Réquiem para uma civilização
Há vinte anos eles haviam chegado. Estávamos ainda iniciando a exploração de nosso sistema solar e eles já conquistavam as estrelas. Era a terrível invasão espacial, da qual tanto nos alertaram nossos autores de ficção científica.
De início sequer compreendemos exatamente o que estava acontecendo. Nossos radio-telescópios haviam vasculhado os céus durante anos em busca de sinais inteligentes oriundos de outras estrelas, e durante anos nossos esforços haviam sido em vão. De repente, porém, todos passaram a receber aquelas mensagens que saturaram as frequências normais de comunicação, bastante audíveis nas línguas de cada uma das nações onde estavam instalados os rádio-observatórios.
Uma intimação! Exigiam que nos rendêssemos, sem nenhuma explicação sobre como ou porquê. Nenhuma instrução sobre as presumíveis negociações de capitulação, ou sobre a também presumível ocupação. Apenas a ordem de não tentarmos resistir.
É claro que quase ninguém, além dos cientistas, acreditou na veracidade das mensagens recebidas. Dúvidas foram levantadas, idoneidades contestadas e as mútuas desconfianças quase levaram a uma catastrófica guerra nuclear. Entretanto, em breve foram detectadas diversas naves, gigantescas pelos nossos padrões, entrando em órbita ao redor de nosso planeta. Isto convenceu até os mais céticos e o pânico resultante teve o mérito de acelerar os preparativos para nossa defesa.
Todos os nossos veículos espaciais foram postos em condições de combate em apenas oito dias. Cinco transportadores orbitais reutilizáveis com capacidades de carga variadas, além de vários foguetes convencionais descartáveis, foram carregados com poderosas ogivas atômicas que haviam sido construídas para destruir a nós mesmos mas que serviriam agora a uma causa bem mais nobre. Os transportadores e os foguetes decolaram todos ao mesmo tempo com a intenção de surpreender nossos inimigos através de um ataque maciço, e todos acreditaram que suas naves sucumbiriam ante dezenas de poderosos artefatos termonucleares.
Mas nossos veículos nem mesmo chegaram a entrar em órbita. Raios de natureza desconhecida, dotados de imensa energia, os transformaram em nuvens de gases ionizados tão logo deixaram a atmosfera. Nossas esperanças de defesa dissiparam-se literalmente no espaço poucos instantes após partirem de suas bases de lançamento.
E o inferno então desceu à superfície de nosso mundo. Sem nenhum motivo além de termos sido impertinentes a ponto de tentarmos nos defender, diversas das nossas maiores cidades foram arrasadas por armas que para nós pareciam castigo dos céus. Centenas de milhões de indivíduos pereceram sob os escombros do que antes haviam sido grandes centros urbanos. Os invasores mostraram que não seriam complacentes, exterminariam imediatamente qualquer foco de resistência.
Tivemos que nos entregar e permitir que suas naves pousassem. E só então ficamos sabendo a razão de tudo aquilo, o porquê de nos atacarem sem piedade. Nosso planeta possuía imensas jazidas de metais pesados, até por nós desconhecidas, os quais eram muito valiosos para a civilização alienígena. Quando soubemos dos metais ficamos aturdidos pelo uso de tamanha violência por tão pouca coisa. Estaríamos dispostos a ceder-lhes de bom grado a exploração das minas, pois elas pouco nos importavam já que não teríamos mesmo condições de aproveitá-las por muito tempo ainda.
Mas as minas não eram todo o problema. Eles precisavam explorá-las, mas não desceriam pessoalmente a quilômetros de profundidade dentro de terra solta, lençóis de água e rocha sólida em alta temperatura até alcançar os veios de minério. E nos túneis inconsistentes das minas os robôs, além de muito dispendiosos, não teriam um rendimento satisfatório. Eles usariam a nós para realizar o trabalho. Seríamos escravizados!
Quando soubemos de suas intenções tornamos a tentar atacá-los. As forças armadas de diversas nações tentaram, pelo menos, expulsá-los para fora de suas fronteiras. Tais nações deixaram de existir!
Fomos forçados a nos submeter, e o caos então se instalou em nosso mundo. Divisões políticas, geográficas e culturais não faziam o menor sentido para eles. Populações inteiras foram forçadas a se deslocar de suas regiões e países de origem para os locais onde seriam necessários aos objetivos dos invasores. As últimas grandes cidades foram abandonadas, todo o sistema de produção e comércio entrou em colapso e o desespero dominou a nossa raça. E todas as indústrias importantes foram desmanteladas, sob a alegação de que desviavam mão de obra inutilmente. Parte da população passou a ser empregada nas minas, parte foi confinada nas cidades como reserva, e o restante era obrigado a trabalhar nos campos produzindo alimentos para sustentar os demais.
O ambiente nas minas era terrivelmente insalubre devido à elevada temperatura, à umidade, e às emanações gasosas, além da tóxica poeira metálica, e por isso a expectativa de vida dos mineiros era de apenas um quarto do tempo de vida normal. A ocorrência de acidentes também era bastante comum, mas para os invasores isso não fazia a menor diferença. Havia muitos de nós, podíamos ser sacrificados.
Para a substituição das baixas entre os mineiros foram criadas as “reservas”, que eram na realidade as cidades sobreviventes colocadas sob intensa vigilância e onde eram aglomeradas grandes massas da população, que seriam utilizadas para manter constante a quantidade de trabalhadores nas minas apesar do elevado número de mortes. Já os que viviam nos campos eram forçados a trabalhar de maneira brutal, enquanto as péssimas condições de habitação e higiene ocasionavam constantes epidemias que matavam dezenas de milhares de indivíduos por ano.
Vendo este terrível quadro os religiosos e os cientistas se uniram, tentando criar programas de saúde e assistência social em uma vã tentativa de melhorar as condições às quais estávamos submetidos e tornar a vida ao menos suportável. Foram devido a isto tomados como subversivos, perseguidos implacavelmente e exterminados, enquanto todas as atividades intelectuais e religiosas eram postas na ilegalidade.
Apenas alguns meses após a invasão os alienígenas montaram em nosso planeta uma enorme cúpula geodésica, sob a qual erigiram a sua cidade. Eles precisavam da cúpula, pois embora a gravidade do nosso mundo se assemelhasse bastante à do deles os gases que compunham nossa atmosfera lhes eram venenosos. Isto era uma boa mostra de quão diferentes eles eram de nós, tanto física quanto espiritualmente. Na realidade o que havia sob a cúpula não era exatamente uma cidade mas uma poderosa base militar, montada com o intuito de vigiar nossas atividades e nos dissuadir de qualquer tentativa de levante.
Era da cúpula geodésica que partia a opressão. Com uma base em nosso próprio planeta eles lograram sustar todo o desenvolvimento de nossa raça e ainda nos fizeram regredir mais de um século em nossa civilização. Podíamos ver sob a cúpula todos os benefícios materiais de um grande avanço tecnológico, mas não tínhamos o direito de desfrutar dele porque, afinal, éramos apenas escravos à disposição de suas necessidades e caprichos.
Para evitar possíveis transtornos futuros os invasores passaram a tomar nossas crianças ainda recém nascidas de nós e condicioná-las desde cedo a serem dóceis à escravidão. Devido a tudo isso isto ninguém desejava ter filhos e nossa população passou apresentar uma taxa de decréscimo bastante acentuada, o que os levou a selecionar casais segundo seus próprios critérios e a forçá-los a servirem como reprodutores.
Nas minas a revolta de um único mineiro facilmente levava à morte de dezenas de inocentes, enquanto eram realizados frequentemente ataques de intimidação contra as reservas, nos quais dezenas ou mesmo centenas de vítimas podiam perder a vida inapelavelmente. Os invasores estavam começando a criar o hábito de nos caçar!
Vinte anos! Toda uma geração com as mentes completamente destruídas. Em breve o futuro de nossa raça estaria totalmente arruinado. Após duas décadas de terror não poderíamos suportar mais. Iríamos nos sublevar! Esta na verdade era uma ideia antiga, pensávamos constantemente nisto desde que fôramos conquistados, mas agora faríamos alguma coisa pois agora estávamos preparados!
O trabalho nas minas era realizado com o auxílio de diversos tipos de máquinas: Carretas motorizadas, martelos mecânicos, perfuratrizes laser e até mesmo bombas nucleares de baixa potência. Tal tecnologia, embora nós soubéssemos poder ser usada de forma letal em uma guerra, não impressionava os alienígenas nem um pouco, tão acostumados estavam a ela. Com o tempo percebemos que eles tinham apenas uma vaga ideia do perigo representado por estes equipamentos, pois treinaram-nos para utilizá-los, consertá-los e até mesmo produzi-los de forma a poder explorar as minas no ritmo que lhes era necessário. E contentavam-se apenas com um controle superficial destes artefatos, aparentemente sem perceber claramente os riscos que isso envolvia.
Simulávamos então acidentes, às vezes com o sacrifício de alguns de nós, e juntávamos material para os nossos fins. Construímos depósitos nas minas onde ao longo dos anos montamos verdadeiros arsenais, os quais permaneceram totalmente secretos uma vez que os alienígenas jamais desciam pessoalmente às inseguras galerias que nos forçavam a cavar. E os robôs de vigilância eram facilmente ludibriados, sendo que por vezes até destruíamos alguns para roubar material e colocávamos a culpa nos frequentes desabamentos. Já contávamos com um verdadeiro exército, muito bem organizado, e esperávamos apenas por uma oportunidade.
E esta finalmente surgiu. Uma revolução em outra colônia, ou um conflito com alguma outra raça talvez, obrigou os invasores a deslocar as poderosas naves de guerra que vigiavam nosso sistema solar para uma estrela distante. Esta era a nossa chance!
Os minérios eram transportados em naves intra-orbitais das minas até os grandes cargueiros interestelares em órbita, para daí seguirem para onde quer que fosse o seu destino final. Estes transportes foram de início pilotados exclusivamente pelos próprios alienígenas, mas seu número cresceu tanto que eles se viram obrigados a nos incumbir de tripular alguns deles. E agora quase todos eram pilotados pela nossa gente.
A um sinal de rádio a grande maioria dos transportes, cujo número se elevava às centenas, dirigiu-se para as aberturas secretas que havíamos escavado em ligação com os nossos arsenais, de onde receberam o material bélico que havíamos preparado transformando-se em naves de guerra improvisadas. Receberam também a bordo milhares de soldados e veículos, armados com lasers portáteis e granadas, a base de nosso exército. Os invasores estavam completamente desprevenidos, e a princípio não souberam como reagir ao desaparecimento das naves intra-orbitais. Pudemos completar nosso trabalho sem nenhuma interferência além da dos robôs, a qual eliminamos facilmente. Em poucas horas havíamos montado a nossa força de ataque.
Mas então os problemas começaram a surgir. Os alienígenas descobriram onde estavam nossas naves e mandaram contra nós os vinte cruzadores atmosféricos armados que possuíam. Em pouco mais de meia hora de batalha aérea perdemos quase metade de nossa frota, mas utilizando a técnica suicida do abalroamento em vôo conseguimos derrotá-los e agora só restava a cúpula geodésica!
Desembarcamos nossa infantaria a vinte quilômetros da cúpula, atrás de uma cadeia de montanhas baixas. Não tínhamos coragem de expor nossas naves em um ataque direto, pois sabíamos que o inimigo contava com várias estações de rastreamento e no céu não existem acidentes geográficos que possam ocultar o avanço de uma nave. A ofensiva final teria mesmo que ser por terra.
Foi um verdadeiro massacre! A cúpula estava dotada de armas suficientes para deter milhões de atacantes, e pouco mais de dois mil soldados, mesmo que relativamente bem armados, nada representavam para suas defesas. Ao detectar qualquer movimento hostil através de seus veículos automáticos de observação os alienígenas lançavam mísseis inteligentes equipados com ogivas de anti-matéria contra ele, e trinta ou quarenta explosões foram o suficiente para acabar com o nosso exército. Houve apenas umas poucas centenas de sobreviventes, e praticamente todo o equipamento bélico foi perdido.
Estávamos desesperados! Mal podíamos acreditar que nosso levante, que começara tão bem, havia fracassado de forma tão miserável. Só nos restavam agora os transportes orbitais armados, alguns poucos soldados feridos e aterrorizados e mais algumas centenas de indivíduos equipados com velhos fuzis, espingardas e bombas de antes da invasão postados nas ruínas de uma cidade abandonada a quarenta quilômetros da cúpula. Os pilotos de nossas naves decidiram então decolar para um ataque final de qualquer forma. Não havia esperança alguma de vencer, mas desistir agora seria traição para com nossa raça e para com aqueles que morreram tentando alcançar a liberdade para o nosso povo. Além disso, a própria morte era preferível ao que esperava os que sobrevivessem à revolta. As tripulações dos transportes prepararam-se então para juntar-se à infantaria no reino dos mortos.
Porém, estávamos completamente enganados. Os alienígenas na cúpula haviam-se preparado para resistir a um forte ataque terrestre, pois a ideia de milhares de escravos lançando-se furiosamente sobre seu reduto é bastante natural a qualquer tirano, mas não contavam em ter que se haverem sozinhos contra um ataque aéreo. Em condições normais suas naves de combate em órbita poderiam facilmente detectar e destruir qualquer aeronave atacante com seus instrumentos e armas fabulosos. Mas tais naves não se encontravam em nosso sistema estelar no momento, e os próprios mísseis de anti-matéria que haviam arrasado o nosso exército eram do tipo terra-à-terra, não se prestando a uma defesa antiaérea eficaz.
Nossos inimigos viram nossos transportadores orbitais aproximando-se nas telas de seus radares, mas pouco puderam fazer. Muitas de nossas naves foram destruídas, mas a maioria escapou das defesas e uma única bomba nuclear, detonada próximo à cúpula, foi suficiente para romper o envoltório e deixar que a atmosfera de nosso mundo tomasse conta de seu quartel general. Os poucos alienígenas que tiveram tempo de vestir seus trajes pressurizados foram eliminados poucas horas mais tarde, quando nossos combatentes penetraram na fortaleza, enquanto nossas naves davam cabo de alguns objetivos secundários.
Nosso planeta era nosso novamente! Conseguíramos nos livrar dos invasores e agora possuíamos a sua própria tecnologia para a nossa defesa, pois afora o rombo na cúpula geodésica e alguns danos menores sua fortaleza estava praticamente intacta. Capturamos praticamente todo o equipamento que era antes usado para nos oprimir: Armas portáteis, canhões iônicos, mísseis de anti-matéria e muitas coisas mais. Estes equipamentos poderiam transformar nossa frota de naves orbitais em uma força respeitável. E entre o material capturado estavam um comunicador supra-luminal e um transceptor taquiônico, que nos permitiriam comunicação rápida ou mesmo imediata através das distâncias interestelares. Com estes aparelhos poderíamos interceptar as mensagens de nossos inimigos, descobrindo assim seus planos, e desta forma contávamos em poder preparar melhor as nossas defesas.
Sabíamos que todos os povos que habitavam as estrelas em um raio de pelo menos quinhentos anos luz haviam sido conquistados pela mesma raça que atacara nosso planeta e que, como nós, eles haviam sido obrigados a aprender a língua dos invasores pois estes jamais se rebaixavam a aprender a dos vencidos. Por isto podíamos ter a certeza de que não enfrentaríamos dificuldades para compreender as transmissões captadas. Todas elas seriam na odiosa língua dos invasores, incluindo é claro as deles próprios.
Parecia-nos que tudo iria funcionar. Contávamos em utilizar nossas naves agora bem equipadas para nos defender de um primeiro ataque, e assim ganhar tempo suficiente para nos preparar e enfrentar uma guerra de longa duração. Já estávamos organizando a produção em massa de mísseis nucleares de grande porte, equipados com computadores dotados de inteligência artificial, e os antigos estaleiros navais que não haviam sido destruídos serviriam para construir nossas naves de guerra blindadas. Com os conhecimentos que tínhamos capturado nos seus bancos de dados poderíamos em poucos anos construir armas semelhantes às que os próprios alienígenas utilizavam, e assim talvez pudéssemos conseguir que eles desistissem de ocupar o nosso mundo e nos deixassem em paz. Mas era tudo ilusão. As mensagens que as naves inimigas trocavam entre si e com suas bases não deixavam lugar para esperanças.
Subestimáramos nossos algozes. Eles haviam erigido um verdadeiro império interestelar, e o que afastara suas naves de nosso sistema fôra um simples problema fronteiriço. Uma poderosa frota com dezenas de astronaves de combate estava se dirigindo ao nosso mundo, e pelo que podíamos ouvir sobre ela nossas pequenas naves orbitais não teriam a menor chance de nos defender. As unidades inimigas alcançariam nosso planeta, e nós já conhecíamos as suas intenções pois as outras transmissões captadas revelavam-nas a nós.
Ondas eletromagnéticas e taquiônicas reverberavam pela galáxia, testemunhas de catástrofes há muito ocorridas. Estrelas choravam a morte de suas raças filhas, vítimas do mesmo povo que nos escravizara, e nossa em breve seria mais uma entre elas.
Nosso planeta seria esterilizado! Bombas de anti-matéria gigantescas seriam detonadas em órbita de nosso mundo e a quantidade de radiação gama assim produzida eliminaria qualquer forma de vida existente em sua superfície até quilômetros de profundidade no mar ou sob o solo. Depois disto os alienígenas colonizariam novamente o planeta com outras formas de vida e outra espécie inteligente já “domesticada”, oriunda de outro sistema solar já conquistado anteriormente, e retomariam a exploração das minas. Pela tentativa que alguns de nós fizeram para escapar de sua tirania, toda a nossa raça estava agora condenada a deixar de existir.
Seríamos nós as próximas vítimas desta terrível raça de carrascos galácticos, oriunda de um mísero planetóide que gravita ao redor de uma minúscula estrela amarela perdida na imensidão do cosmo.
Os malditos assassinos terráqueos!