A Sina (parte 2/2)

(continuação)

No dia seguinte, Sebastian foi surpreendido pela entrada abrupta de Harold na sua sala. “Esse cara tá ficando cada vez mais abusado…” — pensou.

— Bom dia, Sebastian. Já está sabendo da boa notícia?

— Você está falando da continuação do projeto, não? É, eu fiquei surpreso, pois o Dr. Samson me falou ontem que dificilmente poderia conseguir…

— Ah, você ficou surpreso, não é? Sebastian, você ainda vai ter muitas surpresas… Eu mesmo falei com o Dr. Samson, e olhe só… — Harold mostrou seu novo crachá.

— Que.. Que é isso, brincadeira? Você vai substituir o Dr. Hoerner? Como é que…

— Sebastian, digamos que eu… apresentei novas aplicações para o nosso projeto. — Harold acendeu um cigarro, sentou-se e colocou os pés na mesa, encarando o boquiaberto Sebastian.

— Eu não acredito! Como é que foram…

— Tá bom, Sebastian. Só porque você me ajudou um pouco, vou contar para você. Olha, o Dr. Hoerner errou ao denominar o projeto de “Psico-Comunicação”. Sabe, eu descobri que é muito mais que isso. Quando você usa o transmissor, você não está mandando simplesmente uma mensagem, como todos pensávamos. É uma ordem, Sebastian. Devido à região do cérebro atingida no receptor, a mensagem passa a controlar o subconsciente, fazendo com que, mais cedo ou mais tarde, você obedeça essa ordem, mesmo contra sua vontade, contra o que você chama de lógica, bom senso…

— O que é você está dizendo…

— Estou dizendo que, espontaneamente, o Dr. Samson não me daria esse cargo. Isso você até pôde desconfiar, não? Afinal, há um ano eu era apenas um estagiário, a última subespécie da hierarquia trabalhista. Um estagiário não é nada, principalmente aqui em Harvard. Mas isso é passado. Sabe, Sebastian, hoje eu tenho as senhas de todos aqui no Centro. Quando descobri as verdadeiras potencialidades do nosso sistema, tratei de montar um protótipo em casa. Só que só o usei depois de me certificar de todos os detalhes a respeito de seu funcionamento, ao contrário do que fez o Dr. Hoerner. Aliás, não foi tão difícil de perceber que era quase que inevitável um colapso total do cérebro usando o primeiro modelo. Eu usei o outro, e graças a isso hoje tenho quase o controle total do Centro…

— Você está precisando de férias, rapaz! — Sebastian ergueu um pouco a voz, lembrando que ainda era seu superior.

— Ah, Sebastian, eu ainda nem te contei metade! Quer saber, no começo foi um pouco trabalhoso para achar os níveis adequados de potência do transmissor, e isso fez com que minhas primeiras cobaias percebessem, a certo momento, que não eram mais donas da própria vontade. Foi o caso do Dr. Hoffman. O velho ficou maluco quando se deu conta que eu o estava usando. Um dia até tentou me matar, você acredita? Aí eu o moldei de modo a deixá-lo mais pacato. Ficou completamente inofensivo. Como medida de segurança, fiz o mesmo com todos vocês, meus servos, para evitar revoltas inoportunas.

Sebastian estava boquiaberto:

— Você ficou louco, Harold. Vou ter que desligá-lo de suas funções, comunicar o Dr. Samson…

— Comunicar quem, Sebastian? — Harold ergueu-se da cadeira, encarando-o — Abra os olhos, perceba que o Dr. Samson e todos vocês estão trabalhando para mim! Eu os programo, à noite, e vocês me obedecem! E o melhor de tudo, inconscientemente! Já há algum tempo você é apenas mais um servo meu, Sebastian. Como é que você tem dormido à noite? Ah, eu já tenho como dobrá-los a meus pés sem que vocês se manquem disso, agora que eu fiz os últimos ajustes no transmissor. Você lembra-se do seu último sonho, Sebastian?

Sebastian ficou calado, assustado.

— Claro, nem poderia! Vocês não têm mais liberdade para gastar suas noites com sonhos inúteis. Eu os moldo, à minha vontade, quando vocês adormecem. Oh, Sebastian, mas você é tão cético, parece não engolir o que estou te confessando…

Harold deu um tapa no rosto de Sebastian. Este levantou-se para revidar, mas não pode mexer o braço. Sua maior vontade era de afundar o nariz daquele sujeito, mas ele não tinha como fazê-lo. Tremia, mas ficou simplesmente de pé, olhando para seu braço.

— Que foi, Sebastian? Não vai reagir, não? — deu mais um tapa, mais forte, dessa vez na outra face do rosto. Sebastian ficou de pé, tremendo; surgiram algumas lágrimas, lágrimas de ódio. Harold andava pela sala, com as duas mãos atrás da nuca, numa pose de quem estava satisfeito com o resultado do trabalho.

— Tá, agora senta. Ainda tenho algumas coisas para falar. Sabe, eu descobri que, paralelo ao seu trabalho de destrinchar senhas, o Dr. Hoffman desenvolveu uma teoria interessante: a possibilidade de haver uma senha geral do ser humano, inerente à própria raça. Em outras palavras, com essa senha especial, seria possível entrar em contato com toda a humanidade, simultaneamente. E você sabe o que eu quero dizer com “entrar em contato”, não é, Sebastian?

— Você é doente, Harold.

— Hmm, ainda estou sentindo algum rancor em você. Mais tarde, quando você for se deitar, eu vou tratar de deixá-lo mais sociável, OK? Mas, continuando, o Dr. Hoffman não contou isso para ninguém. Sebastian, um dia eu percebi que ele estava nervoso, inquieto, ao contrário do seu jeito natural. Aí ele acabou me falando a respeito da sua teoria, e que estava próximo de confirmá-la, através das novas aplicações descobertas para o sulfato de prognenolona. Mas o detalhe é que, no fundo, ele não acreditava que pudesse chegar a obter essa senha, na prática. Acontece que ele chegou muito perto, pelo que me contou, e isso o fez ficar com medo. Talvez ele soubesse que a Psico-Comunicação não era tão inofensiva assim, e quis evitar que os militares ficassem sabendo. Se eles sequer desconfiassem, já seria um grande estrago. Pessoalmente, concordo com ele. Só que o velho alemão resolveu radicalizar: queimou todos os seus dados a respeito dessa senha. Agora, depois de assumir o controle aqui do Centro, vou continuar o seu trabalho. Bem, começar tudo do início, na verdade. Claro que não para os militares, mas para mim. Daí, de Harvard para o mundo, será um passo.

— Mas se você conseguiu todo esse poder, poderia fazer o Dr. Hoffman falar…

— É, Sebastian. O problema é que não fui muito inteligente, no começo. Ninguém é perfeito, sabe? O Dr. Hoffman era uma das poucas pessoas que tinham consciência que estavam nas minhas mãos. Eu, quando tomei as medidas para evitar que vocês pudessem me atacar, não pensei no outro lado… Ele se suicidou, ontem à noite. Claro, logo depois que fiquei sabendo disso, eu ordenei às suas mentes que não permitam suicídios ou assassinatos entre vocês, servos. Mas quanto ao Dr. Hoffman, agora é tarde demais… Mas não se preocupe: com a ajuda de vocês, eu chegarei lá.

Sebastian colocou a cabeça entre as mãos, cabisbaixo: “Nós fomos longe demais, Dr. Hoerner…” —pensou.

— Não fique assim, Sebastian. Na vida, sempre houve mestres e servos. Eu fiz por merecer, sabe? Sem falsa modéstia, eu é que enxerguei o tínhamos em mãos. Você há de concordar comigo que se isso caísse nas mãos do pessoal do governo, seria desastroso. Como no século passado, quando ainda eram permitidos os testes nucleares. Você deve estar lembrado daquela famosa sétima explosão nuclear francesa — que ficou conhecida como a “não-oficial” — no atol de Mururoa. Eu não era nascido ainda, mas foi fatídico, não é? Pois então, acho mais do que natural eu mesmo usar o sistema para… remodelar o mundo. O mundo… Sebastian, ele não é justo com todos. Mas eu tentarei dar um jeito nisso. Na verdade não tenho escolha, meu amigo. Sou o único que poder fazer isso. O que as pessoas precisam é de um mestre. Eu até dividiria isso com o Dr. Hoerner, a quem devo quase tudo o que sou hoje, mas o infeliz foi cometer um erro daqueles… Bom, já que a única pessoa que merecia um prêmio ficará inválida pelo resto da vida, cabe a mim tocar o barco.

— Você quer falar em justiça? Isso não é justo, pense bem, inutilizar a vontade própria de bilhões de pessoas… Zumbis, isso é o que você conseguirá!

— Não, eu farei do modo certo. Tenho minhas pretensões. Até pouco tempo atrás eu estava cego; agora vejo qual é o meu verdadeiro destino, minha real missão nesse mundo. Sebastian, se houve uma vez uma pessoa capaz de ter pensado nisso antes, esse era o Dr. Hoffman. Ele soube de tudo, antes que eu me desse conta, quando minhas maiores aspirações na vida se resumiam a um cargo melhor aqui em Harvard. Ele poderia ter dominado a nós todos, se quisesse. Mas o velhote era um sexagenário, enquanto eu estou com meus 21 anos. Acho que esse é o diferencial: eu tenho o ímpeto de mudar o mundo, como toda pessoa na minha idade, mas sou o único que tenho o meio para isso! Aliás, tive uma boa idéia agora: que tal vocês me tratarem por Mestre Harold? Ou melhor, Mestre Bush, para honrar a família. Mestre Bush, o que você acha, Sebastian? Soa bem? Ah, antes que eu me esqueça do motivo de ter vindo aqui: preciso de sua ajuda, já que você tem acesso total na rede. Eu quero acesso livre e irrestrito ao Jones. Você poderia criar um endereço eletrônico para mim, por favor? Isso já seria um bom começo, servo…

— Vá para o inferno, seu calhorda… Droga… Jones, cadastre Harold para acesso…

Nos primeiros dias do ano que se iniciava, foi desenvolvido um transmissor que permitia acesso à pessoas conscientes, acordadas. Para Richard, teria sido a glória, mas de nada serviu a Harold, já que esse sistema não funcionava para escravizar as pessoas. Meses depois, a equipe do Centro descobriu a senha especial. Os historiadores do futuro marcaram este dia, 20 de março de 2023, como o início do reinado do 3º Anti-Cristo, Harold Bush, que levou a humanidade ao seu inevitável destino final. Como sempre, muita gente em mãos de uma única pessoa, mesmo com as melhores intenções, levava sempre ao mesmo resultado negativo, concluíam os historiadores. E assim foi, conforme o previsto, misteriosamente, há milhares de anos. Os poucos historiadores já não precisavam se preocupar com o vasto passado humano, mas com o breve futuro que viveriam. Enquanto eles eram somente simples historiadores, claro.

“Achou que eu tinha te esquecido, hein, amigão?

Não ficou um clima legal entre a gente, né? Tá, vamos esquecer toda essa confusão e voltarmos a ser bons e velhos amigos, tudo bem? Venha passar o reveillon com a gente, aqui em Detroit, Richard. Vamos começar um ano novo de bem com a vida, O.K.?

Ah, antes que eu me esqueça: Feliz Natal e um próspero Ano Novo!

Um beijão da sua amiga,

Carol Hartt”