A derradeira decisão - Parte 1
O tenente Hiroshi Fuchida retirou por um momento a máscara de oxigênio do rosto e inspirou profundamente o ar gélido e rarefeito pela altitude de cinco mil metros na qual seu avião se encontrava. Um forte cheiro de óleo queimado invadiu suas narinas, combinando-se com o barulho do potente motor de seu aparelho que voava na direção sul-sudeste desenvolvendo uma velocidade pouco inferior a trezentos e cinquenta quilômetros por hora. Este cheiro já lhe era bastante familiar e o fazia sentir-se relaxado e à vontade, por isso ele havia retirado sua máscara.
Após a decolagem ele precisara voar em largos círculos em torno de seu aeródromo durante mais de vinte minutos, aguardando que todos os pilotos envolvidos na missão pudessem também decolar e juntar-se à formação. Embora nas missões anteriores ele achasse estas manobras de preparação terrivelmente entediantes, hoje ele não teve a mínima pressa em terminá-las e colocar-se a caminho de seu objetivo. E ao pensar neste fato ele sentiu um ligeiro rubor subir às suas faces encovadas pela má alimentação dos últimos meses, causado pela vergonha que sentiu de si mesmo. Hoje, mais do que nunca, ele deveria estar ansioso para encontrar os inimigos de sua nação.
Ele sacudiu rapidamente a cabeça procurando afastar estes pensamentos confusos e olhou para fora da carlinga, observando as outras aeronaves de sua esquadrilha. Seu aparelho era o quarto elemento do segundo grupo da formação, composto por sete aviões Aichi D3A2, bombardeiros de mergulho projetados para operações a partir de navios aeródromos. Eles haviam sido construídos três anos antes para equipar a força de ataque da esquadra imperial do Japão, mas primeiro o surgimento de modelos mais modernos e depois a destruição dos últimos porta-aviões operacionais japoneses na Batalha do Golfo de Leyte fizeram com que ficassem quase esquecidos em um depósito militar por todo este tempo. Agora, com a aproximação da frota americana que despachava continuamente aeronaves de bombardeio para atacar todos os pontos do Japão, eles haviam sido finalmente ativados, operando a partir de aeródromos em terra.
Ele e seus companheiros tinham decolado já havia uma hora e meia e a qualquer momento atingiriam seu objetivo. Olhando em frente ele pôde ver os aviões do grupo dianteiro de escolta, oito aparelhos Nakajima Ki-84 Hayate, centenas de metros acima e vários quilômetros à frente, quase imperceptíveis contra o céu azul escuro salpicado de nuvens brancas. Até duas semanas atrás ele mesmo era um membro daquela esquadrilha e realizava missões de escolta exatamente iguais à que eles estavam agora executando, mas hoje ele tinha uma missão mais importante e seus antigos companheiros serviam de escolta para ele.
Atrás deles, afastados mais dois quilômetros, seguia o terceiro grupo da formação, composto por uma enorme miscelânea de aviões dos mais diversos tipos e idades, desde grandes bombardeiros bimotores Mitsubishi G4M razoavelmente modernos até pequenos e velhos caças Nakajima Ki-27, retirados de depósitos onde estavam encostados desde antes do ataque a Pearl Harbour. Este grupo heterogêneo era composto por mais de quarenta aeronaves e seguia em formação bastante espalhada, não por qualquer motivo tático mas simplesmente para evitar que seus pilotos mal treinados e inexperientes levassem seus aparelhos a chocarem-se uns com os outros durante a viagem.
A mente consciente do tenente Fuchida sabia que ele devia controlar suas emoções e se concentrar totalmente no sucesso desta missão, mas ele não podia evitar que seus pensamentos divagassem livremente enquanto controlava sua aeronave de forma totalmente automática, quase sem perceber o que se passava à sua volta. No momento ele pensava em seu pai, um severo e orgulhoso oficial naval de artilharia que servira a bordo do veloz encouraçado Kirishima, um dos orgulhos da marinha imperial. Antes de partir em sua derradeira missão seu pai havia ido assistir à sua graduação como piloto da força aérea japonesa, e esta fora à única vez em sua vida que ele se lembrava de tê-lo visto com os olhos marejados de lágrimas. A esta altura seu irmão mais velho, Kagiro, já era piloto da marinha e estivera voando aviões torpedeiros Nakajima B5N e lutando na defesa de sua nação e de seu imperador por mais de um ano. Seu porta-aviões estava navegando nas proximidades da Nova Guiné, para onde seu pai seguiria em breve, e ele não havia podido comparecer à cerimônia, mas mesmo sem a sua presença seu pai não podia conter o orgulho de ter dois filhos pilotos de combate e comentava com todos os que se dispunham a ouvir sobre a grande bravura de seu filho mais velho e sobre como o mais moço iria certamente seguir os passos do irmão. Ele não podia imaginar o quanto estava certo com relação a isto.
Seu pai morrera poucas semanas depois, quando seu navio foi afundado em um duelo com encouraçados americanos na batalha de Guadalcanal. O porta-aviões de seu irmão fora destruído um ano e meio mais tarde, mas Kagiro foi um dos poucos pilotos a sobreviver à batalha das ilhas Marianas e retornou ao Japão para aguardar a construção de novos navios de onde seu esquadrão pudesse operar. Os dois jovens irmãos pilotos haviam morado juntos em sua própria casa por vários meses enquanto o mais novo voava em missões de patrulha contra os ataques dos bombardeiros americanos às instalações e cidades japonesas e o mais velho aguardava uma nova oportunidade de atacar o inimigo. Durante este tempo eles haviam conversado bastante sobre a morte de seu pai e ele podia se lembrar de que o sentimento dominante em ambos era o de orgulho por saber que ele dera a vida para proteger sua nação e o imperador. Hiroshi se surpreendia agora ao perceber que nenhum deles jamais comentara a tristeza que ambos estavam certamente sentindo pela perda do velho pai, sempre rigoroso e sempre muito amado.
Alguns meses depois seu irmão foi novamente enviado para combater o inimigo a partir de um outro porta-aviões, na batalha do golfo de Leyte, pilotando agora um novo torpedeiro Nakajima B6N. Mais uma vez o navio de seu irmão foi afundado, e ele novamente sobreviveu e retornou para casa, agora cansado e desiludido com relação ao futuro. Não havia mais porta-aviões aptos a navegar na marinha imperial japonesa e o mais velho dos dois irmãos Fuchida foi designado para operar a partir de bases em terra na ilha de Okinawa, deixando apenas o jovem Hiroshi para fazer companhia à sua mãe e sua irmã. Algumas semanas antes do irmão sair para esta missão ele havia comemorado a formatura da irmã no curso de enfermagem, e a partir deste momento ele e Kagiro podiam estar seguros de que ela estaria apta a cuidar de si própria e de sua mãe sem precisar da ajuda deles. Isto tirou um peso das costas dos dois irmãos e teve influência direta nas decisões que eles tomariam mais tarde.
Hiroshi ainda se lembrava nitidamente de como havia ido assistir à última decolagem do irmão em seu torpedeiro Nakajima, em uma madrugada nebulosa e fria havia quatro meses. Após a destruição da última força de porta-aviões japoneses em Leyte ele havia retornado para casa como herói, mas estava amargurado e desiludido com o que agora percebia ser o curso inevitável da guerra. Mais cedo ou mais tarde o Japão seria totalmente derrotado e as mortes de tantos dos mais valentes soldados do imperador durante todos aqueles anos, inclusive a de seu pai, teriam no final sido em vão. As forças americanas eram agora tão absolutamente superiores em número às japonesas que nem mesmo uma paz negociada seria aceita por eles. À sua pátria só restava um objetivo pelo qual lutar: Sua honra!
Mas como conseguir manter a honra quando o país inteiro era de tal forma desmantelado pelos ataques da aviação inimiga que nem mesmo um contra-ataque limitado podia ser organizado? Os poucos aviões de caça que ainda podiam decolar, como o de Hiroshi, eram insuficientes para manter afastadas as imensas esquadrilhas de bombardeiros americanos que destruíam metodicamente cada palmo do território japonês. Com seu pai morto e sua irmã independente os irmãos puderam pensar somente nos seus próprios sentimentos e no que poderiam esperar do futuro. Para o irmão mais velho de Hiroshi, forçado à inatividade enquanto seus comandantes esperavam uma oportunidade de novamente utilizar aviões torpedeiros para atacar o inimigo de forma eficaz, oportunidade esta que provavelmente jamais surgiria, a situação era insuportável. Mesmo sendo um herói de guerra com grande experiência de vôo em aviões da marinha ele não era um dos melhores pilotos disponíveis para pilotar os pouquíssimos caças que o Japão ainda podia colocar em ação, já que havia se especializado em outro tipo de aeronave. E no esforço de manter o desempenho de seus esquadrões de combate no maior nível possível a força aérea havia negado sua transferência para uma de suas unidades.
Finalmente ele não pôde mais ver seu irmão mais moço e outros jovens pilotos combaterem o inimigo no ar quase todos os dias enquanto ele permanecia ocioso em terra. Sem esperanças de futuro e amargurado no presente, ele tomou a única decisão que lhe restava e inscreveu-se em uma unidade de ataque especial, um esquadrão de pilotos suicidas. As minguantes forças armadas japonesas não tinham mais nenhum outro lugar onde ele pudesse ser útil e por isto Kagiro foi aceito e integrou-se a uma força de elite kamikaze que se preparava para atacar os navios inimigos que apoiavam a conquista da ilha de Okinawa.
Afinal um submarino informou que uma força de porta aviões americanos estava ao alcance das bases em território japonês, e o esquadrão de seu irmão foi despachado contra ela. Ele decolaria no mesmo avião que utilizava quando atuava a partir dos porta-aviões, com um grande torpedo na barriga para ser lançado pouco antes que ele próprio se jogasse contra o inimigo completando a destruição. Hiroshi viajara até a base de onde seu irmão partiria e pudera despedir-se dele e assistir à sua decolagem. Eles passaram a última noite juntos e seu irmão parecia triste e distante, sem interesse em nenhum assunto deste mundo como se já estivesse morto. Após vários minutos de silêncio constrangido ele finalmente havia tomado coragem e perguntado a Kagiro qual o sentido daquilo, porque escolher a morte quando a guerra ainda continuava e ele tinha a chance de voltar a lutar? Seu irmão então o havia abraçado com os olhos marejados de lágrimas e dito com a voz entrecortada de quem quase não consegue dominar o choro: “A guerra já acabou, meu irmão, e nós perdemos. Tudo o que nos resta é mostrar aos americanos que ainda temos disposição para lutar por mais algum tempo, e assim talvez eles nos concedam a uma paz na qual possamos preservar um mínimo da nossa honra. Estou dando minha vida para conseguir isto, mas não quero estar lá para ver o resultado”.
Naquela missão alguns navios americanos foram afundados ou avariados, e apesar de ser impossível saber com certeza desde então Hiroshi todos os dias lutava para convencer a si próprio que o avião de seu irmão havia sido o responsável por algum daqueles sucessos.
Uma voz excitada e distorcida pela estática trouxe o tenente Fuchida de volta à realidade. Desde que deixaram para trás a costa do Japão todos os pilotos da esquadrilha estavam mantendo absoluto silêncio de rádio para evitar sua detecção prematura pelo inimigo e todos os aparelhos estavam ligados apenas em recepção, exceto o do líder do grupo de caças de escolta. E era a voz dele que agora enviava uma mensagem urgente a todos os pilotos da formação. Por um ou dois segundos o jovem Hiroshi acreditou que o comandante estava informando a localização de seus alvos e sentiu um aperto no estômago ao se dar conta do que isto significaria. Entretanto, ele logo pôde perceber as palavras que o comandante da força de caças estava gritando ao rádio, bem como as manobras do primeiro grupo de aviões, o qual se dividia em duas esquadrilhas de quatro aeronaves que executavam curvas ascendentes fechadas para a direita e a esquerda. Eles estavam sob ataque de caças Grumman F6F Hellcat americanos.
Fuchida sentiu-se aliviado. A perspectiva de enfrentar os caças da marinha inimiga era bem menos aterrorizante que a de encontrar seu alvo. Ele já havia enfrentado F-6F Hellcats, P-51 Mustangs e mesmo F-4U Corsairs quando pilotava seu Hayate sobre o Japão, e já conseguira mesmo abater alguns deles sem ter ainda sido abatido. Ele conhecia as características de cada um destes oponentes e sabia como lidar com eles, e caso ainda estivesse comandando o seu caça estaria até mesmo feliz por havê-los encontrado novamente. Mas agora ele estava pilotando um bombardeiro de mergulho pesado com pouca capacidade de manobra e ainda por cima com uma enorme bomba presa na barriga, e sabia que seria impossível lutar contra os aviões americanos.
As ordens que seu grupo havia recebido para o caso de enfrentar aquela situação diziam que ele devia continuar em frente, na esperança de que os caças da escolta pudessem impedir o inimigo de assestar suas armas contra os aviões de ataque. Isto talvez tivesse sido possível se o número de aviões inimigos fosse igual ou apenas um pouco superior ao de caças japoneses, mas esta era uma esperança vã. A esta altura da guerra onde quer que os aviões americanos fossem eles iam às dezenas, e apenas oito Hayates talvez não conseguissem proteger nem mesmo a si próprios contra os mais de cinquenta caças inimigos que se lançavam agora sobre a formação japonesa. Fuchida sabia perfeitamente disso, mas ainda assim decidiu seguir as ordens recebidas pelo menos até sua situação tornar-se insustentável. E ele não teve que esperar muito, pois apenas alguns segundos depois o Aichi D3A2 imediatamente à sua esquerda na formação explodiu em uma bola de fogo após ser atingido pelos disparos dos aviões americanos, que já estavam atrás deles! Normalmente um bombardeiro de mergulho daquele modelo teria um artilheiro com uma metralhadora na parte de trás da cabine para responder aos disparos do inimigo, mas não havia nenhum artilheiro nesta missão e todos os aviões estavam com seus bancos traseiros atulhados com outras coisas. O grupo inteiro estava indefeso!
Na fração de segundo em que as balas traçadoras inimigas começaram a dançar em volta de sua asa esquerda, aproximando-se da fuselagem de seu avião, o tenente Fuchida tomou sua decisão. Ele empurrou seu manche para frente e para a direita, forçando seu avião a entrar em uma forte curva descendente na mesma direção, seguida por um mergulho quase vertical. Ele podia fazer isto mesmo com a bomba na barriga, já que seu avião possuía flaps de mergulho que lhe permitiam controlar a velocidade durante esta manobra, evitando que suas asas fossem arrancadas pela força do vento. Dois dos caças azuis com estrelas brancas da marinha americana que estavam atrás dos aviões japoneses seguiram-no na descida, acelerando os motores para manter a distância entre eles e seu alvo, enquanto os demais se concentravam em destruir os outros bombardeiros de mergulho e o terceiro grupo de aviões da formação. Mas assim que o jovem piloto japonês percebeu a ação de seus inimigos ele comandou três quartos de touneaux para a direita e puxou o manche, nivelando seu avião que saiu do campo de visão dos americanos ao passar por baixo dos narizes deles enquanto continuavam descendo. Enquanto os dois pilotos dos Hellcat’s ainda procuravam pelo bombardeiro de mergulho inimigo Fuchida aproveitou a maior inércia do seu aparelho e ganhou novamente altitude, colocando-se acima de seus perseguidores. Quando os americanos finalmente o viram ele estava afastando-se deles à máxima velocidade e em uma altitude quase dois mil metros superior.
Refazendo-se da surpresa os pilotos dos dois caças azuis fizeram uma curva fechada e partiram novamente na direção do japonês, mas para ganhar altitude e alcançar novamente Fuchida eles tiveram que executar uma rampa ascendente com seus aviões, perdendo velocidade. O tenente da força aérea japonesa já contava com isto e colocou seu aparelho em um ligeiro mergulho, o que fez sua velocidade aumentar muito mais rapidamente que a de seus inimigos que ficaram para trás perdendo cada vez mais o alcance de tiro. No entanto Fuchida sabia que não conseguiria livrar-se dos americanos assim tão fácil, pois não podia prolongar seu mergulho indefinidamente. Embora ele pudesse acentuar ainda mais sua trajetória descendente já estava perdendo altitude de forma muito rápida e em breve teria que nivelar novamente seu avião e voltaria a ficar a mercê de seus perseguidores. Ele tinha no máximo alguns minutos para encontrar uma saída daquela situação.
Observando desesperadamente o céu ao seu redor o jovem piloto de apenas dezenove anos percebeu uma grande formação de nuvens ligeiramente acima e um pouco a sua esquerda. Estas nuvens estavam a menos de quatro mil metros de altitude e talvez ele conseguisse alcançá-las antes que o inimigo pudesse se aproximar novamente. Ele puxou então com força o manche de seu Aichi, iniciando uma arriscada manobra de recuperação e subida em altos valores de força G. O peso de seu corpo aumentou quase imediatamente para quase três vezes o valor normal e ele pôde ouvir durante alguns segundos o sangue pulsando em suas têmporas e os rangidos da estrutura de seu avião quase no limite do colapso. Mas ele temerariamente manteve a manobra e aproveitando-se da velocidade extra obtida durante o mergulho conseguiu subir rapidamente até a altitude das nuvens que tentava alcançar.
Ao mesmo tempo, contudo, a velocidade de seu avião caía para algo menos que trezentos quilômetros por hora e os dois caças inimigos que o perseguiam e já estavam quase à mesma altitude aceleravam novamente em sua direção. As nuvens ainda estavam vários quilômetros a sua frente e os Hellcat’s aproximavam-se rapidamente. Os momentos seguintes viram uma corrida mortal entre o lento bombardeiro de mergulho branco e vermelho com nariz negro que tentava atingir a proteção das nuvens e os dois aviões azul-escuros com estrelas brancas pintadas nas asas e nas laterais da fuselagem que procuravam alcançá-lo antes disso.
Logo antes de chegar à formação de nuvens que poderia lhe dar alguma proteção o tenente Fuchida ficou novamente ao alcance das armas de seus adversários, tão perto que ele pôde perceber a mudança no ruído quanto eles reduziram a potência de seus motores para não ultrapassá-lo. No instante seguinte balas traçadoras voltaram a passar por ele, ainda baixo demais para atingi-lo mas aproximando-se rapidamente. Ele iniciou então uma seqüência de violentas manobras à direita e à esquerda para dificultar que o inimigo acertasse sua mira, e conseguiu escapar da maioria das rajadas. Várias balas de metralhadora calibre .50, porém, atingiram seu avião com um som seco como o de pedras batendo em uma frigideira, poucos segundos antes dele conseguir entrar na nuvem mais próxima.
E o mundo inteiro ficou branco. Dentro da nuvem ele não podia ver muito além das pontas das asas de seu próprio avião e sabia que os americanos também não podiam vê-lo. Ainda assim ele não estava livre do perigo, pois a qualquer momento todos sairiam da bruma em que estavam mergulhados e a perseguição recomeçaria. Hiroshi comandou então uma subida violenta com seu Aichi, fazendo-o perder rapidamente velocidade com uma acentuada trepidação causada pelo pré-estol, e logo em seguida jogou o manche todo para a esquerda, iniciando um meio parafuso descendente. Antes porém que a primeira volta fosse completada ele acionou o leme para a direita e levantou o nariz do bombardeiro, iniciando uma subida acentuada em uma direção completamente diferente da que estava quando entrou na nuvem. Agora, a menos que os americanos fossem capazes de ler seus pensamentos eles dificilmente poderiam encontrá-lo quando saíssem novamente para o céu azul claro banhado pelo sol do pacífico.
Até aqui o jovem piloto japonês estivera executando suas manobras por puro instinto, sem verificar sua exata posição no espaço, mas o instinto nem sempre é bom conselheiro quando se está voando dentro de uma nuvem. Ele conferiu então os instrumentos do seu painel de controle e com a ajuda do horizonte artificial e da bússola colocou seu avião em uma suave curva para a esquerda com o nariz ligeiramente levantado. Ele pretendia subir em espiral por dentro da nuvem até sair pelo seu topo, já que ela se mostrava suave e pouco turbulenta. Até lá os caças inimigos já deveriam ter desistido de procurá-lo e estariam retornando para sua própria formação, que estava terminando de liquidar a esquadrilha japonesa da qual ele fizera parte. Enquanto fazia seu tranqüilo vôo cego dentro da nuvem ele podia ouvir pelo rádio as mensagens aflitas dos demais pilotos japoneses que eram atacados pelos americanos e percebeu que exceto pelos seus ex-colegas nos caças da escolta, que tinham até uma certa superioridade em termos de experiência de combate sobre os inimigos, os demais aviões estavam sendo massacrados. Na prática a missão já havia fracassado e ele era tudo o que sobrara dela.
Ele ainda não sabia o que faria em seguida, mas seu treinamento e experiência fizeram com que executasse algumas ações automaticamente. Primeiramente ele apalpou seu próprio corpo, verificando que não estava ferido. Caso estivesse provavelmente não poderia pilotar seu avião por muito tempo mais e as coisas se precipitariam. Em seguida ele checou os instrumentos de controle do motor e aparentemente estava tudo normal. Ele ainda tinha quase metade do combustível com que decolara e não precisava se preocupar com isto no momento. Por último ele prestou atenção a todos os ruídos em sua volta, pois para um piloto como ele, já experiente apesar de sua pouca idade, estes ruídos podiam dizer muita coisa sobre um avião avariado. Imediatamente notou uma série de zumbidos contínuos e fracos que ele sabia ser o som do vento atravessando os buracos que as balas americanas haviam feito no revestimento de alumínio de seu aparelho, inclusive uma que entrara pela lateral direita da fuselagem e se alojara na parte inferior do painel de instrumentos, passando a apenas poucos milímetros de seu corpo. Mas ele não se importou muito com estes ruídos, pois não era a primeira vez que pilotava uma aeronave crivada de balas. E fora isso não percebeu mais nada de anormal.
Ele quase não podia acreditar, mas saíra praticamente incólume de seu encontro com os caças inimigos, e nem sequer alijara a bomba que seu avião carregava no ventre! Só lhe restava agora esperar chegar ao topo da nuvem onde ainda se encontrava, sair dela e decidir o que fazer em seguida. Mas este era um momento que ainda lhe parecia muito distante no tempo e ele não queria pensar sobre isto naquele momento. Assim, enquanto seu aparelho branco, vermelho e preto voluteava em meio à bruma leitosa aparentemente infinita ele tornou a entrar em um estado de devaneio, alheio à situação em que se encontrava.
Sua mente se voltava agora para Mitiko Sato, uma jovem auxiliar administrativa que ele conhecera apenas alguns dias após a morte de seu irmão. Ela fora designada para trabalhar exatamente no aeródromo de onde a esquadrilha de Fuchida operava, em substituição a um velho funcionário burocrático que fôra enviado para treinamento como soldado de infantaria a fim de integrar as tropas que estavam sendo preparadas para defender o território japonês de uma invasão que parecia inevitável. Mitiko tinha um talhe delicado e um rosto muito bonito, com longos cabelos brilhantes e sedosos que corriam até a metade de suas costas. E mesmo para o piloto jovem e ingênuo que precisava lutar ferozmente contra sua extrema timidez cada vez que a moça se aproximava, ficou evidente que ela estava vivamente interessada nele.
Durante uma ou duas semanas ele simplesmente não acreditou que uma moça tão linda, alegre e vivaz pudesse ter realmente algum interesse em um piloto melancólico e calado como ele era, mas quando até seu comandante começou a comentar que ele deveria fazer alguma coisa sobre aquela jovem que vivia procurando-o com pretextos inverossímeis, puxando conversa e sorrindo abertamente cada vez que o encontrava no almoço ou mesmo só de passagem, concluiu que realmente tirara a sorte grande.
Em tempos normais nenhum deles teria sequer a coragem de falar um com o outro mais do que o estritamente necessário sem que seus pais tivessem combinado o compromisso entre ambas as famílias. Mas o pai de Hiroshi havia afundado com seu navio e o de Mitiko morrera no bombardeio da fábrica onde trabalhava. Na verdade nenhum membro masculino de ambas as famílias estava ainda vivo, então os dois jovens estavam livres para fazer o que quisessem. E assim nos dois meses e meio seguintes surgiu entre eles uma relação intensa e apaixonada. Em todos os momentos em que podiam ficar juntos em qualquer atividade, às refeições, caminhando pelo campo de pouso ou à noite sentados nos bancos da sala de reuniões, parecia para Fuchida que não havia uma guerra sendo perdida lá fora e que o mundo e seu próprio futuro eram felizes e cheios de esperança. Eles faziam planos de casamento e de uma vida inteira em comum depois que toda aquela provação terminasse, o que não poderia demorar muito mais, e sonhavam em trabalhar juntos na reconstrução de seu país quando o inimigo finalmente concluísse que não havia nada mais que valesse a pena destruir em um Japão já quase totalmente arrasado e decidisse conceder a paz.
De repente, uma forte luz amarelada surgiu à sua frente, fazendo os olhos de Hiroshi piscarem. Ele havia finalmente saído pelo topo da nuvem e o sol entrava pelo painel dianteiro de sua carlinga trazendo-o de volta à realidade. Ele conferiu rapidamente seus instrumentos, descobrindo que estava agora a pouco mais de seis mil metros de altitude. Olhou então em volta, tentando verificar se seus perseguidores ainda estavam atrás dele, mas não havia nenhum outro avião no céu até onde ele podia ver. O rádio também estava mudo, pois os aviões da força de ataque da qual ele participava ou haviam sido abatidos ou estavam agora distantes demais para que ele pudesse captá-los. Ele estava completamente sozinho!
Por um minuto ele se concentrou, tentando imaginar o que faria a seguir. Ele ainda tinha combustível suficiente para retornar ao Japão, principalmente se alijasse a bomba que carregava, mas não conseguiu encontrar nenhum motivo para fazer isto. Não havia nada que ele houvesse deixado para trás que ainda pudesse importar, nem mesmo sua mãe e sua irmã que agora já cuidavam se si mesmas sozinhas, como de resto a maioria das mulheres japonesas havia aprendido a fazer. Era ainda muito provável que no caminho de retorno ele fosse encontrado por uma das inumeráveis esquadrilhas de patrulha americanas que zuniam o tempo todo em volta das ilhas de seu país, e naquela situação a chance de escapar duas vezes do inimigo no mesmo dia era extremamente pequena. Suas ordens diziam para continuar procurando pelo inimigo em quaisquer circunstâncias e, por falta de opções, ele decidiu segui-las.
Aproando novamente na direção sul-sudeste ele baixou ligeiramente o nariz de seu avião, reduzindo a potência do motor para economizar combustível e não acelerar demais. Sua idéia era continuar neste rumo até que sua altitude caísse para uns quatro mil metros e então passar a voar em largos círculos à procura da frota inimiga que seu comandante dissera estar em algum lugar por ali. Ele agora sentia um frio muito intenso e levantou a gola do seu casaco, procurando ficar um pouco mais confortável enquanto olhava para a grande imensidão azul e branca que se estendia até o longínquo horizonte côncavo que era possível vislumbrar daquela altitude.
Por mais alguns minutos ele entregou-se às suas divagações. As dolorosas lembranças do ataque americano à sua base aérea, duas semanas atrás, tomaram de assalto seus pensamentos. Seus olhos se encheram de lágrimas com as recordações do dia em que ele efetuou sua última missão de combate.
Após muitos meses vendo suas forças sendo importunadas pelos poucos caças japoneses que ainda podiam decolar, os comandantes do inimigo aparentemente haviam decidido cortar o mal pela raiz. Enviaram então uma série de ataques contra o reduzido número de aeródromos japoneses que restava, tentando eliminar os últimos focos de oposição. Assim, quando o alarme antiaéreo do campo de onde Fuchida operava começou a tocar ele imediatamente correu para seu avião e decolou para enfrentar mais uma vez o inimigo. O combate foi feroz e metade de sua esquadrilha foi abatida antes que os aviões americanos finalmente se afastassem depois de jogar suas bombas sobre a pista e as instalações auxiliares. Mas os americanos pagaram um preço alto por esta operação e apesar da flagrante inferioridade numérica nipônica o número de aparelhos inimigos que deixou de retornar para casa foi consideravelmente maior que o de japoneses.
O próprio Hiroshi havia abatido nada menos que três aviões, um deles seu primeiro e único P-51, e apesar de ver o aeródromo coberto pela fumaça dos incêndios ele estava cheio de adrenalina e exultante quando tocou o solo. O campo parecia quase totalmente destruído, mas considerando apenas os números do combate ninguém no mundo conseguiria convencer a ele e aos demais sobreviventes de seu esquadrão de que aquela batalha não havia sido uma vitória japonesa. Ele taxiou rapidamente e saltou de seu avião assim que pôde, correndo para o abrigo antiaéreo para encontrar Mitiko e contar-lhe os detalhes do combate, como sempre fazia após cada missão. Mas ao se aproximar da entrada da escavação que deveria proteger o pessoal auxiliar da força aérea japonesa uma cena devastadora o fez parar, com o sangue gelado em suas veias.
Alguns metros atrás da entrada do abrigo, bem onde deveria estar a câmara subterrânea principal, uma grande cratera cuspia para o alto labaredas e fumaça que pareciam vir diretamente do inferno. Uma bomba perfuradora de blindagem, usada pelos americanos especificamente para tentar alcançar as instalações que os japoneses haviam criado o hábito de enterrar, tinha atingido o abrigo em cheio, fazendo o estoque de combustível guardado lá dentro incendiar-se. Aparentemente era uma coisa estúpida guardar combustível de aviação em um local construído para abrigar pessoas, mas na situação atual do Japão a gasolina de alta octanagem era mais rara e valiosa do que o pessoal auxiliar.
O choque de passar da euforia alimentada pela adrenalina para a mais profunda depressão foi tão devastador que Fuchida não se lembrava direito dos dias imediatamente posteriores àquele, mas sabia que logo depois de confirmada a horrível morte de Mitiko ele passara a solicitar repetidamente transferência da sua esquadrilha de caças para uma unidade de outro tipo. A princípio seus superiores tentaram convencê-lo a não desistir dos combates aéreos, pois ele havia sido um piloto excepcional e cada vez havia um número menor deles para defender o país. Mas seu estado de espírito cada vez mais sombrio após a morte da amada deixava claro que ele jamais seria novamente o piloto aguerrido que havia um dia sido. Ele não se importava mais em defender o seu país mas apenas em se vingar do inimigo que lhe causara tamanho sofrimento, e assim eles acabaram por aceitar sua transferência, mesmo que a contragosto.
E agora, após um curto treinamento de adaptação, ele estava ali, pilotando um bombardeiro de mergulho solitário em meio ao céu do oceano pacífico com uma bomba de 1000 libras na barriga e em busca de um alvo que ele não sabia onde poderia encontrar.
De repente, algo no céu bem à frente chamou sua atenção. Ele a princípio não percebeu exatamente o que era, mas havia alguma coisa estranha ali. Sacudindo a cabeça para afastar as lembranças que ameaçavam engolfá-lo novamente e esticando o corpo sobre seu assento para poder observar melhor, ele finalmente percebeu o que o havia tirado de seu devaneio. Bem na sua altitude e menos de cinco graus à direita de sua trajetória ele viu o que julgou ser uma nuvem muito estranha, diferente de todas as outras que salpicavam o céu naquele momento. Ela era pequena, bem menor que as demais ao seu redor, e ao contrário destas que apresentavam invariavelmente a base achatada e o topo felpudo como grandes chumaços de algodão, esta tinha a forma de uma lentilha, como duas calotas esféricas coladas uma na outra, com as bordas parecendo anormalmente afiadas. E era completamente regular e lisa.
Hiroshi havia estudado meteorologia no seu curso de pilotagem e já havia visto muitas nuvens lenticulares em seus vôos de serviço, mas nunca tão baixo e em meio a uma camada de nuvens tipo cúmulo como as que o cercavam. A nuvem pequena e estranha parecia estar parada no ar a não mais que dez ou doze quilômetros de distância e movido por apenas uma curiosidade sem objetivo ele decidiu alterar um pouco seu rumo e chegar mais perto para observá-la melhor.
E conforme ele se aproximava a tal nuvem parecia cada vez mais esquisita. Ela apresentava uma aparência demasiadamente sólida, e o jovem piloto começou a ficar inquieto com alguma coisa, mesmo sem saber a razão. Quando ele parecia estar a apenas um ou dois quilômetros daquele estranho fenômeno um ligeiro fulgor surgiu repentinamente próximo ao topo da “nuvem”, tão repentino que Hiroshi demorou a perceber o que era aquilo e o que significava. Então, de repente, enquanto o fulgor corria pela lateral daquela aparição, ele percebeu que sua superfície abobadada superior estava refletindo a luz do sol. O que quer que fosse, aquela coisa era um objeto brilhante e sólido!
Esta compreensão veio como um verdadeiro choque. Ele estava agora a menos de duzentos metros de distância daquela coisa enorme parada bem na sua frente e aproximava-se dela a quase quatrocentos quilômetros por hora. Mais alguns segundos e o impacto seria inevitável!
Ele instintivamente jogou o manche para a esquerda, tentando desviar do objeto enquanto ainda era possível. A alavanca seguiu todo o seu curso para o lado e ficou comprimida contra sua perna, mas ao contrário do que o jovem piloto esperava o avião não se inclinou e continuou seguindo em frente mantendo a velocidade. Hiroshi entrou em pânico, acreditando que alguma bala inimiga havia rompido seus cabos de controle e que em poucos instantes seu aparelho bateria naquela coisa lá fora, detonando a bomba que trazia na barriga. Ele agarrou o manete, liberando a trava e apertando o gatilho que alijava a bomba, mas o sistema também não funcionou. Não havia tempo para mais nada e Hiroshi cobriu o rosto com os braços e apertou os olhos, esperando sentir o que quer que uma pessoa sinta quando é envolvida pela explosão de centenas de quilos de explosivo bem debaixo de seu assento.
Passaram-se dois, três, quatro, cinco segundos... e nada aconteceu! Hiroshi pensou que sua percepção do tempo estivesse alterada devido ao efeito do pânico que o tomara, mas quando mais dez segundos se passaram e ele não percebeu nenhuma explosão, começou a imaginar se tudo afinal não terminara e ele já estava morto. Baixou então lentamente os braços e abriu um pouco os olhos, esperando ainda ver uma parede inclinada branca e brilhante vindo em sua direção em alta velocidade. Mas ao invés disto a primeira coisa que viu foi uma das pás da hélice de seu avião parada em posição vertical bem à sua frente. Em volta tudo parecia imaculadamente branco, e por um momento ele acreditou que apesar de tudo aquele objeto estranho contra o qual achou que iria se chocar era mesmo apenas uma nuvem afinal e que seu motor havia apagado no momento em que entrara nela. Tudo agora era silêncio e ele não percebia mais sequer o ruído do vento nos buracos de bala em seu avião.
Ele levantou então a cabeça tentando enxergar mais alguma coisa lá fora e teve um sobressalto. Seu avião não estava mais em posição horizontal, mas inclinado como se estivesse pousado no solo. Ele baixou os olhos para o painel de controle buscando se orientar pelo horizonte artificial, mas este estava desligado, assim como todos os indicadores elétricos e do motor. O altímetro ainda indicava 5100 metros, enquanto o velocímetro marcava zero, o mesmo que o climb, indicando que a aeronave nem perdia nem ganhava altitude. Com o motor desligado e naquela posição, estas indicações eram impossíveis!
Hiroshi estava completamente confuso. Tudo indicava que seu avião estava pousado tranqüilamente sobre alguma superfície plana dentro de uma nuvem a mais de cinco quilômetros de altitude bem no meio do oceano Pacífico. Mas além disto ser impossível, havia outras incongruências na sua situação. Ele começou a sentir a pressão em seus ouvidos aumentando lentamente, como se sua altitude estivesse diminuindo de forma suave mas contínua, o que era corroborado pela queda do altímetro que agora marcava agora pouco mais de 5000 metros. Mas o ar estava totalmente parado e ele não conseguia perceber a mais leve indicação de movimento. O climb marcava agora –1,5m/s, indicando também uma perda de altitude moderada e constante. A temperatura ao mesmo tempo estava subindo nitidamente, e ele baixou a gola do casaco que já começava a incomodar. Olhando para fora ele conseguia ver apenas um branco imaculado em todas as direções que podia observar, mas na posição inclinada como a de pouso em que seu avião se encontrava o campo de visão era restrito quase que só para os lados e para cima. É claro que o jovem piloto estava bastante assustado e inseguro, mas a total falta de ruído e vibração indicava que seu avião estava completamente parado e assim, relutantemente, ele soltou seu cinto de segurança e levantou-se do assento, apoiando-se nos braços e tentando enxergar melhor para fora da carlinga. Ao fazer isto ele percebeu o que primeiramente parecia uma fina linha negra circundando o horizonte em toda sua volta, mas movendo a cabeça notou que na verdade aquilo era a junção de um teto abobadado com o piso plano de uma estranha sala completamente branca, onde seu avião estava placidamente pousado!
Agora ele estava convencido de que havia morrido tão rapidamente que nem chegara a perceber e que este lugar era alguma espécie de ante-sala do além. Sem maiores cuidados, pois afinal já estava morto, ele destravou a carlinga e correu sua armação para trás, ficando de pé e saltando para fora com um impulso. Caiu sobre a asa de seu avião com um estrondo metálico que pareceu ser imediatamente absorvido pela brancura que o cercava, ainda segurando com uma das mãos a borda da cabine para não deslizar sobre a superfície inclinada, e novamente olhou em volta tentando identificar mais algum detalhe naquela estranha sala. Por sua mente passavam alternadamente as histórias que ouvira de seus avós e de sua mãe quando criança sobre o mundo dos mortos e os trechos de sua vida onde teve que tomar decisões importantes que poderiam de alguma maneira afetar a forma como seria recebido neste mundo do pós-vida. Ele esperava ver surgir a qualquer momento algum de seus ancestrais, ou mesmo seu pai e seu irmão, para julgá-lo por suas ações e definir o lugar que ocuparia pelo resto da eternidade entre os espíritos dos antigos membros de sua família, quando inesperadamente ouviu uma voz nítida mas estranhamente sem tom, que parecia vir de todos os lugares ao mesmo tempo:
- Você não está morto, e nem corre nenhum perigo neste momento. – disse a estranha voz de forma tão impessoal que parecia nem mesmo se dirigir a ele.
Assustado, em um primeiro instante Hiroshi acreditou que a voz fosse de algum espírito do mundo dos mortos, um shinigami ou algo assim, e sequer atentou para o detalhe de que a voz afirmava que ele não havia morrido afinal. Parecendo perceber seu estado de confusão, a voz tornou a se manifestar:
- Nós não somos espíritos ou qualquer outra entidade do seu sistema de crenças religiosas. Somos visitantes de um outro mundo, e necessitamos fazer contato com você. Você consegue compreender isso?
O jovem piloto japonês estava completamente aturdido. A estranha voz afirmava que ele não estava morto, mas ao mesmo tempo dizia que eram visitantes do outro mundo, e o único outro mundo de que ele já havia ouvido falar era o dos mortos. Ou quem sabe o dos deuses...
- Você é um deus? – Perguntou ele com voz sumida, quase um sussurro. A voz respondeu do seu jeito estranho, sem nenhuma inflexão que o permitisse detectar o efeito que sua pergunta havia causado no humor de quem quer que fosse que estava dialogando com ele.
- Já informamos que não somos nenhum tipo de entidade mitológica. Viemos de um outro mundo para entrar em contato com a sua raça, mas nos deparamos com uma situação que não conseguimos definir e escolhemos você para nos ajudar a tomar uma decisão. É muito importante para sua raça que você compreenda claramente isso. Por favor responda em palavras, pois não conseguimos compreender seus pensamentos com clareza suficiente quando não o faz.
Hiroshi estava cada vez mais confuso. A voz dizia que não era de um espírito nem de um deus, mas insistia que tinha vindo de um outro mundo e dava a entender que podia ler seus pensamentos, embora não conseguisse entendê-los completamente. O que podia ser aquilo então?
- Você é um demônio? - Sussurrou ele novamente, agora com um grande medo crescendo dentro do peito. Todas as ocasiões de sua vida em que ele fez alguma coisa que achava não ser absolutamente correta passaram a desfilar em sua mente, das mal-criações à sua mãe e brigas de infância com o irmão ao seu amor por Mitiko, que no íntimo ele considerava incorreto por julgar não merecê-la.
A voz tornou a responder e desta vez ele pensou notar uma ponta de impaciência e incerteza em sua entonação. Talvez isto fosse apenas uma impressão sua, mas algo na voz parecia indicar que ela não estava mais segura de estar falando com a pessoa certa.
- Não somos deuses, nem demônios, nem espíritos, apenas viajantes que vieram de um mundo muito longínquo para estabelecer contato com sua raça. Você precisa compreender isto para que possamos continuar. Apesar de pertencermos a uma outra raça somos apenas seres viventes, como você.
A menção a uma outra raça imediatamente colocou a mente de Hiroshi em alerta. Aquela voz poderia ser a do inimigo! Era muito claro para ele que a sua raça era a amarela ou mongólica, a do povo japonês, enquanto seus inimigos americanos eram brancos caucasianos. E se aquilo que ele julgara ser uma nuvem fosse na verdade algum tipo de aeronave do inimigo, como um dirigível talvez, e ele tivesse sido capturado? Esta idéia lhe pareceu fazer o maior sentido e ele sentiu-se até aliviado por aparentemente se encontrar em uma situação que podia compreender. Seus instintos e treinamento de soldado imediatamente tomaram conta dele, fazendo-o cerrar os punhos e assumir a posição yaki zugui para atacar com golpes de karatê o primeiro inimigo que visse, já que estava totalmente desarmado.
- Vocês jamais me pegarão com vida! Apareçam desgraçados! Gritou ele enquanto apontava os punhos em todas as direções com movimentos bruscos, chamando seus supostos inimigos para a luta. Ele tinha agora absoluta certeza de que seria abatido a tiros de fuzil nos próximos segundos, mas não se importava em morrer, apenas em mostrar aos covardes americanos que se escondiam atrás daquelas paredes brancas como um homem de verdade enfrenta seus últimos momentos no combate.
- Não compreendemos seu ódio, pois não somos seus inimigos. – tornou a dizer a voz, desta vez dando a vaga impressão de estar alarmada. – Viemos em paz e não desejamos fazer nenhum mal a você ou à sua raça. Queremos ser seus amigos. – E estas palavras, como antes, vieram de lugar nenhum.
- Mentirosos! - Gritou cheio de ódio Hiroshi. – Não vão me enganar com seus truques. Apareçam de uma vez e lutem com honra, se é que sabem o que é isso, seus covardes! – Continuou ele entre dentes, quase rosnando.
Por um certo tempo fez-se o silêncio e o piloto japonês continuou a desafiar as paredes com os punhos, ainda empoleirado sobre a asa de seu avião. Em sua mente, contudo, ele já não estava tão certo assim de que os americanos poderiam estar por trás daquele verdadeiro pesadelo. Por que eles iriam encenar toda aquela farsa? Afinal, ele era apenas um jovem piloto e não achava que pudesse ter qualquer informação que justificasse todo aquele esforço por parte do inimigo. Bastava atirar nele ou mandar meia dúzia de homens com porretes para dominá-lo e tomar o seu avião, que era a única coisa que ele tinha mas não era nenhum exemplo de modernidade que pudesse interessar ao esforço de guerra dos Estados Unidos. Era um modelo projetado antes da guerra e os americanos já o conheciam muito bem desde Pearl Harbor.
Depois de alguns segundos, porém, seus pensamentos foram interrompidos pela voz, que tornou a se manifestar.
- Não estamos mentindo. Mas entendemos que o seu isolamento repentino do ambiente que lhe era familiar possa estar causando sua confusão. Decidimos então efetuar uma pequena demonstração de nossas capacidades tecnológicas para que você se convença de que não pertencemos a sua raça nem ao seu mundo.
E assim que a voz disse isto Hiroshi sentiu seus pés perderem contato com a asa de seu avião, onde estivera de pé até então. Apavorado e incapaz de compreender o que acontecia ele saiu flutuando pelo ar, descrevendo uma trajetória perfeitamente circular junto ao teto abobadado da enorme sala onde se encontrava durante vários silenciosos e excruciantes segundos, pousando depois suavemente no piso imaculadamente branco bem à frente do Aichi D3A2. Como um piloto militar, o simples fato de o terem feito voar não o impressionou demasiadamente. Mas a circunstância de que aparentemente nenhuma máquina ou equipamento teria sido utilizada para fazer isto o convenceu completamente que seus captores não poderiam ter vindo dos Estados Unidos. Ele acabara de enfrentar aviões de combate americanos e era evidente que se os americanos pudessem fazer as coisas voarem daquele jeito não precisariam mais de aviões. Mas então o problema retornava. Se a voz não era dos americanos, de quem era então?
Hiroshi ficou de pé novamente aturdido, começando mais uma vez a acreditar que estava morto, quando a voz tornou a se manifestar:
- Vemos que você percebeu que a tecnologia de sua raça não poderia produzir o efeito que causamos. Como já dissemos, não pertencemos ao seu mundo, e viemos de um lugar muito distante para contatá-los após detectarmos o sinal de que seu povo havia atingido o grau mínimo de maturidade tecnológica necessário para nos compreender. Está pronto agora para iniciarmos nosso contato?
- Quem são vocês e de onde vem? – Perguntou Hiroshi ainda confuso, mas um pouco mais calmo. – Porquê não se mostram de uma vez, porquê estão se escondendo?
- Não podemos sobreviver na sua atmosfera, e você não poderia sobreviver na nossa, por isto está isolado neste compartimento. – Explicou a voz. - Além disso, sua raça não está acostumada ao contato com outras inteligências morfologicamente diferentes da sua, e temos receio de que nossa aparência possa assustá-lo desnecessariamente. Por isto decidimos não nos mostrar a você neste momento.
Hiroshi não gostou nem um pouco daquela afirmação. Se o dono da voz não queria mostrar sua aparência, isto só podia significar que se tratava de uma criatura monstruosa ou seja, de um demônio. Ele voltou a ficar amedrontado, o que pareceu ter sido percebido pela voz.
- Já informamos que nós não somos demônios, apenas seres viventes diferentes dos membros de sua raça. Se isto o deixar mais calmo podemos nos mostrar para você, embora isto não fizesse parte de nosso planejamento inicial. Você deseja isto? – Perguntou a voz.
O jovem japonês ficou inseguro. A voz parecia amistosa e preocupada em não amedrontá-lo, mas deixava claro que sua aparência poderia ser assustadora. E se estivesse certa e ele ficasse mesmo aterrorizado com o que visse? Na sua situação atual ele achava que poderia até enlouquecer. Por outro lado, como poderia confiar em alguém que ele não podia ver? Sem estar certo de que era isto mesmo que queria, ele respondeu:
- Sim, eu desejo ver você. Mostre-se agora ou vou considerá-lo meu inimigo. - E dizendo isso ele empertigou-se e tentou mostrar o seu rosto mais sério, para indicar que tinha uma confiança em sua decisão que na verdade não tinha.
- Assim seja. – Disse a voz. E a luz da sala, que parecia emanar igualmente da parede abobadada e do piso, reduziu sua intensidade tornando-se apenas uma penumbra, enquanto Hiroshi encolhia-se involuntariamente mostrando assim todo o medo que sentia. Em seguida uma parte aproximadamente retangular da parede diante dele pareceu ficar ainda mais escura, como um grande quadro-negro que emergisse do branco homogeneamente imaculado anterior.
- Aproxime-se e observe. – Disse a voz sem entonação.