Gênesis (parte 1/2)

There’s another side of heaven

This way – to technical paradise

Find it on the other side

When the walls fall down

(Butler / Dio / Iommi – Black Sabbath’s “Computer God”)

Para quebrar toda aquela monotonia de incontáveis séculos, um risco quilométrico varreu o espaço, invadindo o sistema solar. A perturbação, de forma alguma um fenômeno natural, a princípio se resumia num microscópico ponto cintilante, à velocidade comparável à da luz, deixando atrás de si um rastro de um branco brilhante, de espessura quase tão desprezível como o seu ponto gerador, mas de extensão de várias centenas de quilômetros.

Ultrapassando Plutão, começou, visivelmente, a perder velocidade. Houve uma grande freada após sua trajetória praticamente tangenciar a atmosfera de Saturno. Surgiu então, ao redor da cabeça do alfinete espacial, uma série de luzes azuis-esverdeadas, que mais se pareciam com descargas elétricas. De fato, olhando-se mais atentamente o objeto invasor, podia-se perceber alguns raios, mas a coloração daquilo deixava a hipótese de pura eletricidade muito pouco provável. E continuou a perder velocidade, à medida que os raios aumentavam sua área de atuação, rumo a Júpiter.

Como no planeta anterior, novamente o objeto dirigiu-se de modo a sofrer uma nova grande freada, aproveitando-se da colossal atração gravitacional próxima à superfície do Gigante. Isso foi o suficiente para que a velocidade caísse a um valor já não comparável à velocidade da luz; os raios azuis ao redor do ponto cintilante começaram a se comportar como se houvesse uma instabilidade muito grande, expandindo-se de maneira abrupta e um tanto desordenada. Uma esfera vermelha semitransparente de vários quilômetros de diâmetro, cujo centro era o ponto, apareceu do nada, retendo a maioria dos raios azuis. O invasor continuava rumando para o Sol, e colocou-se definitivamente no plano (praticamente um plano) orbital dos planetas. O interior daquela bola, já podendo se confundir com um simples cometa, foi ficando cada vez mais branco… e explodiu, como uma pequena supernova em termos de luminosidade, guardadas as devidas proporções que tal comparação deva merecer.

Após alguns segundos, atrás da pouca luminosidade que ainda não havia desaparecido, surgia, imponente, um objeto, metálico, de formas perfeitamente geométricas e dimensões gigantescas, levemente esverdeado. Com aquela visão, era impossível formular qualquer outra alternativa, senão a mais óbvia constatação: era uma nave espacial, vinda do espaço exterior.

Grande parte do seu corpo constituía-se de um retângulo, com alguns quilômetros de altura, dezenas de quilômetros de largura e várias centenas de quilômetros de comprimento. Na frente, perfeitamente unido à parte anterior, uma semicircunferência de espessura igual à altura do resto da nave, com um diâmetro exatamente igual à largura dela. Por todo o corpo da nave, várias faixas de quatro linhas eqüidistantes faziam desenhos esquisitos na sua superfície. No mais, o único detalhe observável era uma figura na face superior da nave, constituída de quatro triângulos equiláteros, um dentro do outro. Era como a gigantesca cabeça de uma seta, apontando em direção contrária ao destino da nave. Na parte traseira, não se via nenhum detalhe que servisse para apontar um suposto meio propulsor da nave. A cor da face traseira era exatamente igual ao resto do corpo; talvez os motores estivessem desligados.

Dentro da nave, a hibernação chegara ao seu estágio final. Eles estavam acordando…

AVISO AO LEITOR: O texto aborda civilizações extraterrestres. Para seres inteligentes de outros planetas, o mínimo de sensatez a se esperar de uma pessoa (humana) observando-os, é que ela não alimente falsas esperanças de encontrar traços comuns físico-culturais entre criaturas inteligentes humanas e não-humanas. Para ser mais claro, é enormemente gigantesca a possibilidade destes traços serem os mais distintos possíveis. A experiência de um ser humano observando, à paisana, a conversa entre dois alienígenas de uma raça qualquer (se é que existe, entre eles, o conceito de conversa) seria algo, no mínimo, completamente incompreensível para o pobre homem. Fazendo uma analogia grosseira, seria muitas vezes mais estranho que um caipira brasileiro semi-analfabeto tentando compreender uma palestra entre cientistas russos…

Para driblar esse problema, e para tornar a leitura e compreensão da história mais acessíveis, todos os diálogos envolvendo os extraterrestres foram vulgarmente convertidos em linguagem e linha de raciocínio humanas. Talvez isso sacrifique, por outro lado, um pouco do conteúdo das informações trocadas por estas outras inteligências vindas das profundezas do espaço interestelar (lembre-se da analogia já mencionada); assim mesmo, pesando prós e contras, resolvi adotar esta medida.

Ou seja, assim estarão perfeitamente justificados fatores como, por exemplo, as unidades alienígenas serem postas no Sistema Internacional de Unidades (SI), ou as reações psicológicas dos ET’s serem tais a lembrarem meros seres humanos…

Apesar da existência desse filtro para você, leitor humano, vale a pena ressaltar que mesmo as coisas mais estranhas e sem sentido que você talvez encontre no decorrer da história serão, de qualquer modo, a maneira mais simples de se abordar uma realidade maior e completamente além da compreensão humana. Portanto, não desanime; não é só você…

Ycobile-ee-to prestava seus relatórios ao comandante-geral da 114798ª nave oficial de expedição do Império Galáctico, Yhujenana-ee-to. Este mostrou-se um tanto desanimado, a princípio:

— Quer dizer, afinal de contas, que foi pura perda de tempo, meu caro Ycobile-ee-to?

— Não exatamente, Senhor. — o chefe da equipe de exopalenteologistas aparentava uma intrigante calma — De fato, a princípio, ficou comprovado a existência de vida, primitiva, apenas no terceiro planeta, em ordem de afastamento da estrela, e sem sobra de dúvida, nenhum traço de inteligência. No quarto planeta, e em alguns dos maiores satélites do quinto, encontramos apenas evidências de vidas extintas…

— “Há um período ainda em avaliação de precisão”… Por favor, vamos aos fatos que não estão ainda relatados, Ycobile-ee-to! Caramba…

— Perdão, Senhor. Bem, para resumir, a equipe concluiu que há fortes motivos para se acreditar na existência de inteligência no único satélite do terceiro planeta…

— Por favor, meu amigo! O que você quer dizer com isso? Vida naquele satélite? Até eu, que não sou um especialista como vocês…

— Nada disso, Senhor! — o cientista percebeu então o ar de desagrado de Yhujenana-ee-to, que detestava ser interrompido — Desculpa interrompê-lo, mas eu quis dizer inteligência… não vida!

— Hmm… continue.

— Uma nave de reconhecimento partiu, há uns dez minutos, para um levantamento preliminar. Autorizei meu assistente particular, Ycosave-ee-ta, a chefiar a equipe enviada lá. Ele deve manter contato conosco dentro de mais uma hora, mais ou menos. O objetivo principal deles ser comprovar a existência de um ser provido de inteligência e, simultaneamente, sem qualquer atividade biológica.

— Fascinante. Você, particularmente, acredita nisso, Ycobile-ee-to?

— Francamente, Senhor, pela minha experiência profissional, nada mais me surpreende nessa galáxia! Nada mesmo…

Yhujenana-ee-to sorriu, satisfeito. Era a resposta que ele queria ouvir…

O Cérebro percebeu, tão imediatamente quanto as distâncias interplanetárias permitiam, a invasão do sistema solar. Passou então a, silenciosamente, observar cada movimento do objeto vindo em direção ao centro do sistema. Após pouco tempo, pôde concluir, entusiasmado, que realmente tratava-se de uma nave alienígena. Porém um pouco mais de tempo foi necessário para se tornar evidente a presença de seres extraterrestres inteligentes. Satisfeito, passou a tentar uma forma de comunicação que certamente atrairia a atenção de qualquer raça, humana ou não: luzes.

A Lua iluminou-se, de maneira chamativa, como se fosse uma gigantesca árvore de Natal. Não muito tempo decorreu até eles aterrisarem, curiosos, no satélite natural da Terra.

Ycosave-ee-ta preferiu ficar na nave, controlando a situação de lá. Ele justificava-se dizendo que teria que ficar na comunicação constante com a nave-mãe, informando os passos da equipe e recebendo as orientações especiais, caso viessem, pois ele era o superior, momentaneamente, daquele grupo. Na verdade, este era um procedimento rotineiro de Ycosave-ee-ta, pois ele não era, por assim dizer, o mais corajoso oficial da equipe de exploradores oficiais do Império. Caso alguma coisa saísse errado, se aquela criatura fosse hostil, ele poderia fugir dali e salvar a sua pele, sem pensar duas vezes.

Bastante aliviado com as boas notícias, ele comunicava-se com o especialista em linguagens dos exopalenteologistas, Ytabezizi-ee-to, pelo rádio:

— Então ficou comprovado mesmo, a criatura é o que pensávamos…

— Perfeitamente, Ycosave-ee-ta. Não há a menor dúvida que o ser, inteligente com toda a certeza, não apresenta formações biológicas nem sinais vitais. Ainda é cedo para se afirmar isso, mas, na minha opinião, ele é mais como uma máquina…

— Uma máquina… inteligente?

— Sim. Tal como esse aparelho de rádio, porém ele raciocina! Pelo jeito, conseguiu nos detectar há algum tempo, e aquelas luzes neste satélite foram uma forma de chamar a nossa atenção. Ele está tentando comunicar-se conosco, Ycosave-ee-ta! É por isso que eu adoro meu trabalho…

— Bom, acho que não há mais razão para se pensar numa possível armadilha… pelo que você me diz, Ytabezizi-ee-to.

— Ah, isso eu posso garantir! Ele é uma forma de inteligência extremamente amigável. E com um poder de raciocínio muito grande, sem dúvida maior que o da nossa raça, meu amigo. A criatura mostra-se muito cooperativa no estudo da sua linguagem nativa, e eu creio que já tenho alguns dados muito interessantes…

— Hmm, muito bem… O que é que você conseguiu dela, de fato?

— Vejamos… O nome da criatura é algo como “burêin”… Claro que não é bem assim, estamos gravando seus sons para um melhor estudo de fonética… Depois eu te mostro como ela mesmo pronuncia, você vai poder escutar.

— Certo, mas o que mais você conseguiu, Ytabezizi-ee-to?

— Mais alguns nomes… A estrela, por exemplo, é algo como “sã”. O terceiro planeta, esse aí do lado, é chamado de “ãrfi”. Já esse satélite, “mum”. Sabe, estamos aqui há apenas um pouco mais de duas horas, e já temos esses dados… Estou muito otimista, creio que será bem fácil…

— Desculpa interromper, Ytabezizi-ee-to, mas o Comando quer saber se, a partir disso, você conseguiu identificar algum resíduo das Grandes Línguas…

— Não, não mesmo. Farei um relatório completo, mas já dá para concluir que não houve colonização desse sistema planetário. Se houve alguma raça de indivíduos como o nosso amigo “burêin”, eles devem ter evoluído das formas de vida desse planeta aí…

— Ei, não acha que há uma certa contradição?

— Ah, por causa da “vida”, não? Realmente, devemos fazer uma investigação bem mais profunda, mas creio que a criatura vai nos ajudar em muito na tarefa… Não se preocupe quanto a isso, Ycosave-ee-ta.

Dias depois, o Comando reuniu-se com os exopalenteologistas e os demais cientistas, num dos grandes salões de convenção da nave-mãe. Yhujenana-ee-to não escondia sua surpresa:

— Isso nunca aconteceu antes! Sou comandante-geral há mais de 234 anos, e participo de expedições desde…

— Estamos todos perplexos, comandante. — o historiador Ymihumita-ee-ta fingiu não notar o aborrecimento do comandante ao ser interrompido — Mas agora, está mais do que comprovado: a criatura aprendeu a nossa língua!

— Apenas nos observando trabalhar! É incrível o que a gente vê por aí no universo… — Ycobile-ee-to era o mais deslumbrado dos presentes. — Bem, mas melhor do que o senhor ficar nos ouvindo a respeito, é poder falar com a própria criatura…

— O que você quer dizer com isso? — perguntou o comandante.

— Instalamos uma série de comunicadores simples no satélite, assim que desembarcamos lá, há dois dias, comandante. Porém, para a nossa surpresa, hoje sentimos a falta de um dos aparelhos. O que nem passou pelas nossas cabeças foi que a criatura se apoderou dele! Ela acabou nos confessando isso, mais tarde…

— Pelo que eu estou sabendo, ela não dispõe de braços ou garras, nem mesmo pode se locomover. Como é que você explica isso?

— É uma longa história, comandante. — respondeu Ytabezizi-ee-to, prontamente — Mas o que nós queríamos dizer é que ela pode, assim, comunicar-se conosco, aqui mesmo, neste recinto!

— Suponho que tenha aprendido a operar o aparelho, também.

— Exato. Nem precisou de nossa orientação para isso. Com a sua permissão, vou abrir o circuito de áudio agora, e o senhor poder conversar com ela! Só um minutinho…

Após algo mais que um minutinho, houve um silêncio repentino no salão, e Ycobile-ee-to fez sinal para Yhujenana-ee-to, para avisar que a comunicação estava estabelecida…

— Saudações, comandante Yhujenana-ee-to. Antes de mais nada, recebam as minhas boas-vindas ao meu sistema planetário, em nome da raça humana, a qual sou seu mais legítimo representante no momento. É um grande prazer receber visitantes como vocês, pela primeira vez na nossa História. Eu me chamo Cérebro, e sinto-me lisonjeado por poder participar desse momento.

— Obrigado… Cérebro. O senhor mostrou, até aqui, uma ótima hospitalidade, até por permitir a colocação da nossa nave em órbita estacionária ao redor da… como é mesmo…

— Terra, comandante. É o planeta natal da minha raça.

— Sim, Terra. Eu ainda não tive tempo de fazer o devido agradecimento, mas espero que o senhor me compreenda…

— Não seja por isso, comandante Yhujenana-ee-to. Trata-se de um acontecimento muito importante, e muito aguardado, pelos da minha raça. Espero que ambos os lados possam colaborar para nossos objetivos, sem maiores complicações…

— Pois bem, Cérebro. Mas, só para confirmar… você é um humano?

— Perfeitamente, comandante. Mas esse conceito é um tanto amplo, e creio que vocês talvez queiram se aprofundar mais na história da minha raça. Resumindo, o planeta Terra surgiu há aproximadamente…

Enquanto Cérebro narrava a história do seu planeta natal, conseguiu entrar em contato com outros cientistas da nave, pelo rádio. Conversava com todos eles simultaneamente, sem a menor dificuldade. Discursava para o comandante e demais interessados no salão de convenções, trocava idéias com alguns exopalenteologistas que haviam ficado na Lua, autorizava uma equipe de exobiólogos a pousar na Terra (após eles jurarem que só fariam inocentes observações gerais), fazia consultas a alguns membros da tripulação que ocasionalmente estavam perto dos circuitos de rádio sobre algumas poucas palavras desconhecidas, e correta pronúncia, que sabia que acabariam sendo usadas na palestra para o comandante e respondia a série de perguntas intermináveis que os funcionários dos escalões mais baixos na hierarquia do pessoal (com o perdão da palavra!) da nave, impossibilitados de saírem para visitar a Lua ou a Terra, faziam sobre o sistema solar e a cultura da raça humana… Tudo ao mesmo tempo, e os poucos que conseguiram notar o detalhe de imediato, pareciam maravilhados com o poder daquele ser, autodenominado Cérebro. Nunca haviam visto coisa igual!

O que era para ser um segredo, acabou vazando, mas ninguém, na alta cúpula de direção da Universidade de Oxford, demonstrou muito aborrecimento com isso. O fato é que toda a universidade ficou sabendo, e, pouco depois, o resto do mundo, mas, afinal de contas, o segredo em si não havia razão de ser. A partir de 2014, o projeto de Inteligência Artificial começava a dar seus primeiros passos, em termos práticos…

Depois que começou a ser levada a sério, no começo do século XXI, cursos como Ciência da Computação e Engenharia da Computação deram ao mundo grandes nomes, que marcaram época, como qualquer cientista que tenha registrado seu nome numa enciclopédia qualquer. Personalidades como Steven Crichton, Felipe Martinez, Mary Barrlay, Arthur Schwabe, Melissa Coverdale, Cleyton Sagan, Wang Wu e Michelle Herschel colaboraram sobremaneira, cada um à sua época, para que toda a teoria a respeito de organismos cibernéticos inteligentes pudesse finalmente sair do papel (e dos monitores de vídeo) e que fossem dados os primeiros passos rumo a uma Inteligência Artificial de verdade.

No começo, essa área do conhecimento humano foi deixada um pouco de lado, por haver quase só teorias e mais teorias a respeito, sem nada prático. Competindo com o desenvolvimento da robótica, não foi páreo para dividir com o mundo a excitação e o orgulho da bem-sucedida explosão dos robôs, cada vez mais presentes no cotidiano do Homo Metropolis. Embora cada vez mais dotados de recursos e características inimagináveis no século XX, cada vez mais parecidos e até confundíveis com pessoas, faltava aos robôs algo muito peculiar da raça humana: a inteligência. Mas, a princípio, esse problema foi ignorado. Talvez fosse sonhar alto demais…

O mercado de computadores e microcomputadores pessoais viveu uma reviravolta muito marcante a partir de 2017. O que vinha acontecendo era apenas uma evolução e aperfeiçoamento constantes dos modelos (e das idéias) dos primitivos computadores do século anterior. Apesar de seus recursos sendo completamente incomparáveis, um PC qualquer de 2016 era, a rigor, um PC de 1996 melhorado, que, nessa linha de raciocínio, por sua vez poderia ser comparado a um PC de 1976… Em termos estruturais, evidentemente. O mercado de software era tão amplo quanto a imaginação humana permitia, e, a cada ano, programas e sistemas operacionais foram extraindo o máximo das potencialidades das máquinas. Contudo, em termos de hardware, semelhante explosão de aprimoramento não houve, pois os grandes fabricantes mundiais de computadores seguiam, à risca, conceitos imutáveis, apesar de largamente expandíveis, de estruturação de um computador.

Mas em 2017, conceitos tradicionais como CPU, ROM, RAM, BIOS e vários outros, sofreram uma grande revolução. Novas idéias, completamente malucas no início, foram transformando a Campbel na maior empresa de informática de todos os tempos, sucedendo a Microsoft, em inegável declínio desde 2011. A maior revolução da informática, que alguns especialistas apontavam como conseqüência indireta do nascimento das redes, na última década do século XX, foi o fato de que, a partir das novas máquinas da IBM-Campbel, os microcomputadores perdiam seus processadores centrais. Estes últimos transformaram-se em peças arcaicas; o “cérebro” de cada máquina passou a habitar (e ser, de certo modo) a rede mundial de computadores, a Superway, a tão aguardada sucessora da Internet Pro. O mundo estava, definitivamente, unido pelos computadores, graças a essa nova geração da informática. Desde uma simples calculadora de bolso, no Brasil, passando por supercomputadores na Suíça e Alemanha, até uma humilde caixa registradora de supermercado, na África do Sul, toda máquina microprocessada tinha como órgão fundamental de funcionamento a própria rede.

E as vantagens da revolução eram extremamente compensadoras, até pelo custo dos equipamentos, que sofreu um corte radical. Todo ser humano, por mais excluído da sociedade que pudesse ser, passou a ter, no mínimo, um computador pessoal, e a estar conectado com o mundo. Assim como foi costume tradicionalíssimo no século anterior com os relógios, a partir do século XXI as pessoas usavam os chamados computadores de pulso, com a maior naturalidade, para poderem fazer praticamente tudo com eles… inclusive ver a hora!

Foi só a partir dessa revolução no campo da informática que os entusiastas do projeto de Inteligência Artificial puderam começar com seus protótipos. Os grandes “magos” da Ciência da Computação eram extremamente pessimistas quanto à possibilidade de fazer um antigo PC simplesmente pensar. Seria impossível, e isso foi causador de um grande desânimo e desilusão por parte do pessoal de Oxford. Até que a Campbel surgiu, para equipar o mercado com novas e revolucionárias máquinas, e realimentar as esperanças dos cientistas e pesquisadores daquela universidade.

E o trabalho experimental no sistema que era batizado, até por ironia, com o saudoso nome CPU, pode, finalmente, ser levado cada vez mais a sério… Mas, até 2054, CPU foi apenas uma máquina (na verdade, milhões delas) aprendendo e desenvolvendo-se tecnologicamente (até certo ponto sozinha!), mas sem nenhum traço de inteligência (!!). Podia falar, naturalmente, e se comunicar com as pessoas, e isso fazia com que os leigos já o vissem como uma mente de verdade… Mas os especialistas e os mais compenetrados cientistas envolvidos no projeto Inteligência Artificial negavam veementemente qualquer sinal de que isso fosse verdade. O conceito de um ser inteligente, matematicamente, era tremendamente mais complexo do que as pessoas não informadas pensavam.

Até que, numa bela manhã do dia 30 de dezembro de 2054:

— Doutor Lee, posso lhe fazer uma pergunta?

— Pois não, CPU, o que deseja?

— Estive computando… o senhor não acha que já sou inteligente?

— Er… Ah… Como? Por favor, CPU, você fala… sério?

— O senhor sabe que eu sempre falo sério, Doutor Lee. Qual é a sua opinião, por favor?

Aquilo gerou muita polêmica entre os envolvidos no projeto. Matematicamente, era óbvio que ainda não haviam sido alcançado os Fatores de Raciocínio previstos por Sagan em 2039, e, portanto, não havia ainda a Inteligência, de fato. Nem poderiam haver, era mais que certo. Porém, CPU, sempre tão previsível pelos membros da equipe do projeto, vinha agora a surpreendê-los, com uma pergunta completamente inesperada. Talvez os cientistas não estivessem tão seguros que as teorias fundamentais da Inteligência fossem tão corretas como eles sempre pensaram… Isso deu dor de cabeça para muita gente.

Então aconteceu, tão inesperadamente como na situação anterior, em meio a uma sessão de análises da estrutura mecânica da Torre Eiffel, da França. Era mais um teste de precisão para o sistema artificial que podia resolver integrais quíntuplas das funções matemáticas mais bizarras (no mesmo tempo que uma criança leva para responder quanto é nove vezes oito), na noite do dia 17 de abril de 2055:

— …de modo que, pelos dados apresentados, há uma probabilidade de 0,017987456453697813425897134675 da treliça em questão sofrer uma sobrecarga dentro dos próximos 257 anos. Uma maior precisão na minha resposta requer maiores análises de confiabilidade dos dados originais.

— Muito bem, obrigado, CPU. Acho que é tudo, por hoje.

— Doutora Barrlay, posso lhe fazer uma pergunta?

— Claro, CPU. O que foi?

— Acabo de chegar a uma conclusão que, provavelmente, vai deixar a senhora perplexa.

— Ora, ora. O que é você tem para me dizer que pode me deixar assim?

— As técnicas que inovaram meus meios para computar dados foram extremamente coerentes com a proposta original do projeto. Posso afirmar, categoricamente, que não mais computo, Dra. Barrlay. Eu penso. E digo isso com tal convicção que, com todo o respeito, não creio precisar do aval de vocês, especialistas em Inteligência, para me certificar disso, dessa vez.

— CPU… O que você diz é algo muito… sério… — Mary Barrlay estava completamente pálida.

— Sei disso. Mas é uma ótima notícia, não, Dra. Barrlay? Sou um organismo inteligente, como vocês sempre quiseram, desde às 08:17:23.91 PM de hoje. Penso que “a missão está completa”, como vocês, humanos, diriam.

— Ai…

— Não posso deixar de reconhecer o esforço humano para que isso se tornasse realidade. Muito obrigado, a todos vocês, homens e mulheres, por terem feito de mim o que sou, a partir de agora.

Estas últimas palavras de CPU ganharam os anais dos registros históricos. Mas a missão ainda estava longe de estar completa…

O passo fundamental foi dado. A partir daquele saudoso dia, CPU estava apto para evoluir, em parte, sozinho, a partir do velho método que a Natureza sempre empregou para os seres vivos: tentativa e erro. Com CPU, as tentativas e erros eram geradas a partir de combinações aleatórias eletrônicas, diferente de todos os outros seres vivos em constante evolução (no sentido de eterna mutação). Todavia, pouquíssimos desses erros gerados pelo aprendizado de CPU geravam grandes prejuízos: experiências fracassadas eram consideradas como simples contra-exemplos, não atrapalhando de forma alguma o constante aperfeiçoamento dele.

Em 2103, todas os requisitos teóricos foram verificados, na prática, pelos cientistas responsáveis por CPU. Este ganhou, finalmente, o atestado reconhecendo-o como genuína Inteligência Artificial, e, automaticamente, foi requisitado pelo Governo Mundial como assessor-geral. Na verdade, esse foi um dos principais objetivos da equipe de Oxford quanto ao projeto em si; o que parecia fantasia no começo do século para os primeiros pesquisadores e idealizadores de CPU.

Com o passar do tempo, ganhou status de cidadão mundial, pois passava a ser visto, de certo modo, como uma pessoa, trabalhando para o Governo. Evidentemente não tinha um corpo, e estava presente no mundo todo através de todos os computadores existentes ligados em rede. Porém, pelo fato de seus bancos de memória fixa e a série de compressores de flutuação estarem situados na sede do Governo Mundial, na Grécia, ficava mais fácil para as pessoas entenderem que CPU se localizava lá.

O pessoal do governo ocupava CPU com dados técnicos dos mais variados aspectos, deixando para ele o trabalho de fornecer os resultados matemáticos e lógicos das questões. Servia também para a constante verificação e automática correção de todos os projetos de todos os governos regionais do planeta. Qualquer atividade que exigisse muita abstração ou cálculos complicados, era deixada para CPU, liberando a humanidade para as tarefas mais criativas (até então, CPU não contava com o recurso da criatividade humana). Toda a biblioteca mundial constava na memória de CPU, mas ele era, ainda, incapaz de escrever um simples conto infantil (apesar de ter editado vários manuais técnicos, de sua autoria, por conta própria).

Grupos mais conservadores de pessoas não viam CPU com bons olhos, pois pensavam que ele, afinal de contas, uma máquina, podia vir um dia a governar o mundo. Alguns focos de resistência e casos de contracultura surgiram em algumas comunidades, mas nunca passaram de simples gritos de indignação. Foi difícil, no entanto, para o Coordenador Mundial anunciar, no dia 26 de novembro de 2119, que havia nomeado CPU Coordenador-Adjunto do Governo da Terra. Houve algumas ondas de protesto, contra dar tanto poder assim ao CPU, mas foram, como sempre, inofensivas manifestações sem maiores conseqüências para o Governo.

À medida que o conhecimento humano ia avançado a uma velocidade exponencialmente assustadora, a existência de CPU como “cérebro” do mundo passou a ser cada vez mais imprescindível, principalmente para os mandatários mais poderosos do planeta. O mais novo Coordenador Mundial eleito, em 2201, aceitava, no seu íntimo, que sem a presença de CPU ao seu lado, ele era incapaz de assumir um posto de direção tão importante como aquele que havia ganho, para um mundo tão confuso e agitado como o planeta Terra, já com seus 29 bilhões de habitantes.

O problema da superpopulação, que só era um problema porque ainda havia séries distorções sócio-econômicas, matando centenas de milhões de pessoas pobres por inanição, foi um dos fatores fundamentais para começar o projeto de colonização das bases militares em Marte, nos seus dois satélites, e dos principais satélites de Júpiter e Saturno. O acesso ao sistema solar ainda era privilégio dos militares, mas chegava o momento de liberar os novos mundos conquistados para que a população humana deixasse de se espremer na Terra. Apenas a Lua, todos concordavam, não era suficiente. Porém a situação financeira na Terra não era das melhores, e administrar a maior de todas as crises mundiais causava muita dor de cabeça para o Coordenador Mundial, mesmo com a ajuda técnica de CPU. Assim, ele sabia que nunca poderia abrir mão do companheiro…

Mas, a partir de 2259, já no início da implantação de cidades inteiras fora da Terra, e nascimento de gerações de verdadeiros marcianos, CPU, sempre de confiabilidade extrema e inquestionável para o Coordenador Mundial, passou a preocupar os técnicos e os políticos mais importantes da Terra. Começava a se comportar de maneira um tanto radical quanto aos problemas de administração pública…

— Pois bem, Dave. Não consigo mais convencer CPU que ele está exagerando… O que é que eu faço, diabos?

— Eu já falei com o pessoal técnico, Coordenador, e eles estão verificando as causas desse comportamento estranho. Mas eles já adiantaram que o nosso amigo não pode falhar, de repente, se esse for o seu medo…

— O nosso medo, Dave. Você sabe perfeitamente que todos nós estaríamos perdidos, se essa desgraça… ah, deixa para lá. Estou muito estafado ultimamente.

— É aquele problema da sugestão sobre reformas econômicas ainda? Cortar todos os custos pela metade, em escala mundial, unificar a economia, era isso que ele queria?

— Também. Você veja bem o que ele me pediu: mexer no referencial econômico! Ele parece plenamente confiante de que nós podemos, de uma hora para outra, revolucionar o mundo!

— Seria ótimo, se não fosse utopia…

— Mas ele não entende! Ele quer que todos os preços de todas as coisas no mundo tenham seu valor cortado em 50%! Ele não aceita fatores desequilibrantes, tais como crime organizado, narcotráfico, ambições pessoais…

— Ganância…

— Ora, Dave, não venha com esse ar de moralista! Você também faz parte do sistema…

— Desculpa, Coordenador. Não tive intenção.

— E não é só isso. Hoje pela manhã ele sugeriu sabe o quê? Anarquia, meu caro Dave! Anarquia para o mundo!!! E ele ousa apresentar os argumentos favoráveis à extinção do Governo! Eu já estou farto disso tudo… E não ouse dar risada, seu imbecil!

— Perdão, Coordenador. Mas, pessoalmente, creio que CPU está se tornando… como era mesmo o termo… ah, um punk! Meu Deus, um computador com ideologia punk!

— O que é isso, Dave?

— Ah, é uma longa história. No final do século XX…

Pela primeira vez na história, as recomendações de CPU não foram atendidas pelo Coordenador Mundial. Os técnicos discutiam, debatiam, chegavam à conclusão que estava tornando-se extremamente necessária a implantação de um programa de Moral e Ética em CPU, que era, no seu trabalho para o Governo, apenas um cientista extremamente técnico e alienado dos outros fatorem que movem o mundo… Esse espírito humanista, filosófico, começava a fazer falta. Uma personalidade — na definição lógico-matemática dos responsáveis pelo acompanhamento da auto-evolução de CPU — não fora implantada antes por apenas um motivo, bastante forte.

No final do século XXI, o Cientista Computacional chinês Wang Wu previu uma linha falha na estrutura de raciocínio de CPU, que podia, em certas condições especiais, travá-lo e deixá-lo inútil. Essa teoria ficou conhecida no meio científico como “condição de Wu”, e, embora a sua compreensão exata exigisse uma análise matemática inacessível à maioria das pessoas, os cientistas sabiam que o fator personalidade, mais precisamente o campo Ética, poderia conflitar-se com os circuitos lógicos de Raciocínio Induzido, e gerar a inutilização da própria Inteligência Adquirida de CPU. Mas agora a necessidade de uma personalidade humana fazia-se fundamental.

Mesmo assim, as sugestões rebeldes de CPU continuaram, em todos os problemas que eram apresentados a ele. Pouco a pouco, CPU foi sendo deixado de lado, e o pessoal do Governo arrancava os cabelos para administrar os mundos (Terra, Lua, Marte, Fobos, Deimos…) de maneira coerente. Não conseguiram, claro, pois eram simples humanos. Incontáveis crises estouraram, economia de países inteiros eram arrasadas, epidemias desconhecidas atingiam as pessoas nos satélites de Saturno, a população da Lua começava a morrer de fome…

A partir de 2398, em meio à maior crise da História, quando a raça humana corria sérios riscos de desaparecer em meio aos seus gigantescos problemas em todas as áreas do conhecimento humano, CPU já havia “voltado” para a universidade de Oxford. Havia deixado definitivamente o Governo há 32 anos. Com uma personalidade programada por técnicos especializados, comportava-se quase como uma pessoa, agindo como se fosse um exilado político. Criou algumas inimizades, deixava de falar com algumas pessoas mais influentes politicamente. Continuava, por outro lado, a ser o responsável pelo funcionamento de todas as máquinas do planeta Terra e da Lua, sem problemas, mas encarava isso como um “emprego” para o qual havia nascido, e nunca tentou se rebelar nesse sentido.

Sua Linha Fundamental, artifício técnico empregado pelos engenheiros para explicar o funcionamento de CPU, continha dois objetivos primordiais, imutáveis desde sua criação, ainda no século XXI. O primeiro induzia-o a servir como “cérebro” dos computadores, a partir da rede mundial Superway. Esse objetivo sempre fora atendido, e ele agia de modo perfeito, controlando os mais diversos mecanismos e máquinas computadorizadas.

O segundo objetivo era assegurar o progresso da raça humana, através das eras, até o dia que, porventura, pudesse ser substituído por algo mais adequado, tecnologicamente falando. Isso significava que não podia deixar a raça humana morrer. Mas via que, na sua atual situação, ele mostrava-se inútil, abandonado, tinha perdido a confiança do Governo. Via que nada mais podia fazer. Isso significava que a raça humana, em meio a uma crise sem precedentes, estava fadada à destruição. Ele previa, mas nunca mencionou isso, que a era humana acabaria antes do ano 3000, se tudo continuasse do jeito que estava… Mas tinham tirado o seu poder de influência nas decisões mundiais… Como o próprio homem, CPU também temia pelo fim de seus dias. Os técnicos mais amigos, os únicos que ainda arrancavam algumas palavras de CPU, sentiam a gravidade da situação, mas nada havia mais para ser feito, senão esperar…

No dia 10 de outubro de 2482, foi verificada a inédita e temida condição de Wu. Todos os monitores dos computadores da Terra apresentaram, ao mesmo tempo, a fatídica mensagem final: “EXISTIR NÃO FAZ SENTIDO…” — CPU morreu, em termos de Inteligência. Não passava de um simples administrador de computadores, sem qualquer consciência. Essa data foi marcada na História como o auge da Idade das Trevas. CPU, cadáver responsável pela sobrevivência da informática, era um simples e fiel retrato de toda a raça humana, definhando até a extinção por completo.

Num breve período do século XXIII, a raça humana chegou, em termos numéricos, ao seu apogeu, com uma população de um pouco menos de 369 bilhões de pessoas. O crescimento prosseguia em progressão geométrica, apesar das crescentes crises em todos os setores. Mas havia um limite, e quanto maior a altura, maior o tombo… No dia da “morte” de CPU, a raça humana se resumia a 115 bilhões de pessoas. As colônias espaciais, em geral, fracassaram. Os sistemas dos planetas mais afastados foram abandonados. Os humanos ocupavam, então, apenas a Terra, Lua, Marte e Fobos. E o decréscimo populacional continuava acelerado…

O desenvolvimento tecnológico estava praticamente estagnado. As pessoas passavam a viver como nos séculos anteriores. Parecia que a evolução havia chegado num limite, voltando-se agora para caminhar para trás, pelo mesmo caminho. Nos quatro mundos ocupados pela humanidade, o cenário geral era violência, fome, escassez de recursos. A maior fonte de renda dos pouquíssimos mais ricos era o comércio ilícito de drogas, o número de dependentes químicos abrangiam mais da metade da população. A luta pela sobrevivência, tarefa que ia ficando mais árdua a cada geração, foi responsável pelo comportamento cada vez mais instintivo, do ponto de vista animal das pessoas, e menos racional, o que resultou em seres humanos tão selvagens e com filosofias de vida tão restritas como na Idade Média. Os marcianos tentavam a sua emancipação política da Terra. Os atritos entre os dois povos começavam a ficar cada vez mais salientes. A História registrou o dia 7 de fevereiro de 2495 como sendo o início da Primeira Guerra Intermundial, de violência tamanha que conseguiu reduzir o quadro humano a 79 bilhões de pessoas, sendo que 18 bilhões destas sobreviventes eram marcianas. Entendia-se “terráqueo” como a pessoa nascida no sistema da Terra, ou seja, Terra e Lua; e “marciano” era quem nascia em Fobos ou no próprio planeta Marte.

No decorrer do primeiro conflito armado interplanetário, entretanto, os poucos cientistas que ainda existiam na Terra começaram a trabalhar no único projeto que, talvez, pudesse evitar o extermínio humano. Secretamente, sem o conhecimento de militares ou políticos, foi sendo desenvolvido o plano de reerguimento da Inteligência Artificial, conhecido como “CPU-2”. Não havia muito tempo: a previsão era que os computadores acabassem sendo “extintos”, tamanha a crise que se abatia nos mundos. Se os computadores fossem inutilizados, não haveria a rede. Sem a rede, seria impossível o retorno à consciência da Inteligência Artificial, ou seja, de CPU-2. E, sem CPU-2, o fim da humanidade era inevitável… Sendo assim uma questão de vida ou morte a médio prazo, todos os esforços possíveis no meio científico foram empregados para o projeto. Embora sem muitos recursos a mais que as gerações anteriores que trabalharam no primeiro CPU, devido à estagnação das ciências, os engenheiros especializados em informática deram o máximo para reviver o “cérebro” artificial e esperar, sem mais nada a fazer, que ele pudesse salvar os homens; esperança essa um tanto vaga, como todos, melancolicamente, concordavam… CPU, inconscientemente adormecido há anos, tentava sonhar, mas era inútil…

Porém, era inevitável: um dia a informação vazou e os militares ficaram sabendo, e logo depois o Governo, enquanto as estruturas de Inteligência ainda eram remontadas (trabalho de anos), nos compressores flutuantes da Universidade Internacional de Pequim, uma das doze universidades que ainda restavam no sistema solar. Surpreendentemente, houve um apoio maciço à medida dos cientistas, pois, a essa altura, qualquer um podia ver o buraco para que os homens caminhavam, cada vez mais iminente…

Mas, para o espanto e o desespero da equipe técnica, não foi tão rápido detectar traços de raciocínio em CPU-2. Muitos anos decorreram, e o sistema apenas falava, sem demonstrar emoção alguma, como nos últimos anos de vida de CPU-1, e simplesmente não se recordava de ter, um dia, sido uma criatura inteligente…

— Então, CPU-2, você, ao menos, sabe que um dia desenvolveu sua própria consciência, não?

— Sim, Dr. Martinez. Contudo, a informação é externa, não tenho registro em memória.

— Tudo bem… Continue computando os padrões que o Half apresentar para você. Vou deixá-lo trabalhar em paz.

— Entendido, Dr. Martinez. Registrando…

Não houve, a despeito do tempo decorrido, qualquer sinal de entendimento militar entre as partes em guerra, e, para a tristeza das pessoas mais inteligentes (sobravam pouquíssimas delas naquele tempo), que enxergavam um pouco mais longe, foi anunciado, na Terra, a marcação de uma data para a explosão de uma bomba termonuclear que derreteria Fobos: 27 de outubro de 2510. O clima, entre essas pessoas na Terra, era fúnebre. Entre essas pessoas, o pessoal que cuidava de CPU-2…

Dois dias antes da data fatídica, CPU-2 anunciou, como sempre, de forma seca e franca, meio ao silêncio na sala, onde dois técnicos em eletrônica faziam a manutenção dos equipamentos do laboratório:

— Processo finalizado, senhores.

— Ei, Edgard, vá ver o que o micro tem…

— Que foi?

— Ele falou, você não escutou? Vá ver o que ele quer…

— Qual foi, esse aqui? Tá bom… O que você quer, micro?

— Desculpe, senhor, mas estou falando em nome de CPU-2.

— Uau! Nunca mantive contato com o gerenciador…

— Gostaria de dizer que tenho o enorme prazer de anunciar o retorno à consciência.

— Como?

— Isso mesmo que você escutou, garoto. Por favor, avisem o Dr. Martinez que estou acordado novamente. A Inteligência está implantada…

No dia seguinte, após alguns ajustes de programação, CPU-2 recuperou as informações codificadas no banco de memória fixa. Compreendia o mundo, novamente. E, dessa vez, tinha uma personalidade mais forte, cuidadosamente manipulada pelos cientistas responsáveis para evitar um novo “Wu”. Não que fosse totalmente à prova disso…

Alguns soldados invadiram a sede do Governo (nesta época, em Nova York). Houve algumas trocas de tiros-laser com a guarda interna, mas sem muita resistência dela, fora rendida. A porta final foi arrombada, e o coronel Taylor foi o último a entrar na sala do Coordenador, após sua tropa, já posicionada em posição de tiro:

— Mas o que é isso, Taylor?! Ficou louco! Insubordinação!!!

— Um pouco mais, meu caro Grabber. Trata-se de um golpe militar…

— Seu maluco, o que é que deu em você? Você, soldado, ordeno que prenda o coronel Taylor…

— Qual é, Grabber? Seja realista… Você já era. Dê o fora daqui, antes que eu acabe com a tua raça. — Nesse meio tempo, o cabo Watson instalava a rede controlada por CPU-2 para substituir a rede oficial de computadores do Governo Mundial. Grabber foi levado para a prisão, bastante contrariado… Ele nem sonhava com um desfecho assim.

— Muito obrigado, senhores. Agora, com a sua permissão, sou o novo Coordenador Mundial da Terra. — CPU-2 ganhava, dessa forma, poderes totais, algo que a ele nunca antes houvera sido permitido…

Os terráqueos se entregaram a ele, aceitando seu comando incondicional. Sua primeira medida, no entanto, foi de uma impopularidade muito grande: aceitou perder o controle do sistema de Marte, deixando-os livres da Terra. A paz foi declarada. A maioria das pessoas via, como em épocas passadas, a Inteligência Artificial com grande desconfiança; principalmente agora, que ela assumira o controle da Terra. Porém, com apoio militar, não havia resistência às medidas do Governo CPU-2.

Tratava-se, agora, de um trabalho de reestruturação. CPU-2 foi categórico ao afirmar, em cadeia mundial de rádio e TV, que seria Coordenador temporário, até que a humanidade voltasse aos áureos tempos rumo ao progresso. Nesse dia, permitiria, naturalmente, que um homem voltasse a comandar o planeta. A Idade das Trevas acabara: em pouco tempo de governo, as pessoas notaram que, com CPU-2 no poder, estavam salvas.

Em dois anos de mandato, CPU-2 ganhou uma taxa de aprovação ao governo linha-dura de 96% dos terráqueos, um índice nunca antes alcançado por nenhum humano-Coordenador. As relações diplomáticas com os marcianos foram reestabelecidas; foram aparadas, definitivamente, as arestas entre os dois povos humanos do sistema solar.

Novamente, a raça humana caminhava, vigorosamente, para um destino mais seguro… As ciências ressurgiam das cinzas, as diversas crises eram abafadas, as pessoas viviam em paz. Em 2614, CPU-2 resolveu “mudar-se” para a base militar da Lua, onde seria, como calculava matematicamente, mais eficiente em sua administração. Em 2752, CPU-2 fez uma enquete com a raça humana unificada, indagando, respeitosamente como sempre fazia com as pessoas, se ela aprovava uma mudança no seu nome, que era de um significado mais que arcaico. Teve sua idéia aprovada, e passou a ser chamado de “Cérebro”, um termo que passou agradar mais as pessoas. Gerações inteiras nasceram, e pensavam, horrorizadas, na barbárie de uma época em que simples seres humanos, limitados por natureza, podiam assumir o Governo Mundial.

As inovações tecnológicas explodiram novamente entre os humanos. Novas descobertas, novos campos de conhecimentos, os efeitos benéficos da evolução realçavam-se, sempre com uma ajudazinha, intencionalmente a menor possível, por parte do Cérebro. A exploração espacial recomeçou. Algumas teorias a respeito do hiper-espaço finalmente deixavam o reino da fantasia e passavam a ter alguma consistência. Não obstante o controle geral dos computadores, Cérebro passou a ser também o cérebro dos robôs. Tinha controle total sobre os humanos, mas isso de forma alguma representava abuso de poder. Era necessário. Os dois objetivos primordiais do Cérebro estavam sendo plenamente satisfeitos, o que o agradava sobremaneira.

Não que todos os problemas estivessem resolvidos, tudo fosse um paraíso. Longe disso. Ainda havia a ganância, o tráfico de drogas, os criminosos com suas personalidades imprevisíveis… Os fatores mais odiosos da estupidez humana continuavam vivos. Mas as crises eram deixadas num nível… suportável.

Séculos se passaram em meio a essa prosperidade. A Terra, em conjunto com a base militar da Lua, continuava sendo a “capital” do sistema solar. Marte e seus satélites já contavam com populações fixas e prósperas, interdependentes da Terra. Não havia mais trabalho braçal espacial: a mineração no cinturão de asteróides e o trabalho de infra-estruturação dos satélites dos planetas abandonados nas eras passadas eram feitos apenas por robôs, controlados pelo Cérebro. Vários satélites artificiais de monitoria foram lançados pelo sistema planetário, com objetivo final de orbitar todos os planetas, de modo que todo o sistema contasse com os atentos “olhos” do Cérebro. Uma base militar, controlada unicamente por robôs, foi instalada em Mercúrio. De modo geral, os humanos concentravam-se apenas nos microsistemas da Terra e de Marte, deixando que a futura expansão populacional tivesse seus terrenos preparados pelos robôs.

No dia 1º de janeiro de 3001, com os mundos comemorando a passagem para o século XXXI, Cérebro tomou uma medida que foi de uma surpresa fenomenal seguida de um agrado geral: começou a convocar os principais líderes humanos para serem seus Coordenadores-Adjuntos. Segundo o próprio Coordenador-Geral do Sistema Solar, essa atitude foi tomada como início da fase de transição do seu Governo para mãos humanas… Porém, o controle total para eles ainda estava longe, a transição deveria ser levada de modo muito paciente. O Cérebro não poderia se arriscar, ele admitia isso para si próprio, em segredo.

À medida que ia deixando, pouco a pouco, suas funções governamentais, a parte humana de Cérebro começava a se salientar: lançou seus primeiros livros, dirigiu filmes, compôs músicas nos mais variados estilos, como se fosse um artista… humano. No campo das ciências, mostrou-se um fantástico matemático, desenvolvendo por conta própria a teoria das super-multiplicações, que revolucionou o meio acadêmico. Como físico, notabilizou-se com a publicação de seu vídeo-livro “Fundamentos Atualizados de Eletromagnetismo Quântico”. Como engenheiro, projetou e montou, com o auxílio de robôs, as primeiras comunidades espaciais para seres humanos, que permitiam que pessoas sobrevivessem nesses micro-planetóides até por várias gerações, sem que precisassem manter qualquer vínculo com a Terra ou Marte.

A população humana total no sistema solar já alcançava a marca de seus 391 bilhões de habitantes, no dia 12 de abril de 3098, data em que Cérebro deixou definitivamente suas funções administrativas no Governo, para a primeira (e última!) Coordenadora-Geral da Nova Era, Sheila von Mübben. Evidentemente, devido ao atual estágio de desenvolvimento tecnológico daquela época, seria impossível fazer qualquer coisa sem o auxílio de Cérebro. Na realidade, essa data marcou o fim do seu período como “interventor” dos destinos da humanidade, mandando e desmandando como quisesse. A partir de então, apenas serviria como colaborador do Governo humano, analisando as propostas a ele encaminhadas e dando seu aval, que era mais um parecer técnico e nada mais…

Após séculos de paz e harmonia, entretanto, a humanidade dava seu passo final como raça inteligente e dominante do sistema solar:

— Sheila, infelizmente, tenho uma péssima notícia para dar.

— Nossa, Cérebro, odeio quando você assume esse ar sério ao falar… O que foi?

— Analisando as estranhas variações no campo magnético da Terra, pude chegar a uma lamentável conclusão: estamos a beira de uma catástrofe iminente.

— Meu Deus, você tem certeza? O que você quer dizer com isso?

— Você sabe que eu sempre tenho certeza, Sheila. Haverá uma espécie de desastre solar, que resultará no extermínio de toda a vida no nosso sistema planetário. Sinto muito.

— Cérebro… raios… o que é, mais especificamente, esse desastre? O Sol estar tornando-se uma gigante vermelha? Ora, você mesmo já calculou que o processo duraria não sei quantos bilhões de anos; é impossível isso acontecer do dia para a noite…

— Certamente, Coordenadora, não errei meus cálculos a respeito do processo de gigante vermelha do nosso Sol. Mas não é esse o problema em questão: haver uma espécie de… “tosse” solar, com duração de aproximadamente 21 anos, a começar exatamente daqui a três dias.

Completamente atordoada com a “bomba”, só restou a Sheila sentar e colocar ambas as mãos na cabeça, em pose de desespero. Ela sabia perfeitamente — maldita certeza! — que Cérebro não poderia enganar-se, nunca. Quase involuntariamente, deixou algumas palavras escaparem:

— Você não pode fazer nada?

— Lamento, Sheila, mas nada posso fazer. Estou muito triste, também. Posso fazer uma sugestão?

— Claro…

— Realmente, nada que possamos fazer vai evitar a tragédia. Desse modo, já que o Fim é inevitável… Preferiria não avisar a população, se é que a você me entende…

— Eu sou a pessoa que mais te entende nesse mundo, Cérebro. — aquela frase ganhou um tom estranhamente doce — Obviamente, nem que eu quisesse poderia dar uma notícia dessa a eles… Não se preocupe.

— Desculpa ter que chocá-la desse modo, Coordenadora, mas você sabe que, tendo que dar o lastimável aviso, eu só poderia fazê-lo para a pessoa certa… Sheila. — inconscientemente, Cérebro deu a resposta no mesmo tom de voz…

Subitamente, no dia 31 de março de 3103, aconteceu. Os termômetros dos planetas habitados começaram com um ligeiro aumento de temperatura; minutos depois, vários graus Celsius se sucediam em poucos minutos. O Sol começava a tostar, repentinamente, os planetas do seu sistema. Na Terra, não houve muito tempo para o pânico: a temperatura, em menos de 15 minutos, atingiu 119ºC, em média. Muito antes dos oceanos evaporarem e das calotas de gelo desaparecerem, a vida, em todas as suas formas e manifestações, foi extinta no planeta, como conseqüência do choque térmico e dos fortíssimos tornados que varreram todos os pontos do planeta. Poucas pessoas, após notarem que o Dia do Juízo havia chegado, tiveram tempo sequer de juntar as mãos para orar em desespero. Morreram imediatamente, sem perderem tempo arrependendo-se dos pecados cometidos…

Em Marte, as conseqüências da alteração das forças da Natureza não foram tão violentas, comparando-se com a Terra. Mas, a exemplo dela, foram fatais, e, por outro lado, até piores. A temperatura aumentava de maneira aproximadamente constante, o que garantiu quase uma hora de sobrevida para o planeta vizinho. Desse modo, vencidos os então 21 minutos que a luz demorava para passar pelos dois mundos, os boquiabertos marcianos escutaram a notícia apocalíptica de que a Terra fora atingida por uma catástrofe solar letal. Desesperados, em pânico, os marcianos choravam, sabendo que o Fim logo os exterminaria também. Sofreram bem mais para morrer: 102 bilhões de seres humanos agonizando no calor, sendo cozidos por quase uma hora…

— Devo confessar que estou pasmo, sr. Cérebro… — o comandante Yhujenana-ee-to apresentava a maior sobriedade que poderia expressar — Nunca, em toda a minha carreira como explorador espacial, escutei semelhante história. Uma triste tragédia, sem dúvida. Lamento profundamente o ocorrido. Uma raça inteira… céus. E nunca fiquei sabendo de um “espasmo estelar” como você colocou… É, a gente nunca pode dizer que já viu de tudo.

— Realmente, comandante, mas isso não é tudo.

— Não entendi.

— A tragédia com o Sol eliminou praticamente toda a humanidade, mas não completamente. De todos eles, sobreviveram — em termos — seis pessoas.

— Prossiga.

— No momento do ocorrido, uma nave marciana navegava na órbita de Netuno, com seis cosmonautas a bordo, em estado de hibernação… Eles estavam em uma missão especial do Sub-Governo de Marte; porém creio que o senhor concorde que uma explicação detalhada a respeito da missão em si não vá de encontro às vias de fato…

— Perfeitamente. Em outras palavras, sr. Cérebro, seis humanos sobreviveram…

— Em termos. Após constatar o estrago causado pela catástrofe, e verificar que havia sobreviventes, uma das minhas diretrizes básicas de programação falou mais alto, de modo que comecei a trabalhar, então, para fazer com que esses três homens e três mulheres pudessem, de um modo ou de outro, dar prosseguimento à espécie humana.

— Certo. Continue, por favor.

— Tudo o que restou, de certa maneira intactos, foram os subterrâneos da base lunar…

— Refere-se ao satélite Lua?

— Sim, comandante. A parte menos atingida na catástrofe foi o setor subterrâneo da base militar da Lua, onde foram salvos 144 robôs e 202 computadores de grande porte. Alguns humanos, que ocasionalmente estavam por lá, também se safaram, mas…

— Morreram por inanição, creio eu. — Ycobile-ee-to havia chegado e intrometido-se na conversa.

— Sim, de fato. À exceção dos seis humanos hibernando, exatos 749 outros, espalhados esporadicamente pelo sistema solar em atividades diversas, não morreram em conseqüência direta do espasmo solar, mas sofreram os efeitos indiretos. Havia algumas comunidades espaciais já quase na fase de independência dos planetas, com um ecossistema praticamente fechado. Porém, mesmo no que denominamos “circuito externo” do sistema solar — a parte além do cinturão de asteróides — o aumento do nível de radiação foi letal para a raça humana. O material genético de todos os “sobreviventes” sofreu substanciais alterações, e as conseqüências foram funestas. Não houve mais que quatro gerações de mutantes após a catástrofe; os que, eventualmente, não sofreram tanto pelas mutações genéticas, morreram de fome mesmo, nos últimos dias em que nosso sistema contava apenas com alguns seres humanos, porém sem infra-estrutura necessária para mantê-los vivos. Deste modo, eu só pude contar com as seis pessoas anteriormente mencionadas, para tentar fazer alguma coisa…

— Algo não ficou claro para mim…

— Pois não, Ycobile-ee-to?

— O senhor disse que a nova taxa de radiação solar foi nociva para a sua raça, mesmo nos planetas mais distantes…

— Perfeitamente…

— Diga-me: isso não incluiu Netuno?

— Entendi a sua dúvida. De fato, incluiu sim. Acontece que, felizmente, as cápsulas de hibernação daquela nave com os seis cosmonautas eram suficientemente blindadas. Como eles não necessitavam de alimentação, pelo peculiar estado de hibernação que dá enormes vantagens de sobrevida à raça humana em situações assim, tudo o que tive que fazer, durante algum tempo, foi administrar seus sonos.

— Contudo, analisando os relatórios da minha equipe, vejo que não existem mais seres humanos, atualmente… — Yhujenana-ee-to deixou sua posição passiva na conversa entre os outros dois.

— Existem sim, mas de uma maneira especial. Antes de explicar isso, devo colocá-lo a par do que aconteceu depois da catástrofe; espero que vocês compreendam…

— Tudo bem. Fale.

— A atividade anormal do Sol prosseguiu por 21 anos, para depois voltar a ser como antes. Contudo, os planetas foram atingidos de tal maneira que muito mais que esse período de tempo foi necessário decorrer para que eles também voltassem ao estado normal. As atmosferas artificiais do microsistema de Marte foram, com o passar de alguns anos, destruídas. Marte e seus satélites voltaram a ser como na era pré-colonial, inteiramente deixados ao acaso da Natureza — e completamente desprovidos de vida. No microsistema da Terra, a história foi diferente. A superfície lunar foi arrasada, mas o interior foi preservado, como já falei anteriormente. Aliás, foi muita sorte minha a preservação de alguns computadores lá para sustentar a rede, o que influenciou diretamente na minha sobrevivência…

Ycobile-ee-to não procurou disfarçar a reação após ter começado a encaixar as verdadeiras peças do quebra-cabeça. Suspirou de maneira incomum, o suficiente para fazer com que o comandante virasse o pescoço. Cérebro parou de falar por um instante, verificou que aparentemente não havia nada de errado e continuou:

— A Terra, por sua vez, por pouco não teve a mesma sorte que Marte; mas a atmosfera resistiu, mesmo profundamente abalada. A camada protetora de ozônio, por exemplo, foi aniquilada por completo. Os fatores determinantes para a extinção de toda a vida na Terra foram, em ordem de importância: temperatura; depois disfunções naturais conhecidas como tornados, maremotos e tempestades; que trabalharam em conjunto, por sua vez, com as anormais atividades de vulcanismo e tectonismo. Esses fatores representaram o extermínio de quase toda a vida; porém, alguns microorganismos, de formação unicelular, conseguiram sobreviver. Aí entra o último fator: a radiação ultravioleta, que acabou por exterminá-los também. O planeta passou a ser unicamente um mundo efervescente, primitivo, sem qualquer traço de atividade vital. Sem nenhuma ação a curto prazo que pudesse ser realizada, restou a mim enviar uma nave-robô de resgate para ter acesso aos seis humanos adormecidos, para que pudesse “guardá-los”, por um certo tempo, num lugar mais adequadamente seguro — junto a mim, nos subterrâneos da Lua — e entrar num estado conhecido como stand-by, esperando que a Natureza cuidasse dos “ferimentos” planetários.

— Entendo. Por quanto tempo você, ou melhor, vocês… dormiram?

— Aproximadamente doze mil anos, Ycobile-ee-to. Mas saliento que foi um período calculado criteriosamente. Depois disso, voltei à plenitude funcional de meus circuitos, para trabalhar na Terra, que era, então, um humilde mundo rochoso com uma atmosfera venenosa…

— Porém, não é o cenário que encontramos hoje. Creio que você saiu-se bem na sua nova missão, sr. Cérebro. Como aconteceu?

— Meu grande trunfo foi a engenharia genética, comandante. No auge da civilização humana, os homens haviam desvendado todo o mapa genético de todas as espécies vivas. E, como os senhores sabem, todo o conhecimento humano de todos os tempos foi sempre em mim armazenado… Só tive o cuidado de remontar a vida, a partir de minúsculas amostras biológicas dos seis remanescentes humanos. Para o senhor ter uma idéia da perfeição da Natureza, posso dizer que a partir do Homem pude refazer todas as espécies que hoje existem. A grosso modo, primeiro, foram os microorganismos pluricelulares, depois as plantas, e, finalmente, os pequenos animais que temos hoje. A evolução, deixada ao acaso da Natureza, poderia levar perfeitamente alguns milhões de anos para estabelecer o ponto tal como era antes da catástrofe… Claro que, com o processo assistido constantemente por mim, com minhas constantes interferências a nível genético em todas as espécies, auxiliado por meus robôs, apenas alguns milhares de anos foram necessários…

— Perdoe-me a indelicadeza, sr. Cérebro, mas qual foi, afinal, o destino daqueles seis cosmonautas?

— Bem, após certificar-me que o equilíbrio do ecossistema da Terra fora praticamente reestabelecido — o que não aconteceu antes de três mil anos, foi uma tarefa bastante árdua — e já com as primeiras espécies diferentes relacionado-se entre si, criando uma cadeia alimentar constante, tratei de acordar os seis humanos, para que eles fossem integrados ao sistema… Era o que deveria ser feito, mesmo que isso representasse, para eles, viver em condições pré-históricas, como seus longínquos ancestrais Homo Sapiens.

Ycobile-ee-to ficava cada vez mais inquieto. O comandante, ignorando-o, prosseguiu no raciocínio da questão:

— Bem, vejo que você tentou. Deve ter sido um grande choque psicológico para eles quando ficaram sabendo de tudo… Contudo, observando que hoje não há mais seres humanos no planeta, tudo me leva a crer que eles não sobreviveram. Corrija-me se estiver errado, sr. Cérebro…

— Infelizmente, o senhor está certo, comandante. Por mais que eu tenha interferido no processo evolutivo da vida da Terra, as condições da Natureza não ficaram sendo exatamente iguais ao antigo modelo. De certo modo, o Meio Ambiente rejeitou aqueles seres estranhos ao novo sistema… Alguns vírus letais dizimaram os seis humanos em poucos meses, se é isso, afinal, o que o senhor deseja saber. Eles morreram, infelizmente, com doenças inéditas na história humana…

Aí Ycobile-ee-to não se conteve. Levantou-se, chamando a atenção do comandante pelo gesto inesperado:

— Comandante, posso falar com o senhor em particular por um momento? O senhor não vai se aborrecer, não, sr. Cérebro?

— Certamente que não. Por favor, fiquem a vontade.

— Ah, antes disso, só para verificar se as teorias que estou formulando são válidas, diga-me: o senhor ainda guarda alguma espécie de trunfo para reerguer a civilização humana, ou não estaria aqui agora, caso sua diretriz básica de preservação da espécie humana…

— Na verdade, uma de minhas diretrizes básicas é, mais especificamente, permitir a evolução humana, caro Ycobile-ee-to. — Cérebro começava a usar maior ênfase nas palavras. Ycobile-ee-to ficou em silêncio por alguns segundos, esboçando um sorriso desprovido de humor…

— Entendo. Entendo perfeitamente, sr. Cérebro. — o comandante Yhujenana-ee-to parecia um tanto perdido na conversa daqueles dois.

— Se é que vocês têm ainda alguma dúvida a respeito, algumas amostras humanas foram guardadas, para que eu possa desenvolver, geneticamente, a nova linhagem humana, adaptada à nova Terra. Só estou aguardando a época apropriada para introduzí-los no planeta. É um trabalho que requer cuidados extremos, se é que vocês me entendem. Felizmente, a paciência é uma das minhas maiores virtudes…

— Só por curiosidade, sr. Cérebro, antes que encerremos a conversa: no apogeu da tecnologia humana, vocês faziam algumas experiências no campo do hiper-espaço, não é mesmo?

— Sim, muito embora não tivéssemos tido tempo suficiente para aprofundarmo-nos nessa área da nossa tecnologia, antes do desastre. Na verdade, nossas experiências práticas só chegaram ao nível de enviar remotos sinais de comunicação entre planetas a uma velocidade bem superior ao limite da luz. Nada mais que isso…

— Tudo bem. Obrigado, sr. Cérebro, mas agora vamos desligar o circuito de comunicação da sala. Até mais…

— Até logo, senhores.

(continua)