SOCIALIZAÇÃO PRIMÁRIA (Parte I)

Pelo ano de 1996 abandonei por fim os pequenos contos que escrevia desde muito cedo e que ia publicando na secção Jovem do “Diário de Notícias”, onde ocasionalmente cheguei a ganhar alguns prémios, e comecei a escrever contos maiores, os contos da “minha idade adulta”, como gosto de chamar a esse período. Nesse ano em que o meu curso de Serviço Social se aproximava do fim muita coisa começou a acontecer duma forma vertiginosa. Foi um ano magnífico em que comecei a descobrir outros mundos, de tal ordem que tal se reflectiu na escrita: comecei trilhar novos caminhos, a percorrer a via actual onde me encontro, comecei a escrever finalmente livros. Este conto que vos apresento agora em 3 partes marca o início desse percurso magnífico e faz parte do meu primeiro livro, do qual tenho apresentado outros contos neste site, e é por isso que, com maior orgulho ainda dou a conhecer estas próximas linhas, que escrevi com invulgar amor e carinho, e é com ternura que vos entrego, este que é parte do meu legado, da minha herança espiritual, estas que são as minhas palavras.

A ideia original desta história e do livro de contos surgiu noite alta, na alta de Coimbra, bem perto da Sé Velha, no intervalo de uma rodada, estava eu no antepenúltimo ano do curso.

Horas antes soubera que um dos homens que me fizera amar o espaço morrera por fim vítima de uma doença demasiado terrestre.

Por isso não poderia deixar de lhe dedicar esta história, esperando não desprestigiar a memória de tão nobre divulgador do espaço conhecido e dos seus mistérios.

Esperando que a sua alma paire bem alto no Universo que amou:

Em homenagem a Carl Sagan.

Conto iniciado no dia seguinte ao da sua morte

SOCIALIZAÇÃO PRIMÁRIA

“ Talvez este mundo seja o inferno de outro planeta”

A. Huxley

1

De pé, mãos atrás das costas olhando as nuvens à sua frente, o homem de cabelos brancos, fato cinzento e de olhar carregado, pensou um pouco.

Estava apreensivo e o pior é que tinha motivos para isso... Virou-se carregou num botão e disse qualquer coisa. Dai a pouco, um outro homem entrou na sala e esperou. Entretanto primeiro tinha-se sentado e observava um qualquer ponto abstracto entre ele e a secretária; sentia-se melancólico e um pouco romântico...tempos loucos estes...e sonhou um pouco...tempos nos quais já tinha naufragado uma série de projectos e de belas ideias inadequadas apesar de irresistivelmente românticas; ah! Esta calma do seu gabinete...desejava transmiti-la para o resto dos seus afazeres, das suas responsabilidades...lamentavelmente isso era de todo inviável, apesar de possível, apesar de ele ter poder para isso, estava, no entanto, envolvido na temível tríade cansaço - idade-e-acomodação e depois, se mudasse, isso de nada lhe serviria...”É preciso que tudo mude para que tudo fique na mesma”- recordou melancolicamente... Despertado pela presença do Capitão . Olhou-o por instantes reparando que este se encontrava completamente encharcado.

-Mau tempo...

-Uma chuvada das antigas- disse timidamente

-Sabe, daqui raramente se notam as perturbações atmosféricas, nem mesmo os ventos. Raramente tenho o prazer de sentir os elementos... - Suspirou como se a ausência de chuva e de frio o transtornasse verdadeiramente.

Após mais alguns segundos de pausa, indicou-lhe uma pasta junto de si.

-Lei-a o mais depressa possível. Tem cerca de vinte e quatro horas. Amanhã, por volta desta hora deve estar á minha frente para receber novas instruções.

O outro, apercebeu-se da urgência do assunto, mas ao ver o grosso dossier, franziu um sobrolho e arriscou.

-Vinte e quatro horas...?

-Ou menos ainda. O ideal era decorar o máximo possível de páginas, mas como creio que tal será difícil, limite-se a fixar os dados essenciais. Deverá também recorrer a meios audiovisuais; no sector C encontrará uma pasta com a designação SP1 (sociabilização primária). Trata-se de material de máxima confidencialidade, pelo que necessitará de um passe especial - tirou da gaveta um cartão com uma série de símbolos abstractos e fita magnética e atirou-o para junto do livro- . Devo ainda avisá-lo do secretismo deste assunto e da sua delicadeza; a única pessoa com que está autorizado a falar sou eu. Repito, máxima confidencialidade. É casado?

-Não.

-Vive com alguém?

-Não.

-Óptimo, sendo assim estará ainda mais à vontade para trabalhar; se quiser temos salas especiais para o efeito onde pode trabalhar na maior das calmas.

-Agradeço mas prefiro o meu apartamento.

-Sendo assim...E não se esqueça, vinte e quatro horas, nem mais nem menos uma...

-Um dia portanto...

-Sim um dia que se arrasta há demasiado tempo...

-Como?

-Depois de ler perceberá.

Reencostou-se na poltrona, juntou as mãos perto dos lábios e suspirou.

-Assuntos como estes pecaram por terem sido esquecidos ou voluntariamente negligenciados, mas agora...chegou finalmente a altura de tomar decisões...

Acenou-lhe vagamente com a mão em jeito de despedida e, de seguida, voltou para a sua janela panorâmica onde as nuvens escondiam a megalópole, trezentos e vinte andares abaixo de si.

O outro, depois de passar pelo sector C, dirigiu-se o mais depressa possível para casa.

Mal chegou, abriu a mala, pôs o material em cima de uma mesa, e ligou o ecrã cujas dimensões lhe permitiriam ver qualquer pormenor das imagens, por muito pequeno que fosse.

Há medida que as horas passavam, o seu espanto não cessava de aumentar. A sensação de se estar por dentro de algo de verdadeiramente grande, fizeram-no enfiar-se no sofá e reflectir.

Desde há muito se comentava a existência desta experiência, era como uma lenda em determinados meios, perspectiva alimentada por uma total falta de informação ou indícios. A sua ambição e objectivos eram tão ousados que nem mesmo o mais optimista seria capaz de acreditar num sucesso...por muito que uma vontade fantasista o alimentasse...E no entanto, ela existira, ela existia e com um sucesso notável.

-Meu deus, eles utilizaram tudo! Tudo! Desde cientistas das mais diversas áreas a filósofos geógrafos e até teólogos !- Pensou, lendo uma lista de dado -Tudo do melhor existente até então e...tanto dinheiro...Mesmo para os padrões da época era uma pipa de massa...Como foi possível a inexistência de qualquer investigação a gastos tão grandes? - Lembrou-se então de uma velha emenda que, por muito absurdo que parecesse, protegia os projectos secretos, “Na defesa dos interesses da comunidade”...As verbas no entanto eram irrelevantes perante a importância da experiência. Por isso abstraiu-se de pensar no dinheiro e concentrou-se no trabalho. Continuou até á hora do encontro, embora precisasse de tempo, muito mais tempo...

Mas no tempo previsto os dois estavam de novo juntos.

-E então, o que me diz...?- Inquiriu o chefe num tom monocórdico sem transparecer minimamente o que pensava sobre a questão. O outro, por seu turno, deu azo à sua opinião com um não disfarçável entusiasmo.

-Experiência magnífica teoricamente e com resultados assinaláveis na prática. Quem diria que naquele tempo se concebiam coisas tão...avançadas...quase vanguardistas ! Todos temos a ganhar com ela. Mas desculpe a pergunta, não percebi a razão de me ter contactado...

-Porque você irá providenciar o regresso, o Concelho e eu assim o decidimos. Terá à sua disposição um código pessoal. Mostre-o e nada lhe será negado, sem mais perguntas, excepto, claro, se os meios requisitados não existirem, mas isso já não será um problema nosso...Você é o homem escolhido para executar a missão, cumpra-a para o bem de todos.

-Como!? O regresso? Mas a experiência resultou!

Sem prestar atenção aos protestos ténues mas indiscretos e com uma frieza burocrática, o homem de cabelos brancos prosseguiu.

-Tudo permanecerá no maior dos segredos, as pessoas com quem será obrigado a lidar pensam tratar-se de uma outra coisa e...

-Desculpe a insistência, mas todos ganharíamos se os resultados fossem revelados, muitos dos problemas actuais seriam minimizados se se fizessem estudos baseados na exp...

-Mas quem é que lhe disse que os dados não serão revelados? E de qualquer das maneiras isso não lhe diz respeito. Deve providenciar o regresso e mais nada. O que fizermos a partir daqui é da nossa inteira responsabilidade.

-Não posso no entanto deixar que revelem os resultados...-Insistiu ainda em voz baixa.

Com um firme murro que fez tremer a secretária e com uma voz que não admitia réplicas, o outro estremeceu.

-Apesar de ser apenas um funcionário médio, a sua ficha pessoal indica-o como destinado a outros voos...Se tudo lhe correr de feição, a sua carreira será exemplar desde que entenda e que cumpra o mínimo exigível. Espanta-me portanto a sua falta de compreensão a roçar a mais boçal das ignorâncias! Será tão difícil de perceber...Os resultados estão longe de serem apenas bons, são de uma qualidade única, quase um paradigma cientifico! Mas os tempos mudaram, já não interessa a ninguém essa aplicabilidade...os interesses são outros e, além de mais já nos habituámos a viver assim... Podia muito bem tê-lo indigitado, sem demais pormenores para este caso, no entanto sou apologista da lógica de que uma pessoa bem informada cumpre o melhor possível, dai a razão das suas últimas horas de trabalho. Muito mais informação está guardada, aquela que leu é de grau cinco (numa escala de um a dez) mas suficientemente elucidativa; você é inteligente e certamente já se apercebeu da delicadeza disto...E porquê preocupar-se com questõesinhas? Carradas de gentes e de instituições vivem bem da forma como as coisas estão...Somos apenas dois peões a executar ordens...A revelação terá de ser ponderada ao mais alto nível, pois os seus efeitos poderão ser terrivelmente nefastos numa sociedade equilibrada...Temos de ver isto sem romantismos, de uma forma racional, pragmática. Quais os ganhos e as perdas? Pode ter a certeza que se as perdas forem maiores os resultados e a experiência nunca serão conhecidos. O que pode estar em causa é a sobrevivência da nossa própria civilização, e assuntos deste teor não são da minha responsabilidade nem da sua, são do Conselho.

-Mas...

-Execute as ordens e desapareça. Estou farto da sua falta de visão e de ambições, limite-se a executar! Certamente terá presente a sua primeira função enquanto funcionário: obedecer! Se lhe dei alguma informação, considere-se um privilegiado! Pela primeira vez ( e penso que última...) um alto funcionário dignou-se a perder algum tempo consigo, portanto, o mínimo dos mínimos a fazer será seguir a velha tríade de uma carreira prometedora - Ver, Ouvir e Calar...- O tom gélido e a voz severa indicaram o lado onde a razão se mostrava mais convincentemente...coerciva, motivos suficientes fortes a uma revisão de posição e um oportuno calar...

Ensimesmado saiu rogando entre dentes pequenas pragas. Tinha a impressão de estar a ser ludibriado pelo seu superior. Ele a referir-se a si próprio como um peão quando, na realidade se tratava de um dos jogadores principais. Era por demais evidente que ali havia coisa, mas afinal, quem era ele para duvidar? Desperdiçava-se uma oportunidade única, mas o mundo e a humanidade estavam cheios de casos destes... Limitar-se-ia a cumprir, com o máximo de brilhantismo, sempre à espreita de uma promoçãozita..., mas lamentando-se por ter cedido ao pouco que restava da sua consciência. Esta não conseguira resistir ao fascínio da mais deslumbrante de todas as experiências sociológicas que, pensava, tinham sido feitas pela humanidade. Normalmente nunca questionava ordens, mas naquela ocasião tal parecera-lhe absurdo, e por isso arriscara, mas logo perante este misterioso homem...

Depois de ter desaparecido num dos corredores do edifício, o homem mais velho carregou chamou a secretária.

-Sim?- Perguntou uma voz feminina de tom agradável.

-Diga-me, foi a senhora quem contactou o “cavalheiro” com o qual acabei de falar?- O tom era subtil mas perigosamente cínico.

-Sim...

-Qual a justificação?

-De entre uma série de possíveis escolhas esta era a melhor e...

-Seja objectiva...

-Bem...-Descobrira um pouco tarde de mais que a sua posição no departamento estava por um fio, pelo que se engasgou, hesitando, medindo as palavras até encontrar um pouco da coragem inibida sempre pelo seu superior - O seu corriculo é por demais elucidativo - O melhor aluno na área do planeamento desde os primeiros anos da Academia, autor de uma série de projectos na sua área louvados por todos a quem serviu, elogiado unanimemente e...

Em linguagem corrente, um bom lambe-botas suficientemente cretino para não se saber utilizar o seu valor e construir uma carreira a sós...cobarde ao ponto de preferir a veneração a caminhos mais duros, inseguro a perguntar eternamente a opinião dos donos à mínima coisa que faça ...E pior, os professores da Academia permitiam que a graxa fosse o combustível de uma carreira! Ah! Os seus velhos tempos, onde um homem só se fazia homem quando suasse e lutasse e não engraxasse...-Pensou coçando a barba rala

-Isso a mim diz-me pouco. Mais alguma coisa?

-Não...no entanto todos os técnicos consultados nesta área dizem ser ele o melhor.

-Os técnicos sabiam que era eu a pedir os dados?

-Sabiam, mas se me permite, eles são perfeitamente isentos e reafirmaram a sua confiança, dizendo que de facto ele é o melhor...

Desligou a comunicação e exclamou desconsolado:

-O melhor, estou entregue às feras!

Escreveu duas pequenas notas uma para exigir a transferência do funcionário para muito longe de si (independentemente do facto deste ir ou não executar a missão conforme lhe fora ordenado) e outra a recordar-lhe a urgência de arranjar uma nova secretária, de preferência suficientemente limitada ao ponto de se lembrar de nunca, em hipótese alguma pensar.

Estava deliberadamente a esconder a verdade de toda a gente. Sabia muito bem o que iria fazer à experiência, não precisando praticamente de ninguém para tomar as decisões correctas. Mas também se estava a borrifar para o resto do mundo. Era só ele e a experiência...só...ele.

Virou-se para a janela e desejou intimamente o sucesso da operação, caso contrário o seu próprio lugar seria pedido pelo Conselho.

2

Carl rejubilou.

Ficou de tal forma contente que mal deu pela viagem de regresso até à sua aldeia, quatro horas de caminhada a passo acelerado. Normalmente falo-ia de maneira mais lenta, contemplativa até, tentando desfrutar todos os segundos de convívio com a natureza. Mas hoje não. Levantara-se de madrugada, ansioso, tão ansioso que dispensou a água fria do ribeiro para despertar, a bucha matinal para aguentar a manhã, precipitando-se o mais depressa possível nos caminhos de pedra e terra que faziam a ligação entre a sua aldeia e a da agora sua noiva. Durante o percurso decorara o discurso, pauteando-o com expressões cuidadas de calculada delicadeza, para depois a presentear com uma bela pedra azul descoberta numa tarde de trabalho e imediatamente considerada um tesouro pela sua raridade.

A conversa da hora de almoço foi para ele uma autêntica bênção, uma confirmação, confirmação de um sonho que alimentava havia anos. Há já algum tempo que “montara cerco”, para alívio da família exasperada por nele não divisar nenhuma preocupação em se casar, começando a atingir aquela idade na qual o casamento só aconteceria por milagre, e que recebeu por isso com natural jubilo a notícia da sua decisão. Depois...bem, depois veio a parte mais difícil...Convencer a calma e introspectiva Aurora, senhora de muitos pretendentes, mas que se deixara seduzir por Carl, embora o renegasse timidamente por achar isso bem, marca indelével da sua filiação. Em determinada altura aceita-lo-ia e dar-lhe-ia os filhos que lhe iriam perpetuar o nome e o amor de ambos, mas isto só ao fim de algum jogo, para ele não pensar que ela era demasiado fácil...E sabe Deus quanto se controlara para não demonstrar ao namorado que aceitava, que aceitou mal viu esse desejo no seu olhar!

Tinham-se conhecido num dos bailes onde se comemoravam o fim das colheitas, forma de agradecimento aos céus pela fertilidade e de pôr em contacto os jovens das diferentes aldeias. No meio de um grupo de rapazes onde a conversa num tom demasiado alto denunciava gabarolices namoradeiras, o silêncio pesado no qual Carl se gostava de esconder não lhe deixava dúvidas - Ele era o calado de serviço, mas no entanto... Não era só calado, já que gente muda nunca era a garantia absoluta de se estar na presença de uma boa alma...Ele não era como os outros...Fisicamente, claro, estatura normal, corpo talhado pelo trabalho, rosto duro, mas onde se adivinhava a sensibilidade que só gostava de exteriorizar na música. Mas havia outra coisa, havia algo no seu olhar... e quando esse olhar se cruzou com o dela e a convidou para a eternidade, ela sabia ter encontrado um destino.

Nunca se tinham visto, ou pelo menos reparado verdadeiramente um no outro, sendo o primeiro e verdadeiro encontro definitivo. Mudo, reparou nela, no ar tímido mas também arrojado, pleno de personalidade, daquela alma de metro e meio, cabelo negro a dar pelas costas, rosto suavemente redondo, olhos meigos, nariz suave e boca generosa a ostentar um sorriso que se diria eterno. E de súbito ele leu qualquer coisa nela, um apelo, e por isso, ao contrário do que lhe era habitual tinha de agir.

Ao aceitar a primeira dança ela confirmou aquilo que o celebrado sexto sentido adivinhava - Era uma boa pessoa, possuidora de uma alma nobre e sonhadora aliada a um espírito empreendedor e humor pouco comum, transformadores únicos de maus momentos em amarguras passageiras, calor que derreteu o gelo e a fez apaixonar-se. Ao aceitar a dança., rendera-se mesmo antes de as palavras confirmarem as intenções de ambos. Ela já ouvira falar neste tipo de coisas, mas nunca pensou que fossem assim; claro que cada rapariga cria um mundo onde o seu amado aparece quase encantado, mas assim...nunca o concebeu. A dança durou alguns minutos, mas parecendo-lhe a ela uma eternidade, uma doce eternidade, por tudo quanto sentiu e viu que ele sentia e que ela teve a sorte de partilhar, de comungar. Pareceu-lhe terem parado no tempo e espaço, pareceu-lhe terem dali saido e penetrado num universo à parte, deles, uma maravilha que Aurora pensava não existir. Costuma-se dizer que, quando o tempo parece durar quando se está em companhia de alguém, esse alguém nos é desagradável, por arrastar esse tempo; mas no caso deles não, o tempo dilatara-se porque eles assim o quiseram, porque de facto o amor era o maior dos mandamentos com que ela decidira orientar a sua vida, subordinando tudo resto a ele. E a prova disto é que, quando pararam de dançar repararam que a música já tinha acabado à algum tempo e que eles eram os únicos a bailar, apoiados no som comum que tinham acabado de descobrir. Claro, a multidão desatou numa doce gargalhada mal o par reparou na sua figura, mas era uma gargalhada empática, sem malícia, um riso que abençoava o nascimento de uma união. No final, ainda um pouco envergonhados, saíram para um canto sem gente e combinaram encontrar-se o mais depressa possível, mas sempre com moderação e bons modos. Pois havia que manter as aparências, que aqueles tímidos “profissionais” faziam questão de manter. Mas o tempo, esse elemento onde julgava cimentar os sentimentos de ambos, tinha-a aprisionado na sua teia, pelo que o passar dos minutos, das horas, dos dias longe dele era insuportável, sendo o casamento o único lenitivo onde se aliviaria. Apesar de não o considerar uma alma gémea, Aurora tinha encontrado nele uma parte que descobriu lhe fazer falta, como se toda a sua vida tivesse vivido sem ela sem o saber, mas que depois de tomar conhecimento da falta não a admitia, não a suportava. Talvez isto fosse amor, ela não o sabia, mas também não queria saber, vivendo feliz neste desconhecimento. Ouvira em tempos dizer que o amor era a ciência dos tolos, mas se assim era não se importava, sendo e adorando ser a mais tola de todas!

Com o passar desse mesmo tempo, quando começaram a trocar palavras além de beijos, a sua razão confirmou (como se fosse preciso confirmar...)o caminho do coração. Tudo o que adivinhara confirmara, e se a eternidade por vezes pode ser uma incerteza, para ela passara a ser um dado adquirido.

E Carl? Era um homem normal, mas irresistivelmente apaixonado pela natureza, por todo o meio circundante, pelas estrelas que cobriam as suas noites. Esta constituía a sua marca mais vincada, que nunca ousara revelar a ninguém; havia um apelo de cima, para si inexplicável, mas fonte de uma enorme paixão. Apesar de manter o silêncio em relação a este ponto, tal podia-se adivinhar no seu olhar, quando este desaparecia da terra e se projectava para algures...

Os amigos, meio a sério, meio a brincar chamavam-lhe o poeta por este exteriorizar a sua sensibilidade em música, um dom que o fazia transformar qualquer objecto em caixas rítmicas, sortilégio bendito e único naquele mundo. Os fins das tardes de trabalho, as festas e qualquer outra ocasião onde tal aprouvesse, tinham a flauta ou a guitarra a marcar compassos de uma beleza ímpar, e o sorriso terno deste ser que nada recusava a quem lho pedisse e cujo maior defeito era ser por vezes desligado do mundo, (precisamente por sentir o apelo demasiado forte) das coisas terrenas e que por isso mesmo era deixado um pouco de lado, isto é, ninguém o levava suficientemente a sério, pelo que o seu celibatarismo era encarado com normalidade. Afinal, que mulher entregaria o seu destino na mão de um homem destes?

Mas o amor mudara Carl. Apesar de mais embuido em lirismos do que nunca, ele sabia bem o rumo a tomar; começara a fazer planos concretos, a estabelecer metas para ambos, trabalhando por isso mais incansavelmente do que nunca, e até já apalavrara a compra de um pequeno terreno, suficiente, no entanto para começar uma vida a dois. A mudança era tão notória que até já o olhavam com outros olhos. Até mesmo os renitentes pais de Aurora o recebiam agora em casa. Desconfiavam deste músico, apesar do seu empenho e firmeza e de ser conhecido como o jorna mais solicitado das redondezas; para eles era indiferente que Carl só tocasse durante as pausas -”Um músico é um músico, e um homem da terra é um homem da terra...os dois é que não podem ser um...”-zurziam aos ouvidos da filha. No entanto os bons modos e persistência do jovem operaram a transformação. Mas não fora só isso -Sabiam-no calado e metido para si ,mesmo, pelo que as conversas mantidas com eles, reveladores de um conversador invulgarmente sábio a um homem tão novo, e que se prolongavam, nos dias de descanso por horas e horas, os impressionaram decididamente. A partir de um determinada altura, os silêncios substituíram as censuras à escolha de Aurora

De resto, tudo na sua cabeça do jovem estava planeado, mesmo antes dos futuros sogros o começarem a aceitar; anos e anos de futuro foram delineados em dias, nos dias que sucederam o encontro com ela e com uma tal meticulosidade que o próprio se transcendera – Tudo seria adaptado à vontade da sua mulher, mas em principio dai a meses casariam, e iriam morar para casa dos pais dele. Temporariamente, claro está, pois contava ter , em três anos, dinheiro suficiente para construir uma para si, num morro próximo, virado para Norte, com as traseiras protegidas por denso arvoredo onde as crianças poderiam brincar protegidas dos elementos. Não muito longe um riozinho corria, apetecível, a desafiar a mergulhos no final da tarde, e a fertilizar esta terra de tal forma que nela crescia um pouco de tudo, mas sempre em grande profusão. E depois, quando os miúdos fossem mais crescidos, construiria um moinho, grande, enorme, onde moeria os cereais de quem lhe pedisse, sempre a preços simbólicos mas suficientes para que ele pudesse comprar tudo o que fosse necessário ( e também algumas extravagâncias pontuais com que mimaria a família...) a Aurora e aos filhos que viessem a ter. Por fim, contava reunir o maior de todos os rebanhos! Bem, maior, maior seria demais...mas um dos maiores, sim, um dos maiores! Ocupando o pasto mais vasto da zona, propriedade do seu pai, homem honrado e de poucas posses que via neste terreno a sua única fonte de rendimentos, pois cada rebanho devia pagar determinada quantia por dia passado no local.

No entanto, por muito que pudesse prosperar, jamais abandonaria o amanho da terra e a companhia das gentes, pois estes eram aquelas coisas que amava na vida e era junto delas que queria morrer.

Sentia-se mais forte do que nunca e sentia que nada o iria separar do seu projecto.

Recordou alguns fins de tarde passados com a noiva, à sombra de um enorme carvalho, deitado na relva com a cabeça deitada no colo de Aurora. Recordou ainda melhor o último - Os olhos fixavam-se, os lábios tocavam-se, ocultos pelos cabelos pretos da rapariga.

-E moraremos naquela colina perto da tua aldeia – Revelou-lhe ufano.

-Perto do rio?

-Claro, e havias de ver a varanda que eu tenho na cabeça !- Levantou-se entusiasmado e, pondo-se de joelhos, deu-lhe festas no rosto ternamente.

-E logo de manhãzinha, iremos ser acordados pelo sol! No Verão então vai ser um regalo!

-O quarto inundado pela luz!

-Claro, não será já, já, mas o terreno praticamente já é meu, aliás, é a tua prenda...

-Que querido!

-Vai ser duro, mas garanto-te que vais ter a melhor casa da região!

Abraçaram-se apaixonados e ficaram a ver o pôr-do-sol. Então ela recordou-lhe.

-É melhor ires, vais apanhar noite...O meu pai disse-me que os lobos andam mais afoitos...não queres passar a noite em casa de um primo meu?

-Conheço estas cercanias desde que nasci e várias formas de eles me deixarem em paz...

-Temo por ti- disse ternamente

-Meu amor, está escrito no céu a nossa união, havemos de casar e ser felizes, estou tão certo disso como de respirar. - E com um salto ágil pôs-se de pé ajudando-a a levantar, levando-a rapidamente a casa e partindo rapidamente para a sua aldeia.

Aurora sabia o que dizia; um dos seus tios fora morto e devorado, ainda na idade em que todos se julgam invulneráveis, por algumas feras, num ano onde a caça fora parca, tal como este. Carl maldisse da sua confiança quando se sentiu perseguido. Durante a maior parte do caminho fora seguido pelos animais, a uma certa distância, mas não a suficiente par o pôr a salvo em caso de ataque. Sabia poder lidar com um, mas de forma alguma com uma alcateia.

Tinha sido educado no campo e conhecia tudo nele. Passara até algumas noites nos montes, a guardar gado e a enxotar as bestas, matando uma um dia, mas ficando com uma enorme cicatriz no braço, não arrancado devido à sua presença de espírito que o fez eliminar o agressor à paulada. Fez desta vida a sua enquanto durou a meninice, aliás, a maior parte das músicas que fizera vinham desse tempo, de horas e horas solitárias, no meio das trevas; descobriu, por mero acaso esse lenitivo do maior mal dos homens, a solidão; assim, as passaram a ser menos duras e tenebrosas. Por fim, na altura da sua voz ser ouvida, ele optou sem hesitar – achando tal vida agradável mas não sua, optara em definitivo pela jorna, guardando, todavia a experiência e a ausência de medo na escuridão.

Sentiu-lhes a fome, e o calor de caçadores, esse mesmo calor que, quando aparece nos homens os transforma nos mais poderosos predadores do universo, máquinas implacáveis de exterminar, por puro gozo e não só pela necessidade, como os seus perseguidores. Talvez por isso ficou indemne.

Quando chegou a casa, deu a boa nova aos pais, bebeu uma aguardente oferecida aquando do casamento destes e religiosamente guardada para uma ocasião similar, e saiu de casa. Em meia hora todos os seus amigos estavam junto dele, na casa do povo, pedida expressamente ao Ancião e comemoraram de uma forma tal que não havia memória de coisa semelhante na aldeia. Apesar de todos serem pessoas de trabalho, pouco dados a festins fora da época normal, condescenderam esquecendo os berros e cantos que se prolongaram até alta madrugada, vindos das gargantas ebriamente molhadas dos amigos de Carl. Até de madrugada, muito depois dos outros se terem rendido ao cansaço, ouviu-se entre a negritude das ruas, a flauta e a sua melodia. Houve até quem jurasse que as estrelas brilharam mais, numa autêntica comemoração universal da felicidade de um boa alma.

3

Na enorme sala escura, as velas acenderam-se lentamente.

A mesa onde vinho, pão, azeitonas e queijo, tudo em quantidades moderadas como convinha a um lugar venerável e pouco dado a excessos, estavam à disposição dos visitantes, tremeu com a chegada dos cento e dois Anciãos. Um de cada aldeia, e dois da maior de todas, vindos de todo o mundo. Com gestos contidos mas afáveis cumprimentaram-se. Havia exactamente um ano que não se reuniam, um ano, como mandava o costume, preparando-se agora para três dias de reunião.

Todos conheciam o ritual, repetido tantas e tantas vezes por eles mas também pelos seus antepassados. O tampo coçado da mesa e o chão de pedra dura gasto isso indiciava.

Discutiram primeiro, de maneira informal, assuntos menores, quase particulares, como o nascimento ou a morte de alguém próximo, a dureza ou a suavidade de um Inverno, que condicionava obrigatoriamente o sucesso das colheitas. De seguida sentavam-se. Foi dado tempo a cada um revelar o que de mais importante tinha ocorrido.

Cada aldeia, dispunha, por si só, de um Conselho próprio, uma espécie de tribunal onde assuntos de um foro jurídico eram resolvidos. Tal como no Concelho principal, quem tinha assento eram as pessoas mais velhas e sábias, sendo o direito usado, o de sempre, o da jurisprudência aliado a um pragmatismo proverbial; como as suas leis não eram escritas, os costumes determinavam os comportamentos. As palavras escritas, dizia-se, poderiam ser interpretadas de forma diversa e levar à eclosão de conflitos, ao passo que a palavra de um homem era considerada sagrada e única.

A religião fora a única entidade reguladora que se permitia escrita, a base de tudo, e por isso admitida a sua transcrição, mas apenas poderia haver um manuscrito por aldeia. Por isso as cópias só poderiam ser feitas quando nascesse mais uma aldeia.

A estas obras memoráveis tinha sido dado o nome único de O Livro.

Tudo quanto fosse extra-ordem era julgado, tal como , roubos, extorsões, violações, assassínios, etc...No caso dos homicídios, a sentença poderia ir da ilibação ( caso o morto tivesse sido apanhado a roubar a casa do acusado) até à morte ( isto no que toca aos casos mais graves). Em cada aldeia havia uma casa onde se prendiam os condenados à reclusão, casa pouco utilizada devido à espantosa harmonia tido naquela sociedade. Em casos em que o Concelho da aldeia se julgasse menos apto a deliberar devido à característica do crime, o assunto seria levado à reunião anual. Nenhuma das decisões era susceptível de recurso, independentemente da dureza. Todos sabiam da honestidade e saber dos Conselhos, moldado pelo tempo, a lei antiga e a justeza dos membros, homens de moral impoluta e espírito superior, escolhidos por unanimidade em cada aldeia.

Jacob, o Ancião -Mor, fez a pergunta:

-Havia algo que deveria ser julgado naquele Conselho por escapar à sapiência dos Conselhos menores?

O ano tinha sido relativamente calmo, só havia um caso, grave e delicado : um homem tinha-se dirigido a uma aldeia vizinha, onde roubou uma casa, violando e matando a dona. Denunciado pelo barulho, fora apanhado e encarcerado.

O que fazer?

-Em tempos houve um caso semelhante, mas o prevaricador morrera às mãos da população...

-Mas será justo toda a comunidade executar pessoalmente o dissoluto?

-Sim, afinal ele sujou essa comunidade com o seu acto indigno.

-Ou talvez se deva entregar o algoz à família da vítima...

E assim a Lei era cumprida.

Através de uma reflexão global e de um exemplo, os possíveis comportamentos desviantes eram dissuadidos à partida, com um custo mínimo de pessoas e bens.

A fase seguinte da reunião, consistia numa análise à situação das colheitas e da criação de gado, principais actividades da comunidade.

Caso houvesse alguma aldeia em situação mais delicada, as outras cediam um pouco das suas reservas, uma forma lógica e natural de manter o equilíbrio homeóstaticossocial. Desta maneira, o sistema corrigia as suas disfunções naturais, recosendo a si próprio, dado não existir mais ninguém. A consciência deste estado, ao invés de desmotivar todos os participantes, reforçava ainda mais os laços existentes, sublimando a união e destruindo quaisquer tendências autonomistas.

Nesse ano, a aldeia de Aurora tinha sido vítima de uma tromba de água que levou vários agricultores a um estado perto da ruína. Poucas rezes sobreviveram também à hecatombe. Embora todas as restantes aldeias não tivessem ficado indemnes à fúria dos elementos, de bom grado cederam alguma coisa e, caso curioso, chegou-se à conclusão que a mais afectada, dispunha a determinada altura de mais bens do que algumas das doadoras; novamente se fez a redistribuição...

Por fim, a parte mais solene, quase sagrada da Grande Reunião.

Jacob fez as libações, lavando todas as áreas do corpo que fossem ter contacto com O Livro e repetiu um vetusto ritual mas sempre aguardado com contida expectativa.

Abriu O Livro, tão antigo como o próprio tempo, dizia-se, e leu, numa voz solene e calma, mas tão grave que se diria inspirada pelos espíritos dos outros Anciãos.

-”Devemos amar a Mãe Terra e todos os seus elementos, devemos amar o nosso semelhante, pois ele é o filho mais perfeito da Mãe terra.

Nunca nos deveremos valer da nossa força e inteligência para destruir-mos plantas ou animais, pois eles são nossos irmãos e irmão não mata irmão. A Mãe Terra quer que o homem viva com ela, e a deixe viver; matar ou destruir por divertimento é crime a ser punido severamente.

Todos os dias se deve honrar a Mãe Natureza, estando ou não o tempo de feição, sendo aos Anciãos que deve caber a tarefa de fazerem sentir à Mãe Terra o amor de todos os homens, mulheres e crianças.

É no limiar da última noite do ano que o amor à Mãe Terra mais se revela. Nessa altura todos os habitantes de todas as aldeias se deverão dirigir ao sopé da Montanha Sagrada, acompanhando os seus Anciãos. Estes deverão subir ao topo onde olharão o céu durante cinco horas. Se ao fim destas nada acontecer, deverão descer e retomar as suas vidas sem demais delongas. Se, no entanto, quatro estrelas se cruzarem, é sinal que chegou a altura do Regresso.

Então, todos os elementos de todas as aldeias deverão reunir os seus bens e, passados quatro dias da revelação, dirigir-se ao Planície da Lua e esperar, mas sem contacto umas com as outras. Sem excepção qualquer elemento é obrigado a seguir estas premissas, qualquer desobediência será punida com a fúria dos céus.”

(Continua)

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Miguel Patrício Gomes
Enviado por Miguel Patrício Gomes em 24/05/2006
Reeditado em 27/06/2008
Código do texto: T161831
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