Quintessência
QUINTESSÊNCIA
Desolação...
Até onde a vista pudesse alcançar, a terra era um deserto de escombros, crateras e solo revolvido; fumaça e regiões inteiras ainda sendo consumidas pelo fogo. Entre tudo isso, muitos restos de munição; carcaças calcinadas de tanques, blindados parcialmente destruídos e muitos corpos, milhares deles tombados na última tentativa desesperançada de oferecer alguma resistência. Outras centenas ou milhares estavam sepultados nos edifícios e demais construções usados como pontos fortificados. Não havia mais um único lugar intocado pela destruição.
O sargento Korso emergiu de sua inconsciência causada pela forte concussão na cabeça, resultado da imensa explosão que havia posto abaixo o prédio da universidade na qual seu batalhão, em que ele era o oficial de patente mais alta que havia sobrado vivo, estabelecera o seu foco de oposição.
Korso voltara a si, disso tinha certeza, porém tudo ainda se encontrava escuro; um breu absoluto.
O que havia mesmo acontecido? Sim... A luta, os gritos, os tiros e afinal o impacto, e todo o mundo vindo abaixo qual num terremoto. Uma dor terrível lhe deu a constatação de que seu corpo estava todo quebrado por dentro de sua armadura de combate blindada. Parou para ouvir buscando encontrar qualquer sinal de que havia mais alguém vivo ali em sua companhia. Chamou pelos companheiros de batalha.
Silêncio total...
Apenas teve a impressão de escutar o ruído de algum edifício acabando de ruir, ou o vento atiçando o fogo dos incêndios. Fazia um pouco de frio ali dentro mesmo que não houvesse qualquer fresta proporcionando ventilação. O sargento então admitia para si próprio que estava sepultado vivo sob todas aquelas toneladas de concreto, aço, vidro e pedras do que um dia fora uma obra imponente. Pensou nos outros, ao menos haviam escapado de ter que esperar pela morte que lentamente chegaria.
Korso fechou os olhos, ainda que estando no escuro, encontrava-se tão debilitado que suspeitava não permanecer consciente por muito mais tempo, e que não acordaria mais uma vez, definitivamente.
Assim ele o fez. Antes que pudesse se concentrar e tentar ignorar a dor de dezenas de ossos quebrados, ouviu o som de pequenas quantidades de areia e pedras se derramando, algumas caíram e bateram ao seu lado; um pouco pó e pedrinhas menores choveram sobre sua cabeça. Logo um barulho mais alto e ameaçador fez o relevo onde o sargento estava deitado de costas tremer fortemente, diminuindo pouco depois de alguns momentos.
“Que bom, a sorte me ajudou e resolveu terminar com isso mais cedo” Korso pensou. Os tremores recomeçaram com mais força e em pouco tudo ao redor passou a se sacudir; o último remanescente do batalhão apertou os olhos e cerrou os punhos doloridos esperando o resto do prédio desabar sobre ele e completar o serviço. Seguidas de um ruído ensurdecedor, várias frestas de claridade foram surgindo; pedras e pedaços grandes do edifício foram caindo e nuvens de poeira acompanhadas de chuviscos de terra eclodiram. Korso não resistiu à curiosidade e abriu os olhos. Já deveria haver terminado... Mas diante dele estavam o céu cor laranja do entardecer e abaixo, a visão triste de uma terra arrasada, varrida e despedaçada em qualquer direção que olhasse, sendo devorada em grande parte pelas chamas, tampando um bom pedaço do céu com sua fumaça negra; eram as únicas coisas que se mexiam.
Os tanques, os retalhos de aeronaves derrubadas; canhões retorcidos, os corpos; o sargento via agora novamente a extensão de todo o caos que existira antes que a fortificação em que ele e todos os outros lutavam fosse atingida. Então, havia sido o fim não apenas para ele. Os tremores cessaram, as pedras pararam de cair e rolar, a poeira baixou. Tudo subitamente. A construção não havia desabado sobre sua cabeça, ainda estava um pouco acima e atrás de si. Ela havia se aberto à sua frente, enormes fragmentos de paredes, pilares e sobras de escadarias haviam se afastado para os lados.
Não viu quaisquer sinais dos companheiros, apenas um canhão portátil jazia retorcido, enterrado até a metade pelo entulho... De repente um clarão azul explodiu no ar, bem perto do que um dia havia sido a universidade. Quando abriu mais uma vez os olhos, viu uma figura pairando no ar a dois metros e meio de altura e a mais alguns de distância dos escombros. Dando a impressão de não estar se mexendo, a figura se aproximou, parando a outros dois metros do soldado que agonizava.
Korso estaria espantado, agitado; fazendo-se um milhão de perguntas em voz alta, no entanto estava curiosamente tranquilo. Não se deu ao trabalho de examinar os motivos. A figura tinha os contornos de uma mulher, mas seu corpo era todo translúcido, como se fosse feito de vidro ou cristal azulado pouco mais escuro que o azul do céu. Seu rosto, ou o que parecia ser um, tinha poucos traços; apenas os olhos e o nariz, não havia boca. As órbitas não possuíam pupilas, estavam tomadas de uma luminosidade de plasma fosforescente e azulada, quase branca.
Dentro da cabeça, onde deveria existir um cérebro, havia uma centelha luminosa e prateada do tamanho de uma bola de tênis. No topo da cabeça da mulher saíam algumas formas irregulares, o que pareciam ser algum tipo de penteado ou coroa, dando um aspecto de ave de rapina ou de que o crânio fosse mais alongado na parte de trás, Korso não soube dizer, assemelhavam-se a uma peça única. Com os braços rentes ao corpo o estranho ser ficou a olhar para ele. O sargento esboçou um sorriso.
_ Olá madame. Afinal vejo pessoalmente o que todos os rumores diziam. Então... Finalmente acabou? – disse ele com a voz cansada.
_ Na verdade acabou há muito mais tempo do que você supõe. Tudo o que viu e viveu nas últimas horas foi uma limpeza posterior – falou-lhe a mulher, enfim. Korso não sabia se seus sentidos o estavam enganando devido a sua situação, mas a voz dela parecia ter o tom muito semelhante ao da voz de sua mãe.
_ Claro... Eu compreendo... – disse o sargento. Aos poucos a memória voltou.
Quando os primeiros sinais de que enfrentavam algo sério haviam ficado claros, toda a Primeira Frota de Cruzadores Espaciais; a ponta de lança desaparecera sem pistas. Depois foram a Segunda, Terceira e Quarta; a seguir as bases avançadas nos planetas próximos enviaram mensagens de que estavam sob ataque e que se preparavam para retaliar. Depois não veio mais nada delas.
Sem rememorar detalhes Korso se lembrou da incrível velocidade com que todas as defesas externas de seu planeta foram sendo destruídas, e também a mesma facilidade com que a força aérea e o exército em terra foram sendo aniquilados. Os mesmos que não foram suficientes nem para atrasar a destruição do Estado-maior e de todos os governantes; não houve escapatória para ninguém.
Quando a divisão do sargento e algumas outras que ainda se encontravam em atividade se preparavam para a resistência, acantonados no que ainda restava da cidade da capital, todos já sabiam ser fato que o outrora belíssimo palácio governamental, àquela altura não mais era que uma gigantesca cratera fumegante no solo. Não havia nenhuma outra opção...
Ficar e lutar até o final.
_ Se vai acabar, pode ao menos dizer “o que” exatamente é você? – Korso o indagou.
_ Venho de "Tertúlia", o planeta natal e lar de bilhões de "Narjalos." Muitos não sabem, outros tantos não acreditam, e ainda há os que sabem; acreditam, embora subestimem; todo Narjalo possui uma grande energia, um inigualável poder dentro de si. Tertúlia não possui exército, nunca possuiu. Devido ao seu poder nato nunca houve preocupação em recorrer a armas e constituir defesas. No decorrer de milênios muitos invasores interpretaram sua condição como um sinal de fraqueza. Não posso lhe explicar a origem de tal poder, pois sua mente não se encontra num estágio de desenvolvimento suficientemente adequado para inteligir tamanha informação. Dita natureza torna cada Narjalo conectado um com o outro.
Tertúlia nunca buscou retaliação e vingança pelas agressões sofridas, ainda que em algumas ocasiões tenha pagado caro por esta escolha. Mas após sucessivas invasões, a Câmara dos Catedráticos, a junta dos mais destacados dos cidadãos escolhida para governar, decidiu que a “corrente” deveria ser interrompida, e para sempre. Cada habitante de Tertúlia usou de sua capacidade para conceber sua única, definitiva e mais poderosa arma.
Sou fruto da energia cósmica de cada um dos membros vivos de Tertúlia; três quartos do que há de mais negativo em qualquer ser vivente do Universo, combinado com um quarto do que há de mais racional. Sou a projeção de cada um dos seus nove bilhões e seiscentos milhões de habitantes.
_ Foi definido como minha missão encontrar e destruir toda ameaça: direta e potencial, à existência plena de Tertúlia. Seu planeta e seu povo eram uma delas, mas não foram os primeiros, três outros vieram antes de vocês. Foram detidos a tempo de evitar qualquer tentativa de ataque.
_ Está certo, não duvido de que não haja por aqui mais qualquer exército. Sendo assim, o que vai ser feito do povo? – o sargento perguntou para a criatura.
_ Não vai, porque já foi feito – respondeu a mulher.
_ Mas então... Por quê?
_ Não se preocupe com ele, porque ele não sofreu embora isso tivesse que ser feito. Foram todos "diluídos" e sua energia e sua essência transcendidos para um lugar bom. Estão todos melhor agora. Garanto. O que foi feito ao seu exército tem o intuito de servir como um exemplo e um recado claro a serem levados a todos aqueles que carregam igual ambição em seus espíritos.
Korso não se deu ao trabalho de pedir pormenores, a dor das múltiplas fraturas voltou a se manifestar com força, ele mal conseguia se mexer ou mesmo respirar corretamente.
_ E o que você quer comigo?
_ Você é o "último" – disse a voz que parecia falar dentro de sua cabeça. – Assim, então, minha missão estará completada.
O sargento não retrucou, não duvidava que aquela mulher, ou o que quer que fosse aquela entidade, estivesse falando a verdade. Ela estava à sua volta.
_ Está na hora – anunciou a "mulher."
Korso fechou os olhos pelo tempo em que respirou profundamente. Logo voltou a fitá-la.
_ Está tudo bem, pode ir em frente. Faça o que tem que fazer, eu sei como é – disse ele com calma.
Num gesto suave a entidade ergueu seu braço direito esticado, levantando a palma da mão aberta e virada para o soldado. Segundos depois a centelha dentro de sua cabeça passou a brilhar com mais intensidade e depois a retroceder alternadamente, qual a um coração a pulsar. As dores no corpo destroçado de Korso cessaram. O mesmo fora inteiramente tomado de uma curiosa dormência, com algo de reconfortante. Sentiu sua percepção da realidade que o cercava mudar, como se a enxergasse por intermédio de um sonho. Em dado momento percebeu que seu corpo se elevava do chão, só não sabia afirmar se estava mesmo acontecendo ou não. Korso já não era mais dono de si.
O momento da inconsciência absoluta se aproximava, mas mesmo em pensamentos o sargento não lutou contra aquilo. Contradizendo o que a maioria das pessoas sempre temia, não era ruim; ao contrário... A mulher tinha razão... A centelha na cabeça dela parou de pulsar e seu brilho se fez apenas continuar aumentando, mais e mais... Assim, tal luminosidade ofuscou sua visão suplantando qualquer outra imagem. O sargento Korso caiu em seu prazeroso sono profundo, desligando-se de tudo o que compreendia por existência; transcendeu distâncias e descobriu ser verdade aquilo que sempre fora a pergunta crucial em qualquer mundo conhecido: Havia mesmo um lugar melhor e nem tudo significava o fim.
A mulher baixou o braço. Cumprira sua missão. Pouco depois estendeu ambos, virando as palmas para cima e inclinando a cabeça para o céu, como se estivesse em adoração a alguma divindade que lá habitasse.
_ Mestres, minha missão está terminada. Quais são suas próximas ordens? – perguntou ela.
_ Ela ainda não está completa – disse a voz em sua cabeça, que parecia ser as vozes de bilhões se seres agindo em um perfeito uníssono.
_ Não? O último deles foi destruído. O que ainda falta?
_ O planeta ainda existe – continuaram as vozes. – Poderá ser daqui a milhões de anos, poderá ser daqui a eras incontáveis, mas há uma chance de que a vida retorne a ele e novamente floresça, tornando-se nova ameaça. Não devemos admitir qualquer possibilidade. Termine, agora sim, sua tarefa. Depois, queremos que parta para o seu próximo alvo. Sua ordem é para que siga até o "planeta azul."
_ O "planeta azul?" Mas mestres, ele ainda está incomensuravelmente aquém de se tornar uma ameaça para Tertúlia.
_ Fizemos nossos cálculos e nossas previsões irrefutáveis apontaram que se tornará. Não importa se será hoje ou amanhã, isso é um fato. Portanto, vá para o "planeta azul."
_ Sim, mestres...
A entidade descansou os braços e aprumou sua cabeça. Ocupou-se de arrematar o último detalhe de sua missão. Mais tarde estando no espaço, acertou o curso para seu próximo destino. Seu corpo feminino e translúcido converteu-se numa esfera de luz azulada mais intensa do que fora até então, e disparou feito um cometa para o escuro infinito. As ordens eram claras.
A mulher partiu rumo ao "planeta azul..."