Inconsequente!

Apenas o mínimo indispensável de iluminação coloria com um azul-sinistro a visão de Ariel Mondagrón, ainda um pouco tonta, refazendo-se da sempre crítica condição do salto. Levantou-se, estranhou o fato das demais luzes estarem apagadas, e caminhou, em silêncio, até o painel de controle. Sua intuição feminina, porém, já a alertava que nem tudo tinha dado certo, e ela lamentava que sempre estivesse com a razão nessas situações…

Analisou as curvas de um dos monitores do computador, seguiu com o dedo uma delas e conferiu, com um rápido cálculo mental, que as coordenadas eram realmente aquelas que estavam sendo mostradas no canto esquerdo do vídeo. Colocou a mão esquerda sobre a boca, e exclamou, um tanto contrariada:

— Não pode ser! Meu Deus…

Foi até uma das janelas da nave e procurou alguma referência visual conhecida. Não conseguia enxergar nenhuma estrela, apenas o vasto manto escuro que os cobria por todos os lados. Foi até uma outra janela, mais ampla, que permitia um ângulo melhor. Nem uma única estrela. Ao olhar para cima, quase involuntariamente, deparou-se então com a única visão que rasgava a negritude do vácuo ilimitado, porém a última cena que Ariel gostaria de ver na sua vida: uma galáxia, vista de bem longe.

Ariel estremeceu, suou frio. Ela tinha a óbvia certeza que aquele disco branco — praticamente circular, daquele ângulo — tratava-se da Via Láctea, vista de um ponto de tal afastamento que seu tamanho era um pouco maior que a Terra vista da Lua. Por alguns segundos, estática, nada pode fazer senão lamentar a encrenca que tinha se metido… Por fim, procurou os controles manuais para ligar a iluminação normal.

— Acorda, Kevin! Tenho novidades para você…

Kevin Burrows, como sempre, não resistia ao impacto biológico causado pelo salto e perdia a consciência. Aproveitava para dormir, e sonhar. A cada viagem, era a mesma rotina: Ariel, após a reentrada da nave em espaço newtoniano, tinha que despertar o colega, se bem que às vezes sentia muita vontade de deixá-lo assim até chegarem onde deveriam ir. É que ela gostava de aproveitar os momentos de silêncio… algo impraticável com Kevin acordado.

— Ah… parece que dormi uma eternidade… E aí, Ariel? Bom dia, boa noite, sei lá…

— Boa tarde, Kevin. Oh, desculpa interromper seu sono… ao que parece, seus sonhos estavam muito bons… — só deu uma passada de olhos rápida, sem se apegar ao detalhe.

— Por que você diz iss… Ah, droga! Desculpa, Ariel! Isso é coisa de homem… e, num ambiente sem gravidade, sabe como é, né? — sem mais o que dizer, Kevin apenas juntou os joelhos próximo ao peito, visivelmente encabulado. Ariel não se deu ao trabalho de continuar o assunto.

Ela sentou-se na mesa, com um copo de café, devidamente tampado e provido de canudo, e, sem olhar para Kevin, disse:

— Venha aqui. Quero que você dê uma olhada num negócio… — apontava o dedo para a janela maior.

— Que foi, não vai me dizer que o pessoal da Estação está de greve novamente… Ué, cadê a estação?

— Lá em cima.

— Aonde… Meu…Minha mãe do céu…

Depois de anos de experiência, poder-se-ia dizer que a tecnologia da navegação hiper-espacial já estava completamente dominada. Não havia mais mistérios ou pontos nebulosos que justificassem o não-uso desses verdadeiros corredores que a Natureza oferecia para a exploração espacial por parte dos homens. Havia, porém, um pequeno detalhe operacional das naves hiper-espaciais, que, fazendo uma analogia grosseira, fazia com que o grau de incerteza no destino da viagem fosse tal como a probabilidade de um pára-quedista morrer se o artefato nas suas costas não funcionasse na hora que devia. Porém, naves hiper-espaciais eram incomparavelmente mais seguras que pára-quedas, o que não queria dizer necessariamente que fossem completamente infalíveis…

Foi muita sorte, na verdade, o descobrimento das primeiras “zonas hiper-espaciais” que a humanidade teve acesso. Totalmente por acaso, um renomado cientista italiano, Alessandro Nutti, à bordo de uma nave retornando de Marte para a Lua, notou, a certa altura de viagem, alguns detalhes técnicos no painel de controle que faziam uma certa região do sistema solar contar com alguns recursos bastante incomuns… A passagem de neutrinos em certas condições específicas resultava no surpreendente desaparecimento deles! Assim era descoberto o “triângulo das Bermudas” espacial, uma região que permitiria, décadas depois, as primeiras experiências práticas com naves hiper-espaciais, inicialmente controladas por robôs…

E assim, quase no final do século XXI, já na época em que a humanidade fazia suas primeiras colonizações além do sistema solar, já havia a segurança necessária no controle do hiper-espaço, que fazia com que viagens desse naipe fossem tão comuns como visitar o parque de diversões intermundiais de Deimos, um satélite marciano, nas férias. E, nessa época, algo a respeito do hiper-espaço era conhecido até por crianças em idade pré-escolar: no sistema solar, só haviam dois campos hiper-espaciais, um de saída, perto de Marte, e outro de chegada, que, ao contrário do anterior, não era fixo, e ficava se deslocando aleatoriamente entre Urano e Netuno. Essas eram as portas que permitiam à raça humana perambular pelos pontos mais longínquos da galáxia.

Ariel e Kevin estavam inconsoláveis. Ela parecia estar um pouco mais, na verdade. A probabilidade de algum objeto, como um pequeno asteróide, encontrar-se exatamente num campo de chegada no exato momento em que uma nave estivesse prestes a por ele ressurgir eram ínfimas, ridiculamente desprezíveis… Uma em quinze milhões, era a marca mais pessimista dos teóricos dessa ciência. Nunca, em toda a História, aquilo havia acontecido, até aquele dia…

— Você acredita que poderia ter sido, sei lá, um asteróide ou algo do tipo, Ariel?

— Não sei. Qualquer coisa, menos outras naves como a nossa, claro, supondo que podemos confiar totalmente no controle de tráfego do governo… Mas para quê esquentar a cabeça com isso, agora? Estamos perdidos…

— Ah, Ariel, você às vezes é tão pessimista…

— Sou realista, Kevin! Ser que você não percebeu a gravidade do quadro? ESTAMOS MORTOS!

— Calma, não precisa se alterar…

— “Calma”…

— Tudo bem, vamos encarar os fatos: há o dispositivo de proteção das naves, que, numa situação inédita como essa, desloca-nos para outro campo de chegada qualquer, a fim de evitar que a gente se materialize em cima de um asteróide… Já imaginou, podia ser pior, você reaparecer no meio de uma pedra!

— Ah, Kevin…

— Tá. O fato é que não conhecemos os critérios que fazem com que um outro campo alternativo seja selecionado. Bom, na verdade, nem os próprios construtores da nave sabem qual é! O que nós pensávamos é que, qualquer que fosse a escolha do computador, desembarcaríamos ainda na nossa galáxia…

— E acabamos de achar o furo da teoria. Poderíamos ser heróis, se não estivéssemos mortos, Kevin. Não sei se alguém já te contou, mas você nunca desconfiou do fato de toda nave hiper-espacial contar com cianeto de potássio como item obrigatório e indispensável?

— Bom… pensei que era para matar os ratos da nave!

— Vou fingir que não escutei.

— Bolas, Ariel, qual é? Vamos tratar de achar uma saída!

— Você está falando sério, Kevin? — ela pegou, no armário médico, o veneno… — Essa é a saída, você sabe muito bem!

— Não seja tão drástica… ainda. Ser que você não vê? Para cada campo de saída, existe um campo de entrada correspondente! É só uma questão de… — aí Kevin parou, subitamente, percebendo a besteira que falava. Ariel, notando o choque do colega, colocou, de forma mais suave…

— Kevin, é muito pior que achar uma agulha no palheiro. Não existem procedimentos matemáticos suficientemente confiáveis para se encontrar um campo, é totalmente ao acaso que todos os hoje conhecidos foram catalogados e mapeados. No sistema solar, os dois campos estão, por uma feliz coincidência, muito próximos. Mas não é o caso genérico, na Via-Láctea. A distância entre a entrada e a saída pode muito bem ser, digamos, milhares de vezes maior que a de lá. E lá, os campos são conhecidos. Aqui, acabamos de registrar o de chegada, mas, quanto ao de saída…

— Certo, Ariel, não precisa terminar. Bolas… Vou por uma música, se você não se importar…

— Tudo bem. — ela já estava acostumada com esse pedido. Ele, sem muito escolher, colocou três CD’s de uma banda de um passado remoto…

— O que é isso?

— Você não deve conhecer, é do século passado ainda. Chama-se Metallica.

— Legal… você gosta dessas coisas antigas, mais lentas, né?

— É o meu estilo, Ariel.

— Bom, você prefere morrer agora ou quer tomar um banho antes?

— Ah, Ariel, dá um tempo! Deixa eu me acostumar com a idéia.

— Posso desligar as luzes, Kevin?

— À vontade… — ele respeitava essa tradicional atitude da colega, que gostava de ficar sozinha, no escuro e na janela, olhando para as estrelas… Porém não havia mais estrelas.

Quase dez minutos se passaram, e a cena continuava a mesma: Kevin, sentado, estático, olhava para Ariel, debruçada e estática, olhando, ora para a Via-Láctea, acima, ora para o nada, à frente. Ela pensava na sua vida, na Terra, nas coisas que nunca mais poderia viver novamente… Sua vida já havia acabado, e ela estava quase conformada com o destino… Ao contrário de Kevin, que começava a ficar inquieto, virando-se de uma lado para o outro, indo até o painel do computador, voltando, indo ao banheiro constantemente, voltando ao painel, aproximando-se de Ariel, mas sempre desistindo… Ela, voltando ao mundo real, percebeu o crescente nervosismo do amigo, e foi seca e direta:

— Fala, o que te aflige, Kevin?

— Quê… ah… você ainda quer saber…

— Sinto que você quer falar alguma coisa… Está tudo bem com você?

— Nada bem, do que você está falando, afinal?

— Qual é, Kevin, o que é que você está escondendo? Sei que não tem nada a ver com o hiper-espaço…

— Não… não é a melhor hora para falar disso.

— … — ela, curiosa, já estava totalmente voltada para Kevin, esquecendo-se do espaço afora. Ao perceber isso, Kevin sentou-se no chão, próximo à amiga.

— Droga… é a única hora que tenho agora para falar disso. Sabe, Ariel, tenho algo aqui que você ainda não viu… — ele abriu o zíper da jaqueta, jogou-a de lado e levantou a manga esquerda da camisa, pondo seu bíceps à mostra.

— Kevin… Quando é que… pra que isso? — ela parecia bastante surpresa ao descobrir que o colega havia feito uma tatuagem holográfica com um desenho um tanto inusitado: o rosto dela.

— Gostou, Ariel? Dependendo do ângulo, você vê uma expressão diferente…

— Uma holo-tatuagem minha?

— Não gostou?

— Por quê, Kevin? O que você quis, com isso?

— Agora vem a parte chata…

— Meu Deus, Kevin, não acredito…

— Se é que você ainda não percebeu, então vou assumir a formalidade de dizer: eu…

— Kevin…

— Eu ss-sempre f-fui… “apaixonadoporvocêAriel”… droga… agora já disse…

— Kevin… eu… nem sei o que dizer… — mais encabulada que ele, Ariel baixou a cabeça e virou-se, colocando-se de lado para ele, para não ter que encará-lo.

— Desculpa pelo impacto, Ariel. Eu sabia que você ia ficar chateada…

— Não estou chateada…

— Tá bom… vou acreditar. Olha, só quero que você saiba que eu não poderia morrer sem… quer dizer…

— Pare, Kevin! Não fale asneira!

— Ah, Ariel, estou sendo sincero com você, bolas…

— Desculpa, não quero te ofender, mas… veja bem, Kevin… encare as coisas como elas são: você sabe que eu vou… ia… me casar no final do ano…

— Sem essa, Ariel. E por acaso você não sabe que sou casado e tenho uma filha?

— Justamente. Então, o que…

— Pare tudo, Ariel. Vamos recomeçar: eu só estou abrindo o jogo, porque eu passei anos assim, desse jeito…

— Como assim?

— É que… ah, Ariel, eu estou confuso.

— Nota-se. Olha, Kevin, eu já te conheço há um tempão, você é meu amigo, que eu estimo muito, desde os nossos… quinze anos…

— Catorze.

— Que seja, mas… você… a Debbie… seja razoável, por favor!

— Ariel, esse é o lado sujo da história. Eu sempre fui super afim de você, desde aquele tempo no colégio, afim mesmo…

— Bom, por que não falou, então?

— Ah, Ariel, de repente você ficou sendo cada vez mais amiga minha, e isso é algo que eu valorizava muito… De repente, eu poderia te perder, se você se magoasse…

— Que idéia, Kevin! Claro que eu gosto de você para caramba, como amigo, claro… Você achou o quê? Que eu poderia esquecer disso? Não é assim que funciona, Kevin!

— Hmm… eu… fiquei com medo mesmo. Havia a hipótese, bem provável, da rejeição, e eu não poderia suportar isso…

— Qual é, Kevin? Tá, fazer o quê? Então, você desiste, dá o fora…

— Como “dar o fora”?

— Modo de falar. Aí encontra a Debbie, casa-se com ela, tem uma filha…

— Não necessariamente nessa ordem.

— Ah, foi por isso então?

— Não, não teve nada a ver, nem se preocupe… aí…

— Aí, vem com essa para cima de mim? Olha, Kevin, você já tem uma vida bem, digamos, estável, e a gente se dá super bem…

— Mas aí é que está, Ariel. Olha, vou ser franco, desculpa se isso machucar você…

— Imagina…

— Ariel, eu sou — sempre fui — tão apaixonado por você, que não poderia correr o risco de perder a sua… amizade…

— Isso não faz sentido.

— Eu amo você…

— Kevin, tome mais cuidado com as palavras.

— Amo você, Ariel! É uma paixão platônica, eu fiquei com a Debbie, mas fantasio com você até hoje…

— Meu Deus, não diga isso!

— Mas é verdade! — ele aproximou-se um pouco mais, deixando Ariel numa posição incômoda, apertando-se contra a parede.

— Tudo bem, deixa eu raciocinar, Kevin. Você, afinal, quis passar a vida toda nessa… mentira… e garantir uma proximidade de minha parte… e viver com a Debbie. E quer que eu faça o quê? Te aplauda? Que loucura! E agora, aproveita-se da situação, para confessar o que você tinha em mente… Agora? Agora que estamos fritos!

— Ariel, esqueça-os, só restaram nós dois… — ao som de “For Whom The Bell Tolls”, ele ousou passar sua mão direita no rosto dela e pousá-la no seu ombro esquerdo, mas a reação da mulher foi pior do que ele pensou…

— Pare, Kevin! Não seja ridículo! Que tamanha irresponsabilidade a sua! Você sempre esteve no controle da situação, não é? Você me engana, engana a minha amiga Debbie, até a coitadinha da July… Seu irresponsável! Agora, que você não tem mais opções, tem a chance de tentar… oh, tenho nojo de você, Kevin!

— Ariel… — mas ele não conseguia dizer ou fazer mais nada, enquanto ela se levantava e dava as costas para ele, indo para um outro cômodo qualquer da nave.

— Inconseqüente! — foi a última palavra dela. Kevin voltou para sua cama, deitou-se e ficou olhando para cima, escutando “Fade To Black”. Mostrava-se um tanto entorpecido, não pelas palavras de Ariel, mas pelo que havia feito. Nunca poderia imaginar-se em semelhante situação.

Depois de quase uma hora, Ariel, após mais uma verificada inútil no painel do computador, voltou ao cômodo principal da nave, mais calma.

— Kevin, me desculpa. Eu me excedi…

— Ótima maneira para terminar a vida. — ele não a fitava, deitado de lado, em posição fetal, visivelmente aborrecido e desiludido.

— Desculpa, Kevin. É isso tudo que aconteceu com a nave… eu fiquei estressada. — ela então procurou conformar o amigo, afagando seu cabelo. Ele reagiu ao estímulo inesperado, e sentou-se na cama, ao lado dela.

— Eu é que lhe peço desculpas, Ariel. Que coisa feia…

— Que é isso, quer que eu te perdoe por ser sincero? — ela pousou sua mão no ombro dele. Outra atitude inesperada, deixando-o com uma pulga atrás da orelha.

— Sinceridade… sinceridade é o meu sentimento, Ariel. Não queria que fosse tão sujo assim, mas, afinal de contas, sou uma pessoa… fraca.

Ela levantou, por conta, a manga da camisa dele para poder observar melhor seu rosto holo-tatuado:

— Como é que você explicou isso para a Debbie?

— Ah, isso? Eu fiz antes de conhecê-la, ela não deu muita importância…

— Não deu importância? A Debbie? Duvido! Imagina só se fosse comigo…

— Com você?

— É… quero dizer…

— Se você tivesse ficado comigo, Ariel?

— Vamos mudar de assunto?

— Tá… não tem saída mesmo, né? Estou me referindo ao campo hiper-espacial…

— Não há o menor sinal no computador, Kevin. Eu fiz uma programação de rastreamento ainda antes de eu te acordar, e nada, até agora… É melhor não alimentar falsas expectativas.

— Certo. Sinto muito, Ariel.

— Que música é essa, Kev… Kevin!?

Não deu tempo para reagir. Ele a puxou, sem violência mas firmemente pelo braço, e arrancou um beijo de seus lábios. Ela, atordoada, apenas colocou sua mão espalmada no peito dele, sem fazer muita força para empurrar. Acabou fechando os olhos também, e sentindo a intensidade do ato inesperado, ao som de “To Live Is To Die”.

— Espero que um dia você me perdoe, Ariel Mondagrón, mas acredite, eu te amo do fundo do meu coração!

— Kevin… — ela não segurou as lágrimas, e abaixou a cabeça, transtornada, sem no entanto largar a mão dele. Kevin sentiu o estrago feito, mas já era tarde demais…

— Dane-se o mundo, Ariel! Nada mais fará sentido agora, exceto a gente… — Reunindo todo o resto de ousadia e ímpeto que sobravam na sua mente sofrendo uma reviravolta, Kevin aproximou-se o máximo de Ariel, fazendo-a abraçá-lo quase involuntariamente, e juntou o que pode seus rostos, sem no entanto tocá-los. Viu uma pessoa insegura e com medo a sua frente, não com medo dele, mas da vida em si. Viu, no reflexo dos olhos verdes de Ariel, a figura de um homem realizando o sonho tão irreal que o perseguiu durante a vida toda. Com o indicador, interrompeu o caminho das lágrimas descendo pelo rosto da mulher, com um ar quase científico, como o de um cientista dando de comer para uma cobaia; e passou o dedo por cima da orelha esquerda de Ariel, arrumando seus cabelos curtos. Sentiu a respiração dela no seu rosto, serena, ritmada. A eletricidade latente entre os dois jovens era mais que evidente agora.

Quase colando seus lábios nos dela, mas ainda sem tocá-los, ele parou, e ficou esperando o golpe de misericórdia que teria que vir dela. Ela já havia passado os dois braços esticados pelo pescoço dele, apertando-o levemente ao cruzar suas mãos. Aquele breve momento de indecisão foi quebrado por ela, ao beijá-lo apaixonadamente, de modo demorado e intenso, sentindo-o…

Ariel, impossibilitada de usar seu bom senso, pela irresistível química entre os dois corpos, cedeu, e sabia que era inevitável, um caminho sem volta. Mas era extremamente bom, para ambos. A força de atração entre eles, àquela altura, era a máxima possível entre duas criaturas de sexos opostos. Ele a deitou no pequeno colchão para solteiros, e minou as últimas resistências naturais da mulher, cobrindo-a de beijos ardentes. Naquele ambiente sem a presença da atração gravitacional da Terra, o atrito físico entre suas peles era, biologicamente, delicioso… O corpo dele pedia, e o dela clamava. Não havia mais territórios proibidos, o prazer mútuo desprovido de sentimentos pecaminosos tomou-os de corpo e alma; as quatro mãos trataram de abrir caminho entre eles para que a Natureza se encarregasse do resto… Todos os CD’s do aparelho de som já há muito estavam parados, mas não havia como escolher outros agora.

Condenados, porém realizados e com as consciências estranhamente limpas, estavam deitados, lado a lado, olhando um para a cara do outro. Ariel quebrou o silêncio abençoado:

— Kevin, você sabe o que deve ser feito agora, não?

Ele apenas fez que sim com a cabeça, sem dar-se o trabalho de abrir a boca.

— Não há… como posso dizer… mais motivos para adiar isso. Está bem para você, se eu for pegar agora?

Kevin repetiu o gesto anterior, indiferentemente.

Ariel foi procurar o cianeto de potássio. Ao voltar, resolveu, sem saber porquê, dar uma última olhada na sala de comando. Viu então uma mensagem aterradora no monitor:

PROVÁVEL CAMPO DE SAÍDA DETECTADO A 0.293 ANOS-LUZ.

CONFIABILIDADE: 0.9918

AUTORIZAÇÃO PARA CORRIGIR RUMO PROGRAMADO?

Ariel estava tão chocada que quase derrubou o pote do veneno no chão, o que seria certo se não fosse a falta de gravidade. Ao sentir a possibilidade de voltar para casa, e dar prosseguimento a sua vida, poder se casar com… Era horrível. Sentiu-se a pior pessoa que já havia nascido no mundo; o sentimento de culpa a derrubou, literalmente, colocando-a de joelhos diante do computador que só esperava um simples toque numa tecla para levá-los à salvo para casa. Chorou tudo o que pôde. Estava arrasada. Sua vida já havia terminado…

— Ariel, aconteceu alguma coisa?

— Não, nada. Tome, vamos acabar com isso de uma vez…

— Ei, também não é assim…

— O que você quer dizer?

— Escolha um CD qualquer ali, Ariel. Quero morrer com uma trilha sonora adequada, se você não se importar…

— Está certo… deixa eu ver… ah, eu não conheço essas coisas antiquadas, mas isso aqui parece bem sugestivo… — ligou então o aparelho de som, deitou-se com Kevin e ambos tomaram o cianeto de potássio.

— Me dá uma abraço, Ariel… — foi só o que deu tempo para falar.

Assim, ao som de Suicidal Tendencies, com “How I Will Laugh Tomorrow?”, o jovem casal despedia-se da vida, definitivamente, e com a consciência leve, segura e satisfeita por não ser mais obrigada a encarar as conseqüências de viver uma mentira por toda a eternidade…