Solitude

Crianças são criaturas engraçadas. Seus sonhos de futuro são quase sempre grandiosos e, geralmente, pouco prováveis de se tornarem realidade. Quem não desejou, em sua infância, ser um super-herói, um piloto de corridas ou um astronauta? À medida que vão crescendo, essas idéias vão ficando para trás e dão lugar a uma realidade mais palpável. Vou ser médico. Vou ser advogado. Quero ser professora.

No meu caso, não foi diferente. Meu maior sonho, quando criança, era ser astronauta. Ficava fascinado quando via alguma coisa sobre o espaço na televisão, achava que aquilo sim é que era vida. Imagina, observar o mundo de cima, estar acima das guerras, acima da pobreza, acima de todos os problemas...

Ao contrário de todos os meus amiguinhos de infância, corri atrás do meu sonho. Sem meus pais saberem, fiz o teste de admissão do Colégio Militar e passei. Estudei lá da quarta série do Ensino Fundamental até o fim do Ensino Médio. Da quinta série em diante, passei a ser bolsista, porque sempre fui o melhor aluno da classe.

Quando terminei o colégio, a escolha óbvia para meu futuro era algo ligado ao militarismo. Para mim, aquele era o estilo de vida ideal: havia disciplina, ordem, companheirismo, infra-estrutura. Não foi surpresa para ninguém quando entrei para o Instituto Militar de Engenharia.

Na faculdade, meu desempenho não foi diferente do da escola. Era excelente aluno, sempre tirando as notas mais altas e era respeitado por todos os meus professores e colegas. No último ano de meus estudos – fazia Engenharia Mecatrônica -, um de meus tutores deixou uma carta em meu armário, que dizia o seguinte:

Caro formando,

É com enorme satisfação que envio essa notificação a você. Como bem sabe, todos os anos indicamos alguns de nossos melhores alunos para vagas no Instituto Espacial (IES). Esse ano, havia apenas uma disponível e você foi o escolhido. Esperamos que consiga extrair o máximo de conhecimento dessa oportunidade ímpar concedida a você.

Sucesso em sua nova jornada.

Li e reli o bilhete algumas centenas de vezes. Minha cabeça chegou a rodar, juro. Procurei meu professor, confirmei a informação e voltei correndo para casa. Dei a notícia a meus pais, que celebraram comigo. Liguei para alguns colegas da faculdade e marcamos de sair para comemorar. Fomos a um pequeno bar perto do Hospital Militar e bebemos o suficiente para gritarmos a plenos pulmões que nos amávamos e que seríamos amigos para sempre.

No início, tudo parecia um pouco irreal. O Instituto Espacial era o lugar que eu mais queria conhecer na vida e, de repente, eu estava trabalhando lá. Todos me tratavam muito bem, me ajudavam quando tinha dificuldades e me mostravam como fazer tudo o que eu tinha que fazer. Se o IES fosse uma mulher, eu me casaria com ela.

Um ano se passou e meu trabalho lá era uma maravilha. O que eu fazia era tão importante para o Instituto que meu salário foi aumentado três vezes durante esse ano. Basicamente, eu e mais dois cientistas – lá, os engenheiros eram chamados de cientistas, não é o máximo? – trabalhávamos na criação de uma nova estação espacial, que poderia ser operada por apenas uma pessoa, o que seria uma revolução na tecnologia espacial mundial porque reduziria em muitos milhões os gastos dos governos com projetos desse tipo.

No início do meu segundo ano no IES, a alta direção decidiu sortear bolsas de estudos para o Mestrado em Física Espacial. Fiz a prova e passei em segundo lugar. Liguei para meus pais para dar a notícia e, como sempre, eles festejaram muito. Eu era o orgulho de casa. Apenas dois de meus amigos retornaram minhas ligações e demonstraram grande felicidade com a minha conquista, apesar de desconversarem rapidamente e desligarem quando perguntei como eles estavam.

Conciliar o Mestrado com o trabalho não foi fácil. Minha vida social, que já era quase nula, acabou. Eu literalmente morava no Instituto. E adorava isso. Trabalhava com algo que, além de importante, era muito legal. Aprendia coisas incríveis todos os dias, mas tive vontade de desistir algumas vezes. A pressão era muita.

Terminei o Mestrado com menção honrosa pela direção. Segundo eles, minha tese sobre termodinâmica poderia dar novos rumos às pesquisas do IES. Por causa disso, fui classificado automaticamente para o Doutorado. Como tive a liberdade de escolher o que gostaria de estudar, optei por aprofundar meus estudos em Física Espacial.

Mamãe e papai eram só alegria. Meus amigos, no entanto, não retornavam mais minhas ligações. Acho que estavam muito ocupados. Dediquei-me de corpo e alma a meus estudos e trabalho. As pesquisas já estavam bem avançadas e o término da estação era esperado para os próximos três meses. Fui promovido mais duas vezes e já era engenheiro-chefe do projeto “Mercúrio”.

A conclusão do meu Doutorado coincidiu com a da Mercúrio. Todos no Instituto festejavam sem parar, porque era um projeto ousado e que já enfrentava críticas ferrenhas antes mesmo de ser testado. Eu era, talvez, o mais empolgado, porque grande parte das idéias que levaram à construção do Hg (apelido carinhoso que demos ao projeto) saiu da minha rica cabecinha.

Não sei se foi porque eu nasci virado para a lua, como dizem muitos, ou se foi por meus méritos – porque vamos admitir que ninguém naquele lugar, e talvez em nenhum outro do mundo, estudou tanto quanto eu -, mas fui o escolhido para participar da primeira viagem tripulada do Mercúrio. Preciso dizer como meus pais ficaram? Meus antigos amigos é que não sei. Nunca mais falei com eles.

Só para recapitular: quando eu era criança, sonhava em ser astronauta. Hoje, depois de anos e mais anos de estudos, eu sou um astronauta. De verdade. Daqueles com aquelas rouponas brancas que pesam tanto quanto um elefante grávido. Tenho que admitir que o treinamento físico e psicológico para minha primeira viagem espacial foi muito, muito difícil. A melhor parte era a câmara anti-gravitacional, o único lugar onde eu podia relaxar.

Depois de aproximadamente quatro meses de pura tortura física e carinho mental, o diretor disse que eu estava pronto. Agendaram o lançamento do Hg para dali a 12 dias e me deram uma semana de folga. Só precisava voltar para o IES cinco dias antes, para os devidos preparos antes da viagem.

Minha semana passou tão rápido que não há nem o que comentar. Fiquei a maior parte de meu tempo com meus pais, conversando e jogando pôquer. Meus amigos sumiram do mapa e a moça com quem tentei ter relações antes da viagem disse que eu era muito nerd para ela.

Voltei para a base e passei pelos últimos exames médicos antes do embarque. Não teve um único centímetro do meu corpo que não fosse revistado por aqueles sádicos de jaleco branco. Nenhum cantinho ficou sem a devida observação, até os mais ocultos segredos de minha anatomia foram desvendados por aquele bando de Jekyls .

Finalmente, chega a hora da partida. Todos estavam muito ansiosos, podia ver em seus olhos. Vi também um ou dois olhares invejosos, mas acho que isso faz parte da coisa toda. Dei um tímido aceno para meus colegas e embarquei. Apertei os cintos de segurança, conferi os comandos e dei o ‘OK’ para a base. Contagem regressiva, um ‘Deus esteja com você’ pelo rádio e começo a subir.

Depois de alguns minutos, me acostumo com a enorme pressão que os propulsores externos causam dentro da cabine. Para dar uma idéia do que a pessoa sofre numa decolagem dessas, imagine um rinoceronte montado em um elefante que, sabe-se lá porque, resolveu sentar no seu peito. É mais ou menos isso.

O Hg entra na órbita em que deveria, solto os cintos de segurança e aviso para a central que está tudo em ordem. Consigo ouvir pelo rádio os gritos do pessoal. Sinto-me a pessoa mais importante de todos os tempos. Dou uma última conferida nos instrumentos de navegação, em meu estoque de comida (estranhamente grande) e em meus aposentos reais.

É indescritível a beleza da Terra. Sei que você já viu fotos do nosso planeta, mas daqui é muito diferente. Imagine que você tem um pôster da Natalie Portman na parede do quarto e, de repente, sai para jantar com ela. É por aí. Por enquanto não consigo ver a lua, mas dentro de seis horas, de acordo com meus cálculos, o queijão aparece.

Meus primeiros três dias de trabalho espacial são maravilhosos. Vejo a Terra de todos os ângulos – e aquela história de que dá pra ver a Muralha da China daqui de cima é verdade sim, e também dá pra ver as luzes de Las Vegas (isso eu não sabia, foi uma grata surpresa). Tudo é tão novo, tão intenso, que desejo passar o resto da vida aqui em cima. Longe dos problemas, longe das guerras, longe de tudo.

Seis semanas depois

Estou entediado. Não tenho nada para ler, o pessoal lá da base não pode ficar conversando comigo o tempo todo pelo rádio e aqui na nave não tem nada pra fazer. Não tem televisão, Internet, pô, não tem nem um baralho pra eu jogar paciência. Sinto-me mais sozinho do que nunca. Não me dão notícias de meus pais e, tenho certeza, não mandam meus recados para eles.

Ontem até que aconteceram duas coisas legais. A primeira foi que eu falei com o presidente pelo rádio. Maneiro, né? Ele disse que o que eu estou fazendo é muito importante, isso e aquilo... Aquele papo político que todo mundo já conhece, mas adora ouvir. A outra foi que eu vi um disco-voador grandão passando pros lados da lua. Sério.

Treze semanas depois

Hoje tive que ir lá fora fazer um conserto numa parte da fuselagem, que estava querendo me deixar na mão. Não foi difícil, até porque fui eu que fiz essa nave. Conheço cada pedacinho disso aqui. Ficar sozinho é um saco. De uns dias pra cá, dei pra falar sozinho. Pelo menos ameniza um pouco a dor da solidão.

Acho que estou ouvindo coisas também. A não ser que tenha um rádio escondido aqui e que liga e desliga automaticamente, ontem eu ouvi um disco inteirinho do Rush enquanto limpava meu dormitório.

Dezessete semanas depois

A base renovou minha estadia no hotel Mercúrio por mais oito meses. Estou dando pulos de júbilo, pena que você não possa ver agora.

Cinco semanas depois

Sinto-me um pouco deprimido. Não tenho com quem conversar, a única mulher que vejo de vez em quando é a Sandra Oh (trouxe uma foto dela escondida no meio das ferramentas), que é uma coreana feia pra burro e que só serve pra me lembrar que a vida pode, sim, ser pior.

Onze semanas depois

Estou ficando louco. E olha que quando uma pessoa reconhece a própria loucura, deve ser verdade. A única coisa que diminui minha loucura são minhas sessões semanais de xadrez com o YT-9-EJ-34, o venusiano que volta e meia vem me trazer biscoitos de banana com mel e avelã. E olha que eu nem sabia que tinha banana, mel e avelã em Vênus...

Falando sério, não agüento mais ficar aqui. Ninguém mais fala comigo pelo rádio, parece que me esqueceram aqui em cima. Antes eu amava flutuar pela nave, achava que meu trabalho era importante... Agora, parece que sou um fardo para mim mesmo. Não agüento mais.

Vou dar uma volta lá fora. Não me espere, posso demorar.