SOCIALIZAÇÃO PRIMÁRIA (Parte III e conclusão)
Socialização Primária - Parte III e conclusão -
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Mal sentiu a primeira claridade inundar, pelos buracos da velha gelosia, o quarto tocou levemente nela e sussurrou-lhe ao ouvido
-Está na hora.
-Já?
-Temos ainda toda manhã e a tarde de caminho, vá acorda...
Uma ténue camada de névoa envolvia a aldeia, conferindo um tom sinistro e lúgubre às construções de pedra escura e às gentes, entorpecidas pela a hora e temperatura. O cheiro agradável e aromático a pão acabado de fazer, fazia remoer os estômagos, ainda vazios depois do sono. Na soleira da casa dos pais, Carl , um dos mais madrugadores, entretinha-se a tocar flauta, batendo uma vez por outra com os pés no chão, expediente quase tornado num ritual, pelas pessoas da montanha, de maneira a combater o frio. Sorriu a alguns vizinhos que se juntaram a ele, e brincou com um cão. Procurou esquecer uma certa apreensão, molhando o rosto com a água de uma nascente próxima, voltando à flauta, enquanto pensava no atraso irrisório da mulher apenas para se entreter. Olhou as nuvens baixas e pensou se dentro de algumas horas a Professia se iria cumprir; reflectiu insistentemente no assunto até que Aurora desceu por fim as escadas e parou ao seu lado e enlaçou o braço direito em torno da sua cintura, enquanto o observava a tocar.
Faltavam dois dias para a última noite do ano, e o caminho ainda era longo até à Montanha Sagrada. Cada um deveria apenas levar mantimentos para quatro dias (dois para a ida e mais dois para a vinda) e roupa suficiente para resistir ao frio do Inverno. Carroças e cavalos não eram usados, apesar do frio e de alguns obstáculos que iriam encontrar no caminho. A peregrinação deveria ser simples e humilde, tal como tudo o relacionado com a religião.
Toda a população da aldeia se juntara nas ruas e, depois de uma ordem do Ancião mais velho, saíram numa longa fila até ao seu destino
Ao fim de uma hora puseram-se a caminho.
Após descerem a montanha, passaram pela gigantesca Planície da Lua, que se prolongava ao longo de dezenas de quilómetros. Esta era conservada com especial cuidado e mantida limpa de arvoredo ou qualquer tipo de detritos, pois aquele era o local destinado ao hipotético Regresso e que deveria acolher todas as aldeias, tendo cada uma um espaço próprio, e adaptado ao crescimento do número de habitantes. Depois da Planície passaram por uma série de bosques, (onde pernoitaram). Na madrugada seguinte atravessaram uma aldeia que era a principal fonte de minério da região, e logo de seguida ladearam as minas a céu aberto bem como as instalações de transformação do minério em metal. Por fim atravessaram um rio e chegaram ás imediações da Montanha Sagrada. Graças ao tempo que entretanto ficara ameno, (com a quase ausência de neve) o percurso foi rápido, dado que ainda dispunham da algumas horas para conviver com as outras aldeias.
O ambiente geral foi sempre de calma e jubilo, pois além da importância religiosa das horas que se seguiriam, quase toda a gente teria a oportunidade de rever parentes e amigos de outros lugares, ocasião rara (apesar da melhoria das vias de comunicação e do incremento do comércio que levava a um tráfico cada vez maior de pessoas e bens) e quase sempre coincidente com a verificação da Professia.
E era de facto uma ocasião única de celebrar a união, e de juntar toda a população do planeta numa área comum. Dentro de poucos anos, seria praticamente impossível esta reunião, dado o crescente aumento do número de habitantes, que levara já algumas aldeias crescerem de tal ordem que dentro em breve se tornariam nas primeiras cidades (um assunto protelado pelos Anciãos com receio de um crescimento demasiado repentino, mas inevitável pelo rumo inevitável que o progresso assumira). Nessa altura provavelmente teriam de se eleger, ou sortear quais os habitantes que teriam a honra de acompanhar os sábios. Nalguns meios o assunto já era discutido, e dentro em breve as soluções seriam propostas, pois começava a ser incómodo tais ajuntamentos que saiam desde há algum tempo da base da montanha para se estenderem pelos terrenos circundantes, muitos quilómetros para além da base original, onde as condições de acomodação (apesar da construção de várias hospedarias e de alguns telheiros que protegessem minimamente os peregrinos) eram já totalmente desadequadas.
E as condições deveriam ser de facto dignas, dado a enorme importância daquela noite, onde praticamente ninguém dormia, não que fossem obrigados à vigília, mas a expectativa que O Regresso causava era suficiente para causar uma enorme insónia colectiva.
O tempo de se estar de matar saudades era sempre curto, parecia demasiado escasso, como de resto acharam Carl e Aurora, ansiosos por dar a conhecer aos familiares e amigos das outras aldeias a sua boa-nova. Ainda faltava um ror de gente quando a noite começou a cair.
Foi então que os Anciãos se juntaram e subiram.
E aquela foi a ocasião em que Carl olhou a Montanha Sagrada mais apreensivamente do que nunca.
Na altura prevista, todos olharam para o céu, mas só os Anciãos, instalados no topo poderiam ver o sinal. A maioria da população porém, preferia festejar, convencidos que estavam, tal como Carl de O Regresso constituir mais um preceito esotérico e vago da religião, habituados a todos os anos voltarem para as suas terras e retomarem assim as suas vidas.
Estavam profundamente enganados.
O céu apresentava-se estranhamente limpo, sem sequer uma nuvem.
Na quarta hora, quatro estrelas cadentes surgiram no céu.
Durante alguns segundos executaram um estranho bailado até que se cruzaram.
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Meia hora!
Mais de meia hora à espera!
Apesar da música, das imagens e da leitura destinadas a que a passagem do tempo fosse o mais cómoda possível, não conseguia evitar o nervosismo. Já perdera a conta às vezes que medira a sala de espera, ao ponto de ter decorado todos os seus pormenores!
Sabia estar tudo a correr bem. Limitara-se a cumprir ordens, a fazê-lo da maneira habitual, simples e linear, muito do agrado dos seus chefes. Até aqui tudo apontava para ser esta a maneira ideal de resolver os seus problemas, até aqui...até cometer o lamentável esquecimento de não se informar sobre o homem que o chamara.
Comentar ordens directas do“favorito” do Conselho com o próprio fora um salto no escuro, pago com uma transferência para os sectores das colónias mais periféricos, entrave sério a uma bela carreira no centro, longe das longas e aborrecidas viagens, distante de gentes de costumes obtusos e desconhecedores das belas maneiras tidas nos corredores das decisões, acepticamente imaculados, reverberando sobre os passos dos lideres que fazem a história (e demasiado grandes para reparar individualmente naqueles de quem regem os destinos). Por isso, a sua permanência aqui era vital, queria ser reparado e escapar ao destino anónimo da raça.
O pior de tudo era saber quem o transferira e estar consciente de lhe estar a prestar bons serviços, executando uma missão relacionada com uma experiência secreta. Porquê cumprir se de pouco valia a pena? E se...Sim, poderia utilizar o seu silêncio magistralmente, obrigando-o a recuar e, quem sabe, ainda a uma promoção. Seria a sua reacção lógica, mas, o sexto sentido dos vassalos prevenia-o e obrigava-o a acatar as decisões. Afinal as coisas poderiam ser piores, e as consequências da chantagem desastrosas. Sabe deus o poder tido pelo favorito do Conselho! Cumpriria a comissão durante os quatro anos regulamentares e regressaria. Tinha-se informado entretanto e sabido das oportunidades existentes, para pessoas como ele, gente de espírito empreendedor, fino trato, bem informado e com contactos sólidos na terra...E um bom pecúlio compra tudo, até mesmo uma transferência...
Mas a espera...Podia jurar ter ouvido música vinda do gabinete...Apesar de uma reunião ser a desculpa para a espera...
-Pode entrar convidou a sorridente secretária -Mas não a mesma da sua primeira visita.
Nunca se lembrara de ter visto qualquer sinal de simpatia nos olhos do seu actual superior, nem por um instante. O rosto sorria, formalmente, mas os olhos...pareciam dois bocados de vidro, alimentados por uma inquietação misteriosa.
Esta vez estava longe de constituir a excepção.
Foi directo e conciso.
-Daqui a três dias, a operação na qual está envolvido iniciar-se-á. A duração prevista será de somente vinte e quatro horas. Qualquer atraso é indesculpável, sendo você a responder com a sua cabeça por isso.
As dimensões da frota dificilmente a deixarão passar incógnita, pelo que tomei algumas precauções- Ela é oficialmente um corpo de salvamento a caminho de uma zona de risco. A papelada coincide. Se alguém se revelar mais afoito nas perguntas, mostrem o código do Conselho. Em último caso, repito, em último caso, remetam-me o infeliz, saberei livar-me dele....
Espero também que tenha escolhido os locais de recepção mais discretos.
Alguma objecção?
-Locais de recepção...? Sou eu o responsável ?Pensava que só me cabia a parte da viagem? - perguntou, titubeando a voz.
-Não me diga que se esqueceu!?-Os lábios perderam o sorriso e os olhos tornaram-se ainda mais frios e perigosos- Onde pensa então pôr aquela gente toda? Numa base do exército, à vista de meio mundo?
De uma vez por todas, ouça-me e escute bem as minhas palavras!
Eu não sou como os seus anteriores superiores, não dou nem gosto de levar palmadinhas nas costas, nem o convido para recepções onde a fina flor das terra e colónias se pavoneia entre risinhos e intrigas! Formei-me no terreno e é essa a linguagem por mim entendida! Exijo-lhe tão somente trabalho! Recompenso-o se o merecer, faço-lhe a folha se se armar em esperto!!!
Pegue no maldito código e arranje os locais de recepção ainda hoje! Com os meios tidos por si, conheci muito boa gente capaz de fazer um impossível, ora a si só lhe peço o mínimo dos mínimos...!
Parou, inclinou ligeiramente a cabeça e coçou o cocuruto, cansado, deixando o olhar perder-se por detrás do homem assustado que, à sua frente parecia estar prestes a desfazer-se em lágrimas.
Respirou fundo e, com voz calma, inquiriu-o paternalmente:
-Sinceramente, gosta do que faz?
“Enfim, um pouco de corporativismo! E a linguagem e preocupação às quais estava habituado, e entre as quais se sentia como um peixe na água. - Respondeu por isso com as frases feitas que tanto agradavam aos seus chefes
-Sempre pensei em seguir esta carreira. Cumpri sempre da melhor das maneiras ( a minha folha de serviços isso atesta), sendo o meu empenho conhecido por todos os locais onde estive, pode confirmá-lo e verificará as excelentes impressões registadas.
“Graxista, pote de cebo, imbecil de galões, arrastadeira do Conselho etc...-Pensou em segundos , abstendo-se de o transmitir.
-Muito bem, esteja desde já em “Stand By” e, pelo menos desta vez seja um pouco mais profissional...-E depois daquele discurso ainda mais se congratulou por ter despachado o Capitão para os confins das colónias onde, sabia, ele se iria sentir muito mal. E mais satisfeito se sentia enquanto o via despedir-se amavelmente com pequenas e servis típicas vénias dos capachos....
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-Daqui fala o representante do Conselho, dê início à operação.
Por um momento desejou anular a ordem, mas era tarde demais.
“A partir de hoje transformei-me na morte, companheira dos deuses, destruidora de mundos”
Os clássicos que vinham em seu auxílio. O autor desta frase tinha sido um dos elementos do projecto Manhattan, que dera origem à mãe das armas de destruição maciça feitas pelo homem, citando um velho poema indiano depois de ver, assombrado, a primeira deflagração atómica.
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Estava um dia estranhamente quente.
Parecia que a Mãe-Terra se queria despedir dos seus filhos, mostrando-lhes a sua gratidão, sonegando o frio, mostrando-lhes ainda serem amados. Os pássaros cantavam admiravelmente bem, invulgarmente bem, tudo à volta das aldeias continuava a fluir de vida, a natureza parecia ignorar a partida dos seus filhos maiores, como se nada se passasse, pois nada se passava.
Um dia antes, Carl fizera libações com os três elementos, numa despedida solitária, mas profundamente sentida aos seus que iriam partir. Tentou imaginar a sua vida dali para a frente. Iria ser duro, quase impossível, mas conseguiria; os planos originais foram transformados, os sonhos teriam a medida da realidade, mas ficaria. Por alguns instantes quis saber o que era o regresso, se viria dentro da terra, dos céus como defendia ele, ou do interior dos próprios homens, como defendiam outros, .Desistiu; não por ser incapaz, mas por isso o aterrorizar, por ainda não ser capaz de encarar a perda. Conformou-se definitivamente abstraindo-se de pensar ou de sentir o dia seguinte.
Sós, ele e Aurora na casa dos pais dele, ficaram à espera. Da varanda onde estavam, via-se o Planície da Lua, mas apenas isso. a presença do povo adivinhava-se e sentia-se, mas não se via.
Mais dois casais tinham-se recusado a partir, observando agora, tal como Carl e Aurora o vale.
Instintivamente, distanciaram-se e ficaram em silêncio. Ninguém se queria ver nos rostos dos outros naquela terrível hora
Uma saudade monstra arrebatou-o, mas ele nem sequer vacilou.
A terra começou a tremer ligeiramente.
O Regresso, pensaram.
Carl enlaçou os seus braços à volta de Aurora e beijou-lhe a testa encostando-a ao seu ombro. Uma brisa suave bateu-lhes no rosto.
Mais abaixo, a população de todas as aldeias também sentiu o tremor, e isso redobrou-lhes a confiança.
Ao longe, um zumbido quase imperceptível fez-se sentir.
Carl teve um pressentimento e tapou os olhos da sua companheira, dando-lhes uma festa prolongada.
De súbito uma luz intensa cegou-o.
O sol caia lentamente sobre a terra?
Parecia-lhe.
De repente a natureza calou-se.
Um silêncio estranho, ensurdecedor, como nunca sentira até ali, ocupou tudo, até a sua própria cabeça. Tentou gritar, sabia estar a gritar, mas não se ouviu. O silêncio tornou-se insuportável, e a luz aumentou até ao seu limite sensitivo O corpo doía horrivelmente, mas parecia estar a flutuar; tudo parecia estar a durar séculos, mas ele sabia serem apenas segundos. Pareceu ver as estrelas que tanto amava, sim tinha a certeza, estava a ver as estrelas, mais nítidas do que nunca!...Um bater surdo no peito indicou-lhe a presença de Aurora, abraçou-a ainda mais
Deixou de sentir.
Por fim um zumbido metálico e depois o velho e calmo silêncio.
O planeta deixara de existir.
-Missão cumprida - Fez-se ouvir uma voz satisfeita.
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Entrou na sala, hesitante. Desta vez não iria esperar, mas preferia-o mil vezes, preferia desaparecer. O sorriso comunicativo do seu superior piorou ainda mais as coisas - Quando ele souber !- Encolheu-se.
-Bem, com certeza me trará boas notícias! A missão foi executada!
-Executada...bem demais...
Explicou o sucedido, o lamentável mal entendido do seu colega e o sentido dado por estes às suas palavras. Como podia ele adivinhar estar a lidar com um carniceiro? Se o soubesse tinha explicado que a missão era de salvamento e não de combate! Que merda! Se pedira inicialmente naves de transporte como era possível substitui-las por uma esquadra de combate? Soubera mais tarde das limitadas capacidades intelectuais do oficial em causa, que por acaso tinha um bom padrinho algures e era promovido por isso...Claro, a punição estava em curso e...
-Como? Mataram-nos? A ordem era resgatar e não exterminar!!! Besta tripla!!!-Exclamou com a voz ligeiramente alterada, mas sem berrar o homem de cabelos brancos.
-Mas já puni o responsável! -Tentou desculpar-se o Capitão, adivinhando que a fúria do seu superior estava apenas no seu início.
-Você puniu-o? -O seu ar era de um gozo profundo e letal. - Raios o partam com a sua punição, oficial de pacotilha!
Senhor, começa a insultar-me...-Lacrimejou
-Finalmente! -Soltou uma enorme gargalhada- A partir deste momento considere-se preso! Está proibido de sair do edifício e deve aguardar na recepção a vinda dos guardas.
-Negligencia o material na minha posse...
-Pelo amor de deus homem, seja um pouco honrado e evite o disparate! E a seguir o que é que vem? “ As provas já não existem?” Esquece-se um facto importante- Isso dá para os dois lados, para o seu e para o meu. O fiel da balança pesa para o mais forte..O que irá fazer com as “provas “? Divulgá-las? Triplo idiota! Qualquer laboratoriozeco e um cientista medíocre são capazes de fazer igual...E a experiência é uma ideia tão incomum que passará facilmente por um devaneio ficcional...
Você está debaixo do poder dos tribunais de excepção e será neles julgado. “Ao abrigo da segurança dos mais altos valores do estado, o réu é condenado a...” Directoria Y. Basta o meu testemunho, apenas isso e nada mais...Porte-se bem, e poderei ter isso como atenuante...
Desesperado, puxou da sua arma.
Cinco tiros fizaram-se ouvir.
O homem de cabelos brancos sorriu.
-Secretária? Chame o grupo de limpeza e um guarda.
-Problemas?
-Não, apenas um contratempo temporário.
Pobre idiota, medíocre até ao fim. Tentar abatê-lo...Já o previra e por isso tinha uma arma preparada. “Atentado a uma chefia”, constaria no relatório e mais ninguém o chatearia...
Depois de limpo o escritório, o seu proprietário levantou-se, pôs as mãos atrás das costas e perdeu os olhos no horizonte, como tanto gostava.
Tinha de facto feito um trabalho brilhante. Nunca pensara em salvar a experiência, muito menos as pessoas envolvidas. A eliminação física era uma expressão arrepiante. Coloquialismos como “Assunto resolvido com problemas técnicos” seriam aceites por um Conselho sobre pressão.
Era de facto lamentável ocasionar a explosão no quadrante 5, mas sem ela as naves de transporte estariam disponíveis...Sim, e fora também oportuno ter disponíveis além de algumas das naves de combate mais potentes e com as tripulações mais disciplinadas, habituadas a nunca fazerem perguntas sobre as respectivas missões, um oficial suficientemente idiota para as utilizar. Afinal não o escolhera ele entre uma série de falhados? O padrinho misterioso era de facto uma alma generosa...
Sabia, talvez melhor do que ninguém vivo a importância da experiência e o seu desperdiçar.
Por um mero acaso, tomara conhecimento da sua existência : quando voltara à terra nomearam-no responsável por um edifício onde estavam instalados serviços menores. Por natureza era picuinhas e transmitiu isso ao seu trabalho; de modo a que, independentemente das funções desempenhadas, gostava, e fazia gala nisso de estar por dentro de tudo, desde um assunto menor aos de maior responsabilidade; segundo ele esta era a forma ideal de controlar tanto o trabalho como os seus subordinados. Era a forma ideal de cumprir uma tarefa. Conseguia-o através de um duro método disciplinador, tanto de si como dos outros; a maior parte das vezes sabia tanto de um impedimento como o seu directo responsável, e como não admitia as suas próprias falhas também não admitia as dos outros.
A sua competência era assim proporcional ao ódio angariado. Subira por isso na carreira mas sem brilho e sem glória. Era apenas mais um funcionário no sistema, mas trabalharia como se as suas funções fossem vitais. E afinal ninguém o compreendia, a ordem, em tempos uma constante era apenas mais uma figura de retórica usada pelos ociosos mas não por ele.
Destinou a vida ao cumprimento de rijidos padrões, e seria assim até ao fim.
E fora esse rigor pouco comum e pouco reconhecido que o conduziu à experiência e à alteração do seu destino. Durante uma das suas horas de ócio, ocupadas na “exploração” da meticulosa da grande e centenária casa, procurando mais uma sala, mais um escritório onde se escondesse um “sedentário “, descobriu uma porta tapada por um pesado armário. Horas depois abria-a e ficou perplexo com o que deparou.
Sentiu uma enorme necessidade de mergulhar na história e de a perceber. Por isso, a partir dessa altura dedicou-se à obsessiva leitura e ao visionamento dos mais diversos documentos a que pode deitar mão de forma a tentar compreender melhor o seu tesouro.
Demorou anos, mas a sua habitual eficácia compensou-o largamente.
Há mais ou menos 1000 anos o grau tecnológico atingido pela humanidade era tão assinavel que permitiu o advento de uma nova “época das luzes”. Depois de uma fase de estagnação civizacional, o homem, mercê de uma série de factores e de uma boa dose de sorte, transcendeu-se, ultrapassando em muito as expectativas mais optimistas de futurólogos. Todas as ciências evoluíram espantosamente e catapultaram o homem para o seu destino- As estrelas.
Mundo atrás de mundo, foram sendo descobertos novos horizontes, a explorar e enriquecer as potências. Nenhuma vida foi descoberta, mas afinal o que importava isso? A terra prosperava como nunca, a população em explosivo aumento demográfico podia-se espalhar indefinidamente. A tecnologia tornara corriqueira a reconversão de atmosferas primitivas, sendo por isso banal as colónias em solo alienígena com atmosfera transformada. Não demorou muito que estas ultrapassassem em número, os habitantes do planeta mãe.
De facto era pouco relevante a enixistência de vida de origem não terrena.
E foi precisamente aqui que as coisas começaram a correr mal.
Um estranho fenómeno surgiu por todo o lado onde vivessem humanos- Os conflitos começaram a estar latentes e as relações de vizinhança em perigosa ruptura. Tenções da mais diversa ordem e a incapacidade de lidar com elas ameaçavam lançar o homem para o abismo.
Parecia que a humanidade estava farta de si própria, como que ansiando por um vizinho - Pelo menos tal foi referido por alguns homens mais avisados, pouco ouvidos, no entanto.
Seriamente preocupados, alguns dos representantes dos poderes da terra e colónias, reuniram-se secretamente e uniram esforços para resolver a crise.
Achando as causas na base das relações humanas (desfeitas ou alteradas pela evolução tecnológica), optaram por tentar um regresso ao início de tudo. Surgiu então um plano louco, nunca realizável em tempos mais calmos, mas agora aceite e quase louvado
Foi reunida uma das maiores equipas de sábios multinacionais e multidisciplinares da história e lançaram-lhe o desafio de reinventar a história das relações sociais, fazendo-a recuar muitas dezenas de séculos, inventando uma sociedade semi-primitiva. Chegou-se a pensar em utilizar maciçamente a engenharia genética recriando assim, de base, a raça ( amostras de DNA extraídas a ossos fossilizados, a múmias e a corpos congelados de homens da pré-história permitiam o renascimento da espécie) mas a pressa tida obstou a este quase preciosismo. Foram rigorosamente escolhidos, então, algumas dezenas de voluntários, de todas as raças. Deram-lhes vinte aldeias para viver e uma religião, cuidadosamente preparada por teólogos e filósofos. A religião era arcaica, mas possuidora de principios identificados por analogia com as nossas leis. Os envolvidos comprometeram-se a só transmitir aos seus descendentes a língua e conceitos rudimentares civilizacionais e um passado hipotético dos seus antepassados . Este foi idealizado por alguns dos melhores escritores que o dinheiro podia comprar, que tiveram a supervisão de antropólogos e sociólogos, sem os quais a verosimilhança dessa história poderia ser posta em causa. Enfim, transmitiram uma história que nunca existiu, uma história inventada expressamente para a experiência, destinada a fundamentar a existência deste novo povo, isto devido ao perigo que poderia existir da ausência de um passado, dado ser este a base de qualquer civilização.
Quando os dados recolhidos fossem considerados suficientes, estava planeado resgatar a população e devolve-la ao mundo dos seus verdadeiros antepassados. Alguns ainda contestaram este “resgate”, defendendo que se tal acontecesse se iria desenraizar um povo, defendendo que este deveria ser deixado á sua sorte natural. Mas a maioria dos técnicos recusou a existência de duas civilizações humanas completamente distintas. Desde o aparecimento do “aldeia global” que nenhum povo vivia completamente isolado, que de uma forma ou de outra mantinham contactos com o exterior. Apesar de alguns malefícios da mistura de diferentes culturas, a lógica do “nunca se cresce saudavelmente quando se está isolado” predominou. Além do mais este povo tinha sido uma invenção, não era natural, nunca existira. Assim, quando os dados recolhidos fossem suficientes, procedia-se a um resgate do novo povo, internava-se para adaptação a sua civilização original, e assim as coisas voltavam ao normal.
Por fim o local onde tudo se iria desenrolar -A base seria um planetóide de características morfológicas adaptadas ao homem, mas suficientemente afastado para ser não ser economicamente rentável, o que lhe permitiu permanecer incógnito. Para além disso instalaram na sua órbita uma série de potentes satélites de longa duração, o que lhes permitia supervisionar a experiência durante várias eras, gravando o progresso deste povo. No terreno também havia milhares de micro câmaras escondidas, que daria aos supervisores uma visão próxima da evolução dos conflitos. Um dos medos dos cientistas era o de que um dia a experiência deixasse de interessar aos poderes que se seguiriam, ou que fosse totalmente esquecida, pelo que, de maneira a evitar a sua desactivação perda dos dados e preciosos resultados, e como medida de segurança a experiência seria seguida por computadores e restante aparelhagem de apoio totalmente independentes de mão humana.
O conceito do “Big-Brother” nunca fora levado tão longe, mas desta vez com intenções benéficas
E assim, praticamente incógnita começou a experiência.
No espaço de uma geração tinha-se recuado ao passado.
A esta experiência fora dada o nome de Socialização Primária.
Com ela tentava-se resgatar o princípio.
No entanto, com o passar do tempo, a situação na terra evoluía. As expectativas quase pueris foram sendo sobrepujadas por uma estagnação política, rapidamente transmitida aos próprios conflitos, ao abrandar da perigosa tenção, mas não ao desaparecimento desta.
Não foi assim de estranhar o esquecimento da experiência da qual poderia resultar a sorte da raça. Embora nos primeiros anos olhos humanos ainda tivessem acompanhado o dia-a-dia dos seus colegas, anotando as dificuldades e maneiras como os envolvidos as superavam, quando esta geração de cientistas se reformou não teve continuação Estava planeado resgatar a população quando os dados extraídos fossem suficientes, mas tudo mudara, os membros que tinham imaginado e trabalhado no projecto tinham morrido sem transmitir a existência deste. Este esquecimento permitiu o crescimento assombroso mas anónimo da nova humanidade.
Por breves anos a perspectiva de duas civilizações diferenciadas por uma quase eternidade coabitaram sem se conhecerem foi uma realidade.
Até um anónimo amargo e desiludido funcionário a redescobrir, num antigo edifício de importância menor e tão esquecido como ele próprio, onde funcionara em tempos um complexo cientifico. A tecnologia auto-regeneradora primitiva mas altamente eficiente, permitiu uma gigantesca compilação de dados.
Percebera o perigo da nova civilização poder destronar a sua.
Idealista recalcado de segunda categoria, sentimentos contraditórios surgiram, cindindo-o : por um lado sentiu uma enorme inveja pelos novos homens, um renascimento, o reaproveitar de velhas ideias, de filósofos e livres pensadores, postas em campo. O mito do homem bom vivia e desenvolvia-se como jamais se pensara! A não-linearidade da história, a negação de ela se desenrolar como ondas estavam provados! Uma socialização avançadíssima numa sociedade relativamente primitiva, o equilibrio entre um hedonismo e epicurismo procurado, mas nunca achado, enfim o equilibrio dialéctico há tanto procurado estava ali, ao alcance da sua mão! Dezenas e dezenas de autores de todos os tempos procuraram esta síntese só alcançado em obras, que alimentaram tantas e tantas quimeras.
O seu poder era superior ao dos deuses .
Mas, ele pensava, não, tinha a certeza de o problema do homem ser irresolúvel por aquela via. A Socialização Primária era apenas uma parte ínfima da resposta.
Vivendo só desde sempre, a nossa espécie procurava uma verdade não existente em si própria.
Tudo estava demasiado intoxicado por anos e anos de ideologias, religiões e sistemas de pensamento falhados. A natureza instintiva do homem era ser livre, mas a sua socialização (resultante da evolução histórica que o transformou de um animal frágil a dono da natureza) obrigou-o a perder essa liberdade sem a qual jamais acharia a verdade. Nestas condições, ele pensou encontrá-la na filosofia ou religião ou na ciência, três formas diferentes de um mesmo engano. E mesmo aqui as grilhetas da opção do livre arbítrio toldavam-lhe os movimentos : ninguém se atrevia a defender uma posição pessoal mais arrojada se esta não estiver “à priori” concordante com outras existentes. As excepções são poucas.
O homem não passava de um escravo, prisioneiro nos conceitos onde se afundava desde o início dos tempos. Procurava inconscientemente a vida exterior a si, vulgarmente chamada extraterrena. Era o seu destino, mas ninguém o assumia.
As tensões imanentes às massas não eram mais do que uma ténue manifestação individual de uma pulsão, de uma necessidade não identificável, portanto não eliminável pela simples revelação da experiência.
O homem de cabelos brancos assim pensava e tudo quanto fizesse teria de seguir esta linha de raciocínio.
Ele também sabia da necessidade de o homem se preparar para o choque dessa vida ainda não encontrada. Para isso, ele teria de fruir primeiro a sua individualidade, de a dissecar, e só depois se podia atrever a conhecer outros seres, diferentes de si. “Conhece-te a ti próprio” Ora como era possível se ele estava demasiado ocupado a construir e manter uma sociedade?
Tomara conhecimento da recepção de algumas mensagens ordenadas, mas ainda indecifradas, vindas de uma galáxia inexplorada. O segredo fora guardado ao mais alto nível, e só algum do seu peso o fizera saber da verdade. Na altura dispunha de dados suficientes sobre a experiência ao ponto de fazer tremer o Conselho, e por isso, este cedia às suas exigências. E foi por isso que soube estarem-se a intimar preparativos para um contacto.
Mas ainda não estavam preparados! Sem a liberdade era um suicídio!
Se a humanidade tomasse conhecimento da experiência, o fascínio pela socialização seria inevitável, e novamente se perderia tempo a estudá-la etc, etc, etc...
Sentia-se dividido. Por um lado queria salvar a experiência, por outro destruí-la.
Vivera já demais, vira demais, e deixara de acreditar.
A hipótese de a verdade se encontrar no exterior resultara do processo de irrisão a que a vida o submetera. Tinha uma necessidade demente de acreditar, e só a vida extra-terrestre lhe dava resposta, se não fosse isso, a raça estava condenada, e ele não queria acreditar nisso.
Por isso nunca poderia recuar na sua lógica .
As massas continuariam a viver imersas na sua ilusão, com revolusõeszecas inventadas casualmente para as aliviar, para aumentar o seu torpor. Planeara tudo ao pormenor: depois de liquidar a experiência iria entregar ao Conselho um plano de preparação da espécie para o contacto, livre de qualquer obstáculo, preparação maciça com o anunciar público da descoberta.
Sabia do ódio de morte tido no Conselho, mas o esconderijo para onde levara as provas era seguro, e eles nunca se atreveriam a tentar matá-lo. Ou talvez o fizessem. De pouco lhe importava. O mundo por si idealizado nunca existira, ou antes, ele descobrira-o demasiado tarde, e eliminara-o para a sua nova verdade poder sobreviver.
A salvação da raça estava, ou poderia estar na experiência, mas ele já não acreditava, tendo que por isso inventar algo para se convencer e para destruir a salvação, sendo a hipótese da vida extra-terrestre a solução ideal.
Provavelmente estava a endoidecer, mas ninguém ligava a isso, nem mesmo ele.
“É preciso que tudo mude para que tudo fique na mesma”-Voltou a recordar tristemente.
Abriu o ecrã e olhou vã e apaixonadamente para as nuvens, como sempre. Ia a passar uma nave, possivelmente em direcção ás longínquas colónias ou à fronteira.
Por um momento desejou estar dentro dela.
“Somos deserdados do nosso passado, separados das nossas origens, não devido a qualquer amnésia ou lobotomia, mas à brevidade da nossa vida e às imensas e insondáveis perspectivas de tempo que nos separam delas”
Carl Sagan
Fim
Dezembro de 96
Corrigido em Junho de 2000