desconhecidos para quem já conhecia as sinuosas ruas e esconderijos dos malfeitores.

Uma bala maldita perdeu-se no alvo a atingir para fazer um ricochete embatendo de seguida na testa da pequena criança que nada dizia aos outros mas que tudo via.

Quando chegou a casa com o leite, satisfeita de mais um capricho ir dar a quem tudo merecia, encontrou no soalho gasto, de tanto pisado estar, sua filha estendida no chão banhada de sangue.

Branca a transpirando como uma desalmada, apenas viu o pequeno corpo de Leilla com os olhos muitos abertos olhando para o Céu.

Ficou-lhe para sempre a imagem dos pequenos braços abertos e estendidos no chão, dando a impressão que esperava a mãe para lhe dar o último abraço. Abraço este que não recebeu mas que deu a quem tanto amava.

Então num relance, levantou-se e olhou para onde a filha sempre olhava mas ninguém viu como nada ouviu.

Ainda hoje, está por saber como o Sol deixou de entrar em casa ou se alguma tempestade do deserto lhe entrou pela casa adentro, levando-lhe quem tudo era para ela.

Com uma profunda fé, mas ao mesmo tempo sentindo uma revolta interior abalada por desconhecer os desígnios divinos, prometeu a si própria que a partir do momento que deixou de ver e ter a sua pequenina, todos os dias estará à janela olhando para onde olhava Leilla, com a esperança de um dia poder ver no meio de quem brinca alguma estrela ou alguma sombra que a leve a julgar que aquilo que era seu voltou. Se nada disto acontecer, então que a sombra escura a leve para junto de quem já não tem. Nas noites de solidão, lembra-se do calor que dava a quem tanto precisava para se aconchegar no peluche cheio de borboto de tanto mimado ter sido”.

Quando o declamador terminou de contar a história, as lágrimas corriam quase em todas as faces de quem tinha ouvido tão eloquente «contador de histórias» contar a história de «Leilla».

VIII

Regressados da lua-de-mel. Ana Margarida vinha radiante e Miguel ainda mais feliz pelo que gozou e contente demais por saber que algo de bom o esperava. Celestino e Joaquina, ouviram durante horas seguidas as aventuras dos dois por terras de Cristóvão Colombo. O pai olhava de soslaio para as atitudes do genro como ouvia os desvarios que fez durante a ausência e pensava para com os seus botões, que a filha alinhou em tudo.

- Realmente, nunca deveria ter uma filha mas sim um filho. Que vai ser de tudo que arranjei quando fechar os olhos. Dizia em pensamento para si próprio

A mãe sentia-se feliz e contente por ver que o casamento produziu mudanças na sua pequena pombinha, como pedia interiormente a Deus que lhe desse um bom futuro. O genro até parecia bom rapaz. Por ter sido cabeleireiro, o que não falta é gente fina que vieram da classe baixa.

- A minha filha vai ser feliz por que vejo que os dois se dão lindamente. Disse em voz alta para todos.

O marido repreendeu-a logo para lhe dizer:

- Mas quem és tu para estares para aí a dizeres o futuro de uma pessoa que ainda mal conheces?

O genro que percebeu logo o recado, respondeu para dizer que seria como a D. Joaquina disse.

- Descanse senhor Celestino e Dona Joaquina que farei o melhor para que nada falta à vossa filha.

Foi quando Celestino disse com voz brusca, porque não gostou do que o genro disse.

- Era o que faltava faltar alguma coisa à minha filha, quando nem eu próprio sei a fortuna que tenho. Quando morrer deixarei o suficiente para que nada falte a todos e, ainda sobrará muito para fazer aumentar o que exista.

Era quase de noite quando a reunião de família acabou. Filha e genro despediram do país. Celestino foi à porta despedir-se da filha, mesmo quando bastava só atravessa o corredor e num tom seco disse ao seu genro:

- Na próxima segunda feira apresenta-se às nove horas no meu escritório para começares a trabalhar. Não te esqueças que é às nove horas e que segunda-feira é dia catorze.

Em casa, Ana Margarida chamou à atenção o esposo e pediu-lhe por tudo que não fizesse como no dia em que veio conhecer os pais.

- Não te esqueças que para o pai os horários e compromissos são para se cumprir.

Na segunda-feira, Miguel estava presente onde seu sogro o mandou estar. O dia começou logo com uma reunião com todos os directores a quem foi comunicado que futuramente o pelouro financeiro passaria a estar sob a responsabilidade do genro.

Miguel, nem lhe passava pela cabeça o património e investimentos que o sogro tinha como gerir fortunas para serem rentabilizadas, era algo tão complicado.

O seu assessor colocou-o à vontade enquanto ao mesmo tempo lhe ia descriminando como era o movimento na empresa, salientando-lhe que uma grande parte do dinheiro estava aplicada em vários Fundos de Acções, pelo que todo o cuidado era pouco. Basta às vezes uma má compra ou uma má venda para logo se perder milhares ou milhões de Euros. Advertência que Miguel anotou e que o deixou intrigado.

Seguidamente, outro director, do pelouro do património, mostrou-lhe a listagem do património do sogro como do valor monetário e dos investimentos que periodicamente são feitos conforme os lucros apurados no fim de cada ano.

Também ficou a saber que todos os terrenos agrícolas que eram propriedade e coordenados por este, mesmo que em cada herdade estivesse um responsável a que na linguagem do campo se chama de feitor.

Eram homens com conhecimento da terra, que sabiam quando se podava, quando se devia lavrar a terra, os adubos que se lhe deviam meter conforme a plantação a fazer, sabiam quando se devia começar a preparar as coisas para a vindima, quando homens e mulheres eram precisos para vindimar.

Pode ler mais: em: www.terradovento.com

Musito
Enviado por Musito em 22/09/2009
Código do texto: T1824133
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.