Questão de Bom Senso

Desculpa, professora. Não quero parecer prepotente, mas resolvi não fazer o trabalho que a senhora nos pediu. Está certo, não estou precisando de muita nota para passar, mas eu tive outros motivos para não fazer o que a senhora queria; não exatamente o que a senhora queria. Depois de pensar um pouco, resolvi dar um outro enfoque ao meu texto. Talvez a senhora não goste da idéia e prefira me deixar para exame final, mas, desculpa a sinceridade, professora, não estou nem um pouco preocupada quanto a isso.

Pois bem, a senhora selecionou para mim o tema: “Karl Marx disse, certa vez, que ‘a religião é o ópio do povo’. Qual a sua opinião a respeito?”. Bom, para começar, eu nem sabia quem era esse sujeito, e também não conhecia a expressão “ópio”. Então resolvi consultar a Infonet, para tentar fazer um trabalho profissional, como a senhora sempre diz. Claro, depois disso, percebi, realmente, o que a senhora esperava do meu texto. Mas não vai ser isso que ser encontrado aqui.

Devo admitir que nunca havia parado para pensar nesse assunto, a cegueira do fanatismo religioso, e os choques entre os seguidores das diferentes seitas. Contudo, não tinha porquê parar para pensar nisto. Atualmente, convenhamos, as principais religiões do mundo vivem uma fase de tolerância, uma política de ecumenismo foi adotada, e aqueles lamentáveis acontecimentos de sessenta anos atrás, ainda no século XX, foram os últimos relevantes no caso. Eu, professora, sou atéia (na realidade, tenho algumas convicções místicas, mas isto não vem ao caso, agora…), porém, se tivesse alguma religião, não seria ridícula o suficiente para tentar impor meu credo aos outros. É algo tão… pessoal — não sei se é a melhor palavra — que não há o menor sentido em discutir-se a questão do que uma pessoa acredita ou não.

Tudo bem, mas eu não quero me aprofundar muito nesse assunto. Uma outra preocupação surgiu enquanto eu procurava alguns dados para o meu texto. Em primeiro lugar, não entendi, a princípio, porque Karl Marx relacionou a religião com o ópio, para enfatizar sua desavença com os movimentos religiosos. Aí eu me vi obrigada a fazer uma pesquisa mais abrangente do contexto social da época, até o século passado, para compreender a estranha comparação dele. No fim, compreendi… mas fiquei pasma… e revoltada com o nosso mundo, hoje. Não sei como podemos ser tão hipócritas, professora!

A senhora já parou para pensar no papel do “ópio” no mundo, tal como o conhecemos hoje? Eu fiz uma análise da importância social das drogas, e estou enojada. Bem, acho que a senhora me conhece, mais ou menos, e sabe que não sou nenhuma atleta, e fumo minha cannabis light. Quem não fuma? Agora mesmo, enquanto estou narrando isso para o editor de textos do meu micro, estou acendendo um baseado. Mas não uma viciada, e procuro manter distância das drogas mais pesadas, atualmente. A senhora também, pelo que eu percebi, também não usa tanto assim cocaína; pudera, dizem que os professores devem dar o exemplo, não? Aqui na universidade, conheço poucos verdadeiramente dependentes. Mas eu procurei me informar a respeito do assunto, em termos históricos, e fiquei muito decepcionada… conosco.

Antigamente, as drogas eram proibidas, ninguém tinha liberdade de usar nada, ao menos publicamente. Maconha, inclusive! Existiam leis rígidas, que prendiam as pessoas que usassem drogas! Não só os usuários, mas também pessoas com funções interessantes naquelas sociedades: os traficantes, como eram conhecidos. Esses últimos tinham uma função peculiar: comercializar — mesmo contra a lei — as drogas, vender para quem as quisesse usar. E ganhavam muito dinheiro com isso, porque a maioria dos usuários da época se viciava muito facilmente, e eles se aproveitavam da situação para vender suas mercadorias a preços exorbitantes. Só para a senhora ter uma idéia, o que uma pessoa pagava, na época, por uma simples pedrinha de crack dá para comprar quase dez saquinhos hoje em dia, em qualquer banca aí na rua. E quanto à qualidade, aos teores de qualquer droga da época, não existia nenhuma legislação que estabelecesse índices técnicos satisfatórios para o consumidor! Também, sendo ilegal, não havia como…

Não consigo me imaginar vivendo naquela época. Não que eu não conseguisse ficar sem meus baseados; eu, como minhas colegas, fumamos também para manter o peso, embora eu não tenha certeza se isso realmente funciona. Mas é o que a maioria do pessoal faz… Mas voltando ao assunto, algumas poucas drogas eram toleradas. O álcool, a exemplo de hoje, era, largamente, o entorpecente mais difundido, e de maior aceitação social. A diferença é que, na grande maioria dos países, só era permitida a venda de bebidas alcoólicas a maiores de idade. Aliás, uma curiosidade que descobri: a senhora sabia que a Coca-Cola já foi comercializada sem álcool? Naquela época, era isso, basicamente, o que diferenciava um refrigerante de uma cerveja, por exemplo. Hoje, é normal que as crianças bebam cerveja a infância toda e, quando pegam uma certa idade, começam a experimentar refrigerantes. Falo isso porque creio ter o know-how necessário: meu irmão, que fez nove anos no mês passado, começou a beber guaraná… Tudo bem, eu já passei por essa fase.

Voltando ao passado… Como a maconha ainda era ilegal, o que alimentava a indústria de cigarros era uma planta chamada tabaco. O estranho é que o cigarro da época, fazendo uma análise mais técnica, continha substâncias como a nicotina e o alcatrão, e mesmo sendo mais viciante, era enormemente mais difundido que a maconha. Talvez porque fosse o único cigarro que uma pessoa pudesse encontrar para comprar, legalmente. Não tendo outra opção…

Pouco a pouco, movimentos culturais foram forçando a sociedade a aceitar a industrialização da maconha. A senhora se lembra daquele ritmo musical, chamado reggae? Pois é, um dos criadores dele, um tal de Bob Marley, influenciou muito o comportamento das pessoas em termos de aceitação do consumo da maconha. Foi recentemente, acho que no início do século XX… talvez no fim do século XIX… bom, não sei dar a informação precisa (mas a senhora não vai me condenar por isso, vai?).

Mas esse foi um passo decisivo para as mudanças na aceitação social das nossas drogas atuais. As indústrias de cigarro trocaram, pouco a pouco, o tabaco pela maconha. Se eu não me engano, existem comunidades, ainda hoje, que fazem uso do tabaco. Devem ser índios, ou coisa parecida. E o sucesso foi enorme. Para a senhora ter uma idéia da diferença do hábito de fumar hoje e antigamente, basta ter em mente que, enquanto a maconha era ilegal, aproximadamente 30% (!) da população mundial era fumante, ao contrário dos 85% atuais.

Voltando à análise dos traficantes: depois da maconha industrializada, os traficantes de maconha foram abandonados pelo público consumidor. Os motivos, obviamente, eram o preço e a qualidade do produto. Alguns deles tiveram que arrumar outra ocupação, mesmo com a então recente aceitação pública do seu emprego, algo que eles sempre desejaram, acho eu, mas não imaginavam as conseqüências de concorrer com “gigantes” dos baseados, como a Philip-Morris (naquele tempo, esta empresa só fabricava cigarros…). A maioria deles, entretanto, preferiu continuar na ilegalidade, ganhando a vida com a venda de crack, heroína, cocaína, LSD e o Big-E (naquele tempo, ainda era denominada ecstasy), as drogas mais pesadas.

Mas a brecha que a maconha abriu na mentalidade daquela sociedade foi fatal: pouco a pouco, uma a uma, as outras drogas foram sendo legalizadas e industrializadas. Nações mais liberais, como a Holanda, trataram de servir como vanguarda para o nosso mundo livre de hoje, dando exemplo aos países mais conservadores. Havia áreas, verdadeiros parques, para quem quisesse relaxar em público, usando LSD ou outro alucinógeno mais poderoso.

Porém, e hoje? Certo, sei que sou meio suspeita para falar, pois já experimentei de tudo na minha vida. Mas repito: não sou viciada! Só me drogo socialmente, como qualquer um. Naquele coquetel da semana passada aqui na escola, como é que eu não aceitaria um Big-E que me ofereceram? Com que cara eu ficaria? A senhora e a sua companheira, pelo que pude perceber, são mais restritas, ficam só na cocaína não-injetável. Mas essa que é a questão. A senhora, por ser mais velha, pode assumir esse caráter mais conservador, porque, na realidade, ninguém se importa com isso, não? Mas eu, com meus dezenoves anos, tenho uma obrigação social de aceitar tudo o que me oferecem. E começo a ficar com medo disso. Está certo, deve ser horrível para uma pessoa ser obrigada a ficar sóbria 24 horas por dia, mas estou, nesse momento, vendo o mundo onde vivo com outros olhos. Mesmo com esse baseado na minha boca.

A cada ano que passa, ficamos cada vez mais liberais. E eu sei que no seu tempo não era assim! O número de viciados está aumentando consideravelmente, e não sei por quanto tempo mais poderei manter o autocontrole. Eu já tive a infeliz experiência de quebrar uma agulha numa veia da minha perna, há alguns anos atrás, numa “brincadeira” com um ex-namorado… Foi horrível! Como eu já disse, “fases”, compreende, professora?

O que acontece é que eu estou… perplexa, sei lá. Tudo bem, aquele mundo sóbrio era muito chato, lógico, mas alguns costumes daquele povo antigo me chamaram a atenção. Por exemplo, uma instituição chamada “família”, que era algo interessante, mas difícil de explicar, agora, para a senhora. Bom, talvez a senhora tenha uma noção do que seja isso; devo admitir que não consegui entender direito o significado daquilo tudo…

Como a senhora já nos disse certa vez, eu e meus colegas do curso de Jornalismo fazemos parte de uma elite social, não só em termos financeiros, do mundo competitivo e selvagem de hoje. Somos parte de uma parcela privilegiada do povo, porque não convivemos com problemas como fome e desemprego. Sei que, se porventura, um dia pegar Aids ou mesmo Mivas, terei dinheiro para pagar pela cura, algo impossível para tantas pessoas… Pois bem, se o problema — como estou encarando agora — das drogas chega a ameaçar pessoas como eu, imagina só o sofrimento desses miseráveis dependentes, daqui para a frente. Esse nosso mundo está apodrecendo, professora. Estamos aceitando, passivamente, toda essa podridão tomar conta do cotidiano das pessoas. Não sou inocente, claro, não pretendo parar de fumar… talvez diminuir um pouco… se eu conseguisse… Ops, é melhor apagar essa última expressão…

Não. Vou deixar assim mesmo, professora. Acho que isso demonstrará que, como qualquer um, sou uma dependente. Não se assuste com isto. A verdade é que, uns mais, outros menos, todos nós somos. Duvido que qualquer um de nós fique um dia, ao menos, sem usar nada… Não passamos de cadáveres ambulantes, gozando um mundo que não existe! Para mim, falta… coragem… de constatar que, depois de algum tempo, estarei tendo convulsões, como aqueles que são internados para diminuir o uso de qualquer tipo de droga. Ou coragem para examinar meu esôfago, minha laringe, meus pulmões, e descobrir que peguei câncer de novo…

Diabos. Estou me sentindo deprimida, novamente… Nessas horas eu costumava injetar um pouco de heroína e “viajar”… Na realidade, não queria fazer isso, mas… bom, não prometo que vai ser a última, porque, afinal, sou uma pessoa estúpida e fraca! A senhora já reparou nas condições físicas de um atleta? Meu sonho seria ter um corpo daqueles, mas… é muito sacrifício… a vida deles. Eles devem sentir falta… ELES TEM QUE SENTIR FALTA!!! Ai, acho que essa mistura me alterou um pouco…

Entende agora a minha revolta? Compreende porque não poderia fazer o meu trabalho com o tema que a senhora me deu? Karl Marx está desatualizado, professora. O mundo, hoje, é outro. O ópio é a religião do povo.