A Primeira Morte

Em 1507, ele nasceu pela primeira vez, sob o nome de Charles Mapstone, na pequena Sunderland, Inglaterra. Sua última passagem pela Terra ocorreu em 1990, em Jequitinhonha, Brasil, desta vez chamando-se João Silveira. Mas sempre preferiu ser chamado de Charles, entre uma vida e outra.

Encontrava-se agora se despedindo de uma alma conhecida:

— Eu sempre te achei meio rebelde, Charles, mas isso aí… você tem certeza?

— Absoluta, meu amigo. Não se preocupe comigo. Cada homem acaba encontrando seu verdadeiro destino, Duff. Mais cedo ou mais tarde, mas acaba encontrando…

— Bom, nesse caso… Siga em frente. Que mais posso lhe dizer? Você sabe perfeitamente o que irá acontecer. Mas se é sua vontade…

— Só tenho uma coisa a falar. Para você, e para todos os outros… Adeus. Estou deixando-os definitivamente. É isso, Duff… Foi bom ter conhecido alguém como você. — Charles sorria, enquanto se voltava para o Portão e fazia a última saudação de despedida.

— Adeus, Charles. — Duff sussurrou, voltando os olhos para a Terra.

Passou pelo Portão e pediu auxílio ao anjo mais próximo, pois uma simples alma humana não tinha o poder de, sozinha, colocar-se à presença do Criador. Antes de elevá-lo à Condição Suprema, o anjo comentou:

— Charles, você acabou se tornando muito famoso aqui no Plano Superior. Todos os arcanjos comentam o seu caso. Devo admitir que você tem muita… coragem.

— Olha, não me importo com toda essa badalação. Não fiz isso, ou melhor, não farei isso pela fama. Até porque, no final, o que conseguirei? Vocês não estarão lá para… me aplaudir. Bem, faça sua parte agora.

— Tudo bem, Charles. Feche os olhos.

O anjo então pôs a cabeça de Charles entre suas mãos, olhou para o alto e falou algo na Língua Original. Os olhos iluminados do servo de Deus fitaram o rosto do humano e, em poucos segundos, o corpo-alma não existia mais, dando seu lugar ao vácuo matéria-energia absoluto.

A existência de Charles expandiu-se por todo o Universo, em velocidade absurdamente inimaginável. A experiência deixou-o extremamente assustado mas, simultaneamente, maravilhado. Não conseguia raciocinar se toda aquela viagem durou muito ou pouco tempo, pois a dimensão-tempo havia sido rompida, desde que ele havia deixado o Plano Superior.

De repente, encontrou-se então diante d’Ele.

— Olá, Charles. Seja bem-vindo, meu filho.

— O… Olá … Senhor.

A perfeição e beleza da figura do Criador diante de si emudeceu Charles, que permaneceu admirando aquela visão magistral, sem falar mais nada.

— Charles, sei porque você está aqui, mas quero ouvir suas próprias palavras.

— Ah… Ah, sim, desculpa. É que… é tudo tão… perfeito… por aqui… Oh, agora entendo porque, enquanto vivos, materialmente falando, não temos como ver o Seu rosto… Não conseguiria descrever isso para outra pessoa… Puxa, há muita… harmonia, se é que esse é o termo mais adequado, por aqui. Sinto-me em paz, Senhor. E é uma sensação que há muito não experimento. É extremamente agradável por aqui.

— Charles, toda vida humana, nesse estágio, sente-se assim. Aqui as almas alcançam seu desenvolvimento absoluto. Toda sua raça chegará, um dia, até onde você encontra-se agora. Vocês, meus filhos, existem por isso e para isso. Mas por não aceitar essa situação, você quis me ver.

— Senhor, apesar de agora poder encarar toda minha vida com outros olhos, devido ao Nível em que me encontro, não posso enganar-me. Nem a mim, nem ao Senhor. Acredite: devo ser exterminado.

— É muito triste, meu filho. Se mesmo aqui, na Condição Suprema, você continua a pensar desse modo, nada poderei fazer. Realmente, você foi um dos seres que mais sofreram lá embaixo. Mas todas as pessoas, mesmo que isso demore mais para alguns, chegam a se realizar, encontrar a felicidade. Vocês dispõem de toda a eternidade.

— A eternidade… Sinto muito, mas não posso. O Senhor sabe de tudo que aconteceu comigo através desses séculos. Nasci inglês, numa época difícil, num lugar difícil. Fui comerciante. Me apaixonei por Catherine, mas ela era de uma família nobre, e foi prometida a um aristocrata local. Também, ela nunca quis nada comigo. Mas eu insistia. Ah, ela era muito linda. Falei para ela. Aí sim ela se afastou. Mas eu enlouqueci. Procurava-a todos os dias. Seu pai me ameaçou. Não dei ouvidos. Mandou os capangas dele me bater. Fiquei num estado deplorável. Passou algum tempo, eu me embriaguei como nunca, fui atrás de Catherine e seu noivo, e fiz a besteira maior da minha vida. Ou melhor, da primeira de minhas múltiplas vidas.

— Você já pagou por isso, Charles.

— Bem, o Senhor me perdoou, mas Catherine nunca o fez, e nunca o fará. Ela não chegou a viver dezoito anos por minha culpa. Eu estraguei tudo, quando tirei sua vida. O irmão dela vingou-se depois, ao me cortar a garganta. Sabe, demorei um pouco para morrer. Continuei alguns segundos olhando para a expressão de ódio em seu rosto, enquanto me afogava no próprio sangue. Meu corpo foi retalhado e meus pedaços, jogados aos abutres. Tudo bem, eu fiz por merecer…

— A violência humana nunca justificou nada.

— O.k., e então, ao cair no Purgatório, aceitei o acordo: ter uma nova chance na Terra, para substituir a infeliz vida de Charles Mapstone. Ou pagar no Inferno. E reencarnei. Mas falhei, em todas as minhas chances. Ou o mundo falhou comigo. Fui padre, soldado na Primeira Guerra, monge, músico, tive vidas distintas. Também fui ninguém, a maioria das vezes. Como essa minha última passagem, no Brasil. Morri de fome sem ao menos chegar ao meu primeiro ano de vida. Aliás, todas as minhas mortes foram horríveis. Talvez porque em todas as minhas vidas fui o pior exemplo de um homem. Nunca fui alguém, de verdade. E os meus erros foram mortais, ao longo dessas centenas de anos que existo. Então me enchi disso tudo. Rejeitei nascer de novo. Desci ao Inferno. E fui atormentado, com todos os outros condenados da Terra à danação eterna. Mas o Diabo acabou me expulsando, quando percebeu que não conseguia me fazer sofrer mais que quando eu perambulava pela Terra. Façanha de poucos.

— Como disse, assim suas dívidas foram pagas. Você ainda pode tentar…

— Não, obrigado. Minha maior punição é a minha existência. Sabe, alguém tinha que falhar. O Senhor criou bilhões de pessoas, não se culpe por apenas uma delas querer morrer, de verdade, por ter sido um erro. Eu sou um erro, uma peça defeituosa, por séculos pude confirmar isso. Não me encaixo, não faço parte de nada. Minha alma não descansará enquanto eu a tiver. É o melhor a ser feito: por favor, Mestre, me extermine!

— Charles, mesmo os suicidas, quando chegam aqui, e ficam sabendo da possibilidade da aniquilação completa, rejeitam a idéia, por acabarem encontrando seus verdadeiros motivos de existir. Todos eles agiram dessa forma. Nunca exterminei alguém antes, mas não forçarei você a mudar de idéia. Mesmo sendo Deus, não tenho como fazê-lo. Alguma última palavra?

— De nada adiantam minhas palavras, se não deixarei lição alguma, por não mais existir. Conforto, não terei, não existindo, mas ao menos também não terei que carregar mais a agonia eterna de ser alguém errado. Bom, como sua criatura, devo louvá-lo, por ter feito um mundo tão belo quanto a Terra. As pessoas é que não são tudo o que a gente espera delas, às vezes. Bem, é isso… Adeus.

Deus então o apagou. Seus registros na Terra foram queimados; suas vidas, extintas. Seus atos, suas influências, suas memórias, aniquiladas. Sua não-existência preencheu todo o Universo. Toda a História foi reformulada, instantaneamente. Não existe mais nenhum Charles Mapstone. E a partir de agora, nunca existiu.