Deus é Brasileiro

Henrique Barbosa agradeceu a gorjeta da gentil gorda que lhe pediu ajuda para colocar as compras no carro. Voltando ao supermercado, acompanhou-lhe o pensamento de que seria interessante se as gorjetas fossem diretamente proporcionais ao tamanho das pessoas que as dessem, mas logo essa idéia superficial acabou por abandoná-lo. Ao menos, já poderia pagar um sorvete para a Patrícia, a menina que cuidava dos frascos vazios de bebidas, no final do expediente. Esse era um dos inocentes programas que os namorados faziam em Arapoti; ao contrário do que eles haviam feito no dia anterior, algo nada comum para uma típica e pacata cidadezinha do interior paranaense. Ah, se o padre os pegasse…

E a idade fazia com que Henrique sonhasse alto: um dia, com certeza, ele iria trabalhar em Curitiba. Talvez até pudesse ter o seu próprio supermercado! Já tinha reparado que o seu patrão fazia parte daquela parcela mais rica da sociedade; por quê Henrique não poderia ser um dono de supermercado também? Claro, o seu chefe era branco, mas, e daí? O rapaz vivia sonhando, e com certeza, um dia, ele conheceria a Capital… Um dia… Ele tinha que fazê-lo: aos dezesseis anos, já não ajudava mais o pai na lavoura. Achava isso chato demais. Não era como seus irmãos. Mas na verdade o pai nem se importava muito com isso, depois que Henrique começou a trabalhar no supermercado. Era até o “orgulho” da família, o único filho que trabalhava fora, porém ele nunca chegou a falar nisso. Não nesses termos.

Depois do sorvete, o jovem casal passeava tranqüilamente, a caminho da casa dela. Porém, desta vez, era só para deixá-la em casa! Seus pais estavam lá, ela já tinha prevenido-o…

— Vou voltar a estudar, Henrique…

— Você já me falou… À noite, né?

— Pois é. Mas vou ter que sair uma hora mais cedo lá do serviço, por causa do horário da escola. Não vou poder ficar mais com você, depois do trabalho…

— Eu já desconfiava… Sabe, não sei se vou agüentar, talvez tenha que arranjar uma outra…

— Ah, bobão! Tem o fim-de-semana livre, né?

— Mas eu gosto mesmo de ficar com você, todo dia, guria… Bom, enquanto você ainda está livre… Venha aqui…

Após o tradicional beijo de boa-noite, Henrique pôs-se a caminho de casa. E notou que estava sendo seguido, porém disfarçou e fingiu que não era com ele. Mas achou estranho, claro: conhecia quase todos os habitantes de sua pequena cidade, e não se lembrava de algum dia ter visto aquele moço loiro perambulando por ali.

Ao dar uma volta desnecessária em torno do outro quarteirão, averiguou que realmente aquele sujeito estava atrás dele, embora mantendo uma respeitosa distância, procurando não ser notado. O que começava a preocupar Henrique era o fato de que se tratava de uma situação inusitada: ele não tinha inimigos na cidade, muito pelo contrário. Não seria um ladrãozinho qualquer, pois era mais velho e muito bem arrumado. Nem seqüestrador, ao que parecia. Mesmo se o fosse, Henrique sabia que ele nunca seria um alvo para esses tipos de bandidos; não tinha dinheiro o bastante para se preocupar com isso. Na verdade seu rosto era o que mais chamava a atenção, parecendo-se com uma dessas pessoas fictícias das novelas da televisão. Definitivamente, o misterioso homem não pertencia àquele lugar. O que ele estaria querendo fazer, agindo assim? Henrique não sentia medo, apenas estranhava tudo aquilo. Pegou o verdadeiro caminho para casa, e já pensava em esquecer da existência do estranho…

— Henrique!

Aquilo o congelou. Fê-lo parar de andar. Automaticamente, seu cérebro tentava encontrar a lógica daquilo tudo, para responder a espontânea pergunta que florescia involuntariamente no seu íntimo: O que é isso, como é que ele me conhece? O garoto não era uma dessas pessoas famosas, daquelas que todos sabem o nome (quando não a vida particular). Claro que era de uma cidade pequena, onde todas as pessoas reconhecem-se umas às outras sem maiores dificuldades, mas Henrique sabia que poucos o tratavam pelo seu nome. A maioria do povo o conhecia por “o mais velho do Barbosa”…

— Você é o Henrique, não?

— Ah… Sim, senhor… — o garoto fitava os olhos azuis do estranho cidadão. Poucos naquele lugar tinham olhos azuis.

— Muito prazer, Henrique. Meu nome é Gabriel. Como anda você?

Henrique apertou a mão do moço. Era estranho, mas o desconhecido lhe transmitia muita confiança e sinceridade, através de suas palavras e gestos muito bem calculados. Nunca tinha visto alguém assim antes. De modo que, ao ver-se na praça da igreja da cidade com o seu novo amigo Gabriel, não sentiu-se nem um pouco surpreso ou desconfiado, como haveria de estar, numa situação similar normal. Mas aquela experiência em breve se revelaria muito além do normal…

Conversavam, sentados num dos três bancos da praça. O do meio estava vazio, enquanto o da outra extremidade estava ocupado por dois aposentados, discutindo a política agrária do governo federal e fumando fétidos cachimbos.

— Na verdade, meu único motivo de ter vindo até esta cidade era justamente poder conversar com você.

— Mas… da onde você me conhece, cara?

— Um amigo seu me falou a teu respeito, Henrique. Aliás, um grande amigo seu…

O garoto nem imaginava de quem ele poderia estar falando. Estava um tanto hipnotizado, escutando aquelas palavras certinhas, sem sotaque, num português muito fluente de Gabriel.

Gabriel continuava sua conversa naquele misterioso tom superficial, não mostrando qual era seu verdadeiro propósito. Até notar que Henrique começou a responder apenas alguns “arrãns”, boquiaberto e sem demonstrar emoção alguma. Ao perceber isso, sorriu, parou com aquela conversa que não iria levar a lugar algum e fez a primeira investida, crua:

— O Senhor já acordou?

— Quê?

Não, ainda não havia sido acordado. Isso esfriou um pouco os ânimos de Gabriel, mas não chegou a desapontá-lo. Pensou, em voz alta: então vou ter que despertá-Lo, mesmo!

Pela primeira vez, Henrique sentiu um princípio de medo, mas novamente todas as suas emoções cessaram, quando Gabriel levantou-se e tomou a sua mão. Aí, a vida de Henrique sofreria uma pausa para que o mais fantástico acontecimento do Universo pudesse ser realizado.

O garoto deixou de ouvir. Nada mais fazia barulho naquele local. Aliás, em pouco tempo ele não podia mais ter certeza se realmente ainda se encontrava no mesmo local, pois uma brancura serena, mas imponente, foi tomando conta do lugar, lentamente, começando pelos pontos mais distantes, e finalmente envolvendo tudo. A única visão de Henrique era de Gabriel, sorridente, com uma satisfação evidente de algo que o garoto ainda não podia compreender, mas com os olhos tão brancos como o brilhante fundo ao seu redor. As roupas de Gabriel tornaram-se brancas também, e todo aquele brilho fê-lo fechar os olhos, instintivamente.

Seus instintos animais, primatas, começaram a ser desligados, um a um. Não sentia mais medo, pois isso, agora, era completamente impossível. Algo frio tocou sua nuca, e percebeu que seu corpo não obedecia mais seus comandos. Sentiu seu corpo desmanchando-se, mas as sensações térmicas e táteis também desapareceram, impedindo-o de continuar sentindo isso. Sentir, fisicamente, perdia significado. Sabia que estava sendo alvo de uma descarga energética colossal, ganhava energia a uma velocidade assustadora. E assustador também era perceber que conhecimentos que o garoto nunca teve pareciam-lhe claros, evidentes, agora. O “assustador” tornou-se, quase que instantaneamente, “interessante”. Tudo aquilo o interessava, como se fosse um simples observador, e não a engrenagem primordial de toda a estrutura que vinha permitindo a estabilidade da eterna existência do Universo.

Um mínimo de uma parcela de toda aquela energia foi o suficiente para que todas as moléculas que constituíam seu corpo material desagregassem. Seus átomos tornaram-se independentes uns dos outros, e, como se tomassem conhecimento disso, não hesitaram em seguir caminhos distintos e fugir dali. Mas não houve tempo para isso. O acréscimo de energia seguinte recebida por Henrique fez com que os elétrons dos átomos tornassem-se independentes de seus núcleos, esvaziando a eletrosfera dos breves cátions. Enquanto houve núcleos, pois prótons e nêutrons eram desagregados, tornando-se livres também. E toda aquela massa desordenada de partículas fundamentais da Matéria foram aniquiladas. A Matéria era extinta, liberando mais energia, numa reação em cadeia de proporções nunca antes observadas no Universo.

E a partir desse momento, quando a geração de energia se tornou auto-suficiente, a partir da aniquilação da Matéria, a verdade veio à tona. A consciência daquele ser percebeu o que realmente ocorria, e o primeiro sentimento, desta vez de uma criatura celestial, foi de espanto.

— Eu… sou Deus! — “falou”, em “voz” alta.

Estava ligeiramente enganado, por enquanto. O fato era que Henrique ia perdendo sua consciência, aos poucos, enquanto Deus ia tomando o vácuo daquela existência. Gradativamente, o ser humano tornar-se-ia Deus. Gabriel sabia disso, mas não se preocupou muito com as possíveis conseqüências e riscos dessa condição, pois esse misto de homem-Deus não iria durar muito. No final, apenas Deus existiria.

— Não compreendo. Como posso ser Deus, Gabriel? Toda a minha vida… As coisas erradas que fiz… Agora consigo ver! Parabéns, bom trabalho, como sempre, arcanjo Gabriel… Eu e a Patrícia, ontem… Errado… Não… O Tempo… Sou apenas… Mas sou negro, como posso… Não há porque se preocupar, isso logo vai acabar, Gabriel… Pai… Curitiba… Estou confuso… Estão todos lá… Posso vê-Lo agora… Sim…

Deus tomou consciência que estava de frente para o mundo, o planeta se agigantava diante de seus “olhos”. Permitiu-se então ouvir o murmúrio de suas criaturas, lá embaixo. O silêncio foi quebrado; quase deu um passo para trás, se isso fosse possível…

Ouviu milhões de pessoas chamando Seu nome, orando para Ele, ao mesmo tempo. Simultaneamente, foi capaz de escutar o grito surdo dos moribundos, o lamentar das viúvas das guerras, o desespero de inocentes morrendo por inanição, o choro dos inconsoláveis. Havia muitos pedidos e clemências, os mais variados possíveis, mas era possível prestar atenção em cada um deles, claramente. Eram milhões de vozes. Poucas de louvor, e muitas de desespero. Entre os incontáveis murmúrios da Terra, podia entender bem a oração da moça argentina, rezando pelo namorado viciado em maconha e heroína; a interjeição quase involuntária do grego — Meu Deus! — ao ver seu filho quebrado dentro do automóvel acidentado; o mexicano pedindo chuva para sua horta; o espanhol, querendo ver seu time campeão; o russo, apontando uma pistola para a própria cabeça; a japonesa, indagando o sentido da vida; o turco, esfaqueando, a contragosto, um antigo colega de escola… Deus voltava a ouví-los, como antigamente. Mas ainda estava se acostumando com isso.

Cada um deles pensava em seus próprios deuses, e mesmo alguns não tinham nenhum, mas involuntariamente estavam se comunicando com aquela força misteriosa e mística do interior de cada ser humano. O alvo era sempre o mesmo, tudo aquilo chegava até Ele, e Deus notou que a Fé humana poderia ser mais introspectiva do que se pensava…

Rapidamente, sentiu a necessidade de ampliar os horizontes, como um cosmopolita em escala universal, e expandiu seus “ouvidos” por todos os “cantos” do Universo (paradoxalmente curvo), para voltar a dar atenção a cada criatura inteligente dos inumeráveis planetas habitados de todas as incontáveis galáxias providencialmente espalhadas pelo Cosmo.

Todo esse mar de vozes na mente Dele, subitamente, dobraram em tamanho, quando Deus passou a dar atenção para toda a Anti-Matéria existente, um novo universo, perfeitamente previsível por qualquer ser humano com um pouco de bom senso, embora nunca constatado, naturalmente, por qualquer ser material. Não poderia haver equilíbrio algum no Universo se esse outro lado não existisse; mas, de tão óbvio, alguns cientistas na Terra pareciam cegos, não aceitando o fato de um universo paralelo ser fundamental para que o Universo não voltasse ao Caos original.

Finalmente, depois de conseguir compreender todas aquelas centenas de trilhões de vozes clamando por Ele, fez esse número aumentar de forma inimaginável. Passava não só a escutar as criaturas do Presente, mas do Passado e, logo depois, do Futuro também. Ser onisciente, onipotente e onipresente não exigia tanto assim de Deus, como qualquer primitiva inteligência poderia supor. O mecanismo para essa esses “passeios” no Tempo exigia unicamente a compreensão do que era, realmente, o Tempo.

Na Terra, depois de toda uma lenta evolução de milhões de anos para que o Homem chegasse ao estado atual (um piscar de olhos para o verdadeiro Tempo), adotou-se uma forma simplória de estudar a passagem dos acontecimentos, dos eventos naturais. Foi criada uma unidade chamada “segundo”, de duração precisa e imutável, de modo que o tempo (bem diferente do Tempo) fosse levado apenas numa direção. Para os humanos, existe apenas um eixo orientado para um Futuro e de costas ao Passado. E, em termos de Matéria, é mais que o suficiente. Mas isso não é tudo, em termos do Tempo como um todo.

No eixo do tempo, há um “zero” referencial, e é perfeitamente compreensível que não se localize exatamente no “ano zero”, uma convenção das pessoas para poder dividir a História em A.C. ou D.C.. Aliás, também é errada a denominação História, forma pretensiosa de chamar a história material. Mas esta não é a questão no momento, e sim o “zero”.

Nele, corta o eixo do tempo um segundo eixo, perfeitamente perpendicular. Como nunca foi estudado por mentes humanas enquanto materiais, não há uma denominação precisa para ele, sendo mais conhecido, informalmente, como o “tempo-2”. Deste modo, torna-se necessário rebatizar o tempo material como “tempo-1”. E assim, o eixo dos tempos abre-se num plano geométrico.

Porém leis básicas do Universo estabelecem as regras do jogo: a Matéria seguirá pelo eixo do “tempo-1”, enquanto o “tempo-2” é reservado para o Além-Matéria, ou, como preferirem, Espírito. Nenhuma criatura pertencente à Matéria pode deslocar-se paralelamente ao segundo eixo do Tempo. Já os espíritos, anjos e outras “criaturas superiores” subordinadas a Deus podem mover-se ao seu bel-prazer pelo “tempo-1”, avançando ou retrocedendo de maneira livre, projetando sua posição temporal no eixo primitivo, porém sem nunca deixar de avançar paralelamente pelo eixo do “tempo-2”.

Assim, todas as criaturas que alguma vez já estiveram vivas, fisicamente falando, encontram-se agora nessa nova perspectiva existencial, vagando pelo Passado e Futuro da Terra e outros mundos, mas presos ao seu destino de avançar em seu próprio eixo. A evolução não termina, mesmo depois da morte.

Para todas as inteligências do Universo (numeráveis, contudo inimagináveis), esse é o Tempo, governando seus destinos. Um plano bi-dimensional com regras que não podem ser quebradas. Para todas as inteligências do Universo… menos duas.

Para essas duas, especiais, o Tempo ainda reserva mais algumas vantagens exclusivas. Do “zero” do Tempo, nasce ainda um terceiro eixo, simultaneamente perpendicular aos dois anteriores, apontando para uma direção desconhecida para todas as inteligências do Universo… todas.

Deus é uma dessas duas formas de vida privilegiadas. Desloca-se como quer pelos eixos do “tempo-1” e “tempo-2”, algo simplesmente incrível para as infinito menos duas criaturas existentes. Não pode, contudo, deixar de avançar para seu próprio destino, caminhando pelo “tempo-3”.

“Eu sou o começo e fim de todas as coisas” — realmente era verdade, observando da perspectiva do Plano Temporal. Mas, como até os humanos conseguiram entender, não há verdades absolutas. Deus podia enxergar que o Tempo não era simplesmente um plano, mas sim um espaço geométrico. A partir do momento que se deu conta do real formato do Tempo, Deus entrou em crise existencial.

Percebeu também que a outra inteligência privilegiada pelo Tempo, aquela que mais nomes tem, dados por todos os povos espalhados pelas galáxias, estava presente também no seu eixo temporal que, até então, pensou ser exclusividade Sua. Contudo, ainda obedecendo as rígidas Leis Universais, o Tempo fazia com que cada um deles tomasse um caminho diferente.

Deus avançava, e nada podia fazer para evitar isso, mesmo que quisesse, para a orientação positiva do “tempo-3”. Enquanto isso, o Outro avançava com a mesma “velocidade”, porém em sentido oposto, para a orientação negativa deste eixo.

Todo aquele escalão de “criaturas-assessoras” de Deus também não era exclusividade Sua. O Outro também organizava seus asseclas para seus próprios fins. Estes últimos, conhecidos como “criaturas inferiores”, estão presos ao eixo do “tempo-2”, contando com os mesmos recursos especiais de deslocamento temporal que seus “colegas” de Deus. A única diferença é que a evolução, para eles, não é “subir”, e sim “descer”, correndo para a orientação negativa do “tempo-2”.

Criaturas inferiores e superiores, Deus e o Outro. Lá estavam eles, com o único propósito de administrar a Matéria e a Anti-Matéria. Essas correm, humildemente, apenas pelo “tempo-1”, nas orientações positiva e negativa, respectivamente. Com raríssimas exceções, em situações especiais, minúsculos deslocamentos perpendiculares podem ocorrer. Em termos humanos, a Teoria da Relatividade procura explicar esses fenômenos curiosos, afirmando que a duração de um intervalo de tempo depende do referencial do observador. Einstein conseguiu simplificar alguns recursos especiais do Tempo (imutável, independente de referenciais), descrevendo comportamentos da Natureza para a pobre ciência humana. O seu modo de explicar, escalarmente, o comportamento de um Tempo vetorial, foi um malabarismo muito bem tramado (e válido, com algumas restrições fora do conhecimento humano). Seus esforços foram louváveis, com certeza, pois mantiveram a lógica do conhecimento humano até onde conseguiu chegar. Porém, evidentemente, um mínimo de toda a complexidade que envolve a Natureza enlouqueceria qualquer homem que tentasse vôos mais ousados nesse terreno desconhecido. A Inteligência é uma dádiva de Deus para seus filhos, porém a diferença entre Deus e Einstein, nesse aspecto, é muitas vezes maior que a de Einstein e Newton.

E a evolução nunca pára. Deus, impossibilitado de poder “conversar” com o Outro, unicamente pelo motivo de que Eles não podiam ocupar nunca o mesmo Ponto no Espaço Temporal, estava, na realidade, só. Evidentemente, era possível que os dois projetassem suas posições no mesmo ponto do plano perpendicular ao terceiro eixo, situação inútil, ainda, para que Eles pudessem se encontrar. À medida que iam evoluindo, se desenvolvendo, aprendendo conceitos do Universo que os homens e anjos nunca poderiam desconfiar, desenrolando a complexidade das forças que Os regiam, Deus e o Outro nunca chegavam a uma resposta final; sempre novas questões surgiam, naturalmente. E não havia para quem apelar, quem pudesse Os ajudar. Tudo o que aprendiam e descobriam, era por mérito próprio. Não havia quem os ensinasse alguma coisa. Talvez uma “conversa” entre eles, não fosse a impossibilidade do fato, esclarecesse algumas novas e insolúveis dúvidas; mas uma resposta final, ambos agora estavam cientes disso, era algo completamente fora de cogitação.

Cada vez mais poderoso, mais inteligente, seguindo a Sua própria evolução rumo a um destino que Ele ignorava, Deus suspeitou que Ele próprio poderia estar sendo manipulado, como todas as suas criaturas o eram, por misteriosas e invisíveis forças do Universo. Não só a respeito do Seu futuro; Sua própria origem era de um mistério insolúvel. Deus sabia que, entre passar a existir e passar a ser consciente, muito tempo fora decorrido. Era uma criança celestial, reconhecendo tudo ao seu redor, em meio ao mais completo Caos. Até o momento que, já com uma certa inteligência desenvolvida (adquirida?), sentiu a necessidade de pegar o máximo que conseguisse do Caos e criar o Universo. E a partir daí, crescendo, aprendendo, evoluindo, uma inquietação, imperceptível outrora, foi tomando conta da mente Dele, até tomar uma proporção que não permitia mais que Ele fingisse não existir. Foi fatal: Deus entrou em crise existencial!

Depois de muito meditar a respeito, tirou uma folga, durante alguns anos (falando em termos de “tempo-1”) e tentou descansar. E, agora, lá estava Ele de novo, consciente e ouvindo o murmurar de todas as inteligências do Universo… menos duas.

Todo esse processo era quase “ensurdecedor” para Deus, mas para Gabriel, nenhuma daquelas vozes estava sendo percebida (a partir de então). Houve um silêncio prolongado, algo que não era costume de Deus, Gabriel o sabia. Perguntou:

— Tudo bem, Senhor? Algo errado?

— Tudo em ordem, Gabriel. Tudo em ordem. Eu voltei.

— Seja bem-vindo, Mestre.

— Obrigado.

Após outro intervalo silencioso, mais curto desta vez, Deus, depois de certificar-se que não sobrara nenhum resquício de Henrique em si mesmo, questionou:

— Como foi ouvir todas essas criaturas, Gabriel? Tomar conta de cada anseio delas?

— Realmente, Senhor, devo confessar-lhe que o nosso trabalho por aqui aumentou muito. Cada um de nós teve o serviço mais que triplicado, mas creio que agimos conforme os planos, enquanto o Senhor estava… quero dizer…

— Enquanto eu estava de férias, você quis dizer?

— Perdão, Senhor. Muita petulância de minha parte.

— Tudo bem, Gabriel. Na verdade, era isso mesmo.

Gabriel “sorriu” ao perceber que Ele estava sendo sincero (como sempre). Sabia que desagradá-Lo era muito perigoso, lembrou-se de alguns companheiros expulsos do “Céu”. Mas suas preocupações logo cessaram, pois o Primeiro Arcanjo sabia que Deus estava satisfeito com ele, e o próprio Gabriel também estava satisfeito por ter conseguido esse cobiçado posto celestial, algo que exigia muita dedicação na sua formação de anjo.

— Por favor, me acompanhe, Gabriel.

— Sim, Senhor.

Os dois foram para um dos melhores observatórios do “Céu”; como passatempo, enquanto dialogavam, viam a dança de milhares de galáxias pelo Cosmo, com trajetórias muito belas (e bem definidas), trafegando, deixando poeira estelar para trás, rumo a um colossal abismo em forma de buraco negro (uma estrutura espacial tão exageradamente grande que nunca poderia ser detectada por observadores nas galáxias envolvidas no fenômeno…). Esse era um dos mais banais acontecimentos físicos, mas ambos estavam admirando toda aquela beleza, como há muito não faziam, uma visão que emudeceria qualquer poeta da Terra.

— Gostei. Gostei mesmo. Não era o que eu estava esperando. Bom, na verdade eu nem sabia o que poderia esperar disso tudo. Mas foi proveitoso, digamos assim.

— Certamente o Mestre tinha algum objetivo em mente, não?

— Sim. Tudo bem, não vejo porque não lhe confessar, Gabriel. Eu sabia que vocês poderiam “dar conta do recado”, como Henrique diria, se eu me afastasse um pouco. E eu precisava descansar. Sabe, me desligar um pouco, porque ultimamente uma paranóia vinha tomando conta de mim. Algumas preocupações que, agora vejo, não têm porquê existir.

— Que bom que o Senhor está melhor…

— Estou. Olha, vou recomendar isso a vocês também. É um ótimo exercício de relaxamento, descer à Terra ou qualquer mundo e deixar de se preocupar com esses nossos grandes problemas da Administração. Como humano, por exemplo, você leva uma vida bem tranqüila, embora muito primitiva… Mas você consegue ser feliz, compreende, Gabriel?

— Como o Senhor sempre diz, “o mais importante”.

— Exato. Na Terra, como eu ia dizendo, você pode se aproveitar da simplicidade do modo como eles vivem. Claro que eles não são perfeitos; há muito ainda para aprenderem, e não tenho certeza se eles chegarão lá…

— Há mundos piores…

— Sim, claro, a Terra ainda tem boa chances… Mas foi decepcionante, Gabriel, quando meu Filho desceu àquele mundo, no seu trabalho de rotina, e tudo aquilo aconteceu…

— Estou lembrado… Por enquanto, apenas lá as pessoas chegaram a perseguir e assassinar o Filho de Deus… Olha, Senhor, não quero ser o “advogado do diabo”, mas… convenhamos… eles eram muito primitivos, não concorda?

— Talvez. Ah, mas eles estavam precisando… Veja bem, você deve analisar também que essa noção de “Bem” e “Mal” que introduzimos lá, de certo modo, ajudou um pouco a orientar a evolução deles.

— Se tudo fosse tão simples assim, como naquela Bíblia… Bem… Mal… Uma estrutura tão… simples…

— O suficiente, para os humanos. Não precisam compreender mais que isso. Aliás, duvido que tivessem capacidade. Mas eu estava falando a respeito da minha decepção… Gabriel, mesmo com essa ingenuidade de “Bem” e “Mal”, eles conseguiram distorcer tudo, com o passar dos séculos… Veja essas religiões, guerras santas, rituais, seitas… Os mais espertos, entre eles, aproveitam-se da massa ignorante, em meu nome! Às vezes, sinto que não agi do melhor modo…

— Absolutamente, Senhor. Pesando prós e contras, a raça humana, na minha humilde opinião, ainda conta com boas chances de passar para o próximo estágio. O Senhor fez, sim, um ótimo trabalho!

— Obrigado… Olha, já que você está tão compreensivo, sinto-me no dever de confessar-lhe mais um detalhe dessa aventura: eu fiz um teste com eles. E eles foram aprovados.

— Ahn…

— Compreende o que quero dizer?

— O Senhor diz… aquela experiência com o Henrique?

— Sim. Mais precisamente, a transmutação final, quando eu voltei à Consciência. Aquele breve misto de homem-Deus…

— Claro! Entendi! É, eu fiquei um pouco preocupado quando aconteceu: a fraqueza do humano poderia ter… quer dizer…

— É isso mesmo, Gabriel. Poderia ter acabado com tudo. Matéria, Anti-Matéria… tudo retornaria ao Caos. Ele tinha condições, se quisesse. Eu dei essa liberdade…

— Mas eu pensei que o Senhor, afinal, sempre estivesse no controle da situação…

— Quase sempre estive. Mas houve um momento que ele poderia, se assim desejasse, por suas ambições primitivas, ter tomado o meu lugar, e se isso ocorresse… Seria desastroso, certamente.

— Uma forma humana regendo a todos nós… estou pasmo!

— Contudo, no último instante, estivemos conscientes da existência mútua um do outro. Tínhamos as mesmas forças, por um brevíssimo intervalo de tempo. Confesso que fiquei um pouco receoso, cheguei a imaginar ele querendo acabar comigo… Mas no último instante, ele confiou em mim, e se entregou. Permitiu que eu retornasse, e foi extinto.

— Agora vejo que o risco foi enorme, Mestre. O Senhor se expôs…

— É mais difícil do que parece para você compreender o que tudo isso representou para mim, na realidade, mas creio que você entendeu, mais ou menos, de forma… resumida…

— Não ouso querer entender como o Senhor…

— Tudo bem. Está tudo certo agora. Henrique passou no teste… A humanidade passou no teste, e isso tem um significado todo especial para mim. Infelizmente, apenas eu posso compreender… Ou melhor, apenas eu e Ele, se é que você me entende…

— Perfeitamente.

— Mas deixemos essa discussão. Outra missão cumprida… E ainda sobrou muito o que fazer, não?

— Com certeza, Senhor. E, ao Seu lado, ser menos difícil, felizmente.

— Agora quero ter uma conversa com o Conselho, para começar…

Gabriel hesitou um pouco, mas acabou interrompendo, antes que Deus se fosse…

— Senhor!

— Pois não, Gabriel?

— Só por curiosidade… quanto ao Henrique…

— Ah, não se preocupe com ele. A encarnação terráquea foi um ato exclusivamente meu, mas sabe como é a Natureza… Enquanto eu “dormia” naquele ser, Henrique gerou a sua própria alma, independente…

— Quer dizer… Ele está lá, então? São e salvo?

— Tranqüilamente. O garoto tem futuro… Seu próprio destino. Nada mais justo que permitir que ele continue vivendo. Concorda?

— Certamente. Obrigado, Senhor.

— Obrigado a vocês todos, Gabriel, por suportarem o trabalho sem a minha presença nesse meio tempo… Estou muito satisfeito!

Enquanto “caminhava” para o Conselho, Deus meditou a respeito da última pergunta de Gabriel. “O garoto tem futuro…” — era natural, afinal, deixar-se levar pela Natureza, para um destino desconhecido… No fim, Ele sabia que todas as suas criaturas mereciam o destino que alcançavam… E por quê seria diferente com Ele? Aceitar, passivamente, cegamente, o desconhecido, não poderia ser tão mal assim… Não havia motivos concretos para a Sua neurose iminente. Lembrou-se daquele notável humano, Pascal, que ficou neurótico tentando provar cientificamente a existência do Criador para os outros homens; um dia, inevitavelmente, eles acabaram se conhecendo, apesar de já ser tarde demais para os planos do humano… Deus estava, guardando as devidas diferenças de proporções, no mesmo caminho de Pascal, nos seus últimos anos como terráqueo… Conscientizou-se disso, e pôs-se a aproveitar a Sua vida… tendo como contra-exemplo um reles ser humano, que ficou louco… Não, certamente uma Loucura Celestial seria fatal para o Universo… Felizmente, sua crise acabou.

— Pois é. Mas vou ter que sair uma hora mais cedo lá do serviço, por causa do horário da escola. Não vou poder ficar mais com você, depois do trabalho…

— Eu já desconfiava… Sabe, não sei se vou agüentar, talvez tenha que arranjar uma outra…

— Ah, bobão! Tem o fim-de-semana livre, né?

— Mas eu gosto mesmo de ficar com você, todo dia, guria… Bom, enquanto você ainda está livre… Venha aqui…

Após o tradicional beijo de boa-noite, Henrique pôs-se a caminho de casa. Era muita sorte ter uma garota tão doce quanto Patrícia… Alguém que o fazia dormir com um sorriso estampado no rosto, ajudando-o a levar o seu atarefado dia-a-dia com uma disposição que entusiasmava qualquer pessoa que convivesse com “o mais velho do Barbosa”…

Não sendo ouvida por ninguém, lá fora, no Caos, a Mente Suprema do quarto eixo do Tempo suspirou, aliviada.