VERÃO DE 42 (Terceira Parte e conclusão)

VERÃO DE 42 (III Parte e conclusão)

III

O rosto está sempre ali

disponível de satisfação

fraco consolo

de uma pilha pelo coração

Morfeu cibernético

ou grande irmão

efeitos ambos perversos

a razão em decomposição

Vénus

de um anti-lismo

despido de tudo

teu corpo só, cruz, caminho

Mais do que a certeza tida na junção dos dados, senti que a pista era verdadeira, e que por detrás do misterioso desaparecimento do venerável cientista estava a razão escondida do enigmático vírus.

Iria à procura de um fantasma que para mim era bem real, pois tudo neste homem parecia indicar que a sua morte naquelas circunstâncias era tudo menos lógica, isto em alguém que se poderia considerar uma das sumidades mais racionais de todos os tempos...

Deram-me uma tripulação de militares, habituados a “darem boleias” ao mais diverso tipo de agentes, pelo que contava com a sua descrição.

Ao fim de sete dias de uma viagem monótona avistamos o meu alvo.

Apesar de constituir apenas uma parte insignificante de todo o veículo, o que dela sobrava era suficientemente grande para ser visto a mais de cinco quilómetros. Ao fim ao cabo era outra nave, menor, mas ainda bem apetrechada por uma célula de fuga, mini centro de comunicações dormitórios e um laboratório para os padrões da época tão bem apetrechada como os melhores congéneres terrestres.

Acoplamos os dois veículos, liguei a câmara de vácuo, vesti o fato e sai.

De imediato verifiquei não ter qualquer tipo de contacto com o exterior, novamente estaria entregue a mim próprio.

Accionando o código de entrada, penetrei cautelosamente na parcela da nave, estranhamente bem conservada para um veiculo abandonado há mais de seis décadas.

O seu interior estava completamente às escuras com a excepção da parte de comando, onde uma ténue luz de presença violeta deixava ver uma câmara adaptada ao repouso de corpos. Avancei cautelosamente e reparei que esta estava ocupada por um corpo meio ressequido de um homem na casa dos cinquenta anos. Apesar de quase irreconhecível, foi-me imediatamente familiar - Tratava-se do mais perseguido dos homens da terra e cujo rosto e biografia decorara até à exaustão.

Morto. A nossa derradeira esperança esvaiu-se na solidão do espaço, no seu terrível segredo.

O maior de todos os absurdos era eu ter acreditado que um ser da sua idade, em pleno espaço sobreviveria tanto ou mais ainda que os mais velhos dos nossos homens, cuja a idade rondaria agora os cento e dez anos. Talvez tenha querido acreditar demais na sua inteligência, talvez quisesse que ele tivesse sobrevivido; quisesse...não, precisasse da sua vida, das suas respostas...

E era tudo tão...ilógico, tão...Qual a razão da sua recusa em voltar? Qual o segredo a proteger, a história por contar?

Desconfiado, rodeei o corpo, observando-o demoradamente. Que estava morto, isso era algo de insofismável pelo estado de conservação do féretro...Mas...Debrucei-me sobre a cabeça e notei a presença de cinco pequenos fios que saíam do cimo desta.

-Dr Revses?

Toda a nave se iluminou repentinamente e uma voz metálica mas indiscutivelmente saudou-me com um afecto fora do vulgar.

-Finalmente! Há já algum tempo que o esperava.

-Começa a surpreender-me talvez um pouco demasiado para alguém que acabei de conhecer...-Brinquei um pouco ainda nervoso e sem saber como levar a conversa para o assunto pretendido.

-Tenha calma, e antes demais ponha-se à vontade, livre-se desse maldito fato pois a atmosfera é perfeitamente respirável.

Perante a minha natural hesitação, ele tentou acalmar-me.

-Descontraia-se, o tão terrível vírus está bem guardado no laboratório...

Estando longe de querer revelar a minha imunidade e o facto dos meus receios residirem no Dr em si, acedi. As palavras mágicas tinham surtido um efeito quase hipnótico em mim. Sentei-me e preparei-me para o interpelar, mas ele adiantou-se e num tom de voz no qual detectei um indisfarçável cinismo começou a sua história.

- Chegaram então já ao ponto de desespero total que os levou a darem por mim? Quantos já matou o vírus e há quanto tempo? Um milhão dois, três, em cinco meses, num?

-Sabe-o tão bem como a maioria de nós...

-Folgo por ver a perspicácia dos novos lideres, inteligentes ao ponto de não me enviarem algum moço de colarinho mas um verdadeiro profissional, um rapazinho multifacetado, inteligente ao ponto de perceber que a minha rede de comunicações me inteira de tudo...um rapaz suficientemente bem treinado ao ponto de só fazer as perguntas correctamente insidiosas e prescutadoras ao máximo a um velho tonto que julgará estar a desabafar com alguém que o quer realmente ouvir, ouvir a sua triste história...quando na realidade o que querem é apenas uma maldita cura!

-Dr. desculpe interrompe-lo e...

-Sim senhor as boas maneiras são atraentes...

-Ouça-me por um segundo sem me interromper por favor...É obvio o motivo da minha presença, não o desminto, mas também é uma inverdade a minha indiferença perante si...Li todos os seus dados biográficos, procurei perceber a sua obra...mesmo sessenta anos depois o senhor é uma lenda, um marco, uma referência incontornável, mas enquanto falamos, morrem esses tais milhões e o pior é sentir parte da responsabilidade, a tragédia na terra não tem paralelo, parece o fim...

-Compreendo o seu desespero...Sabe, um dia um grande ditador dessa encruzilhada tratada historicamente como século vinte mas o mais importante na nossa história, esse ditador, um homem cru, frio, déspota, mas a quem coube industrializar um país imenso chamado União Soviética, um colosso que se estendia desde a Ucrânia ao extremo oriente, sabia a tarefa tida entre mãos e não se coibiu de matar à fome e à exaustão pelo trabalho (além de mais algumas centenas de milhares em campos de prisioneiros políticos). Ele sabia a dimensão da tragédia, tinha consciência disso, mas foi capaz de proferir uma frase terrivelmente sublime para alguém da laia dele...Dizia que um morto é uma tragédia mas um milhão seria uma estatística...

-Desculpe, não percebo...

-Porque não quer ouvir a minha história, eu sou uma tragédia aquilo por mim representado, aqueles que são parecidos comigo, alvo daquilo a que fui sujeito são vítimas, o resto são números a serem apagados a quando da próxima explosão demográfica!!!

Nessa altura apercebi-me de que a praga estava indirectamente ligada a um qualquer recalcamento de um homem de tal forma torturado que nem a sua passagem fantástica ao estado de máquina fora capaz de resolver. Além do mais estava já suficientemente interessado neste estranho ser ao ponto de lhe pedir para contar as razões da sua agonia.

-Finalmente conseguiu perceber um pouco da minha dor...Agora depois deste tempo queria-me arrepender, mas as máquinas não se arrependem...-Embora aquelas palavras tivessem um toque de penitência, pareceu-me que Revses estava a mentir. Praticamente nada o indicava, apenas uma leve inflexão na voz docemente metálica.

-O senhor é muito mais do que uma máquina, é um humano dentro de um computador, um prodígio sem paralelo. Os meus conhecimentos científicos são reduzidos, ínfimos, é-me impossível saber como conseguiu a transferência, mas o facto de a ter conseguido e de ter mantido algo de tão humano como a dor é por demais explícito : o senhor é tão humano como eu, mas conseguiu a ponte para a eternidade, a imortalidade! Então se conseguir reconverter o processo, isto é transferir-se para dentro de um corpo...Apercebe-se bem do conseguido? Conseguiu o sonho mais perseguido por todas as áreas do saber de todos os tempos!!!

-E para quê? Para o viver só? E o meu drama é ai que reside, reside num desejo insaciável de vingança, de ajuste de contas, numa moralização, não num sentido religioso, mas ético!!!

-Então, se isso o alivia conte-me e talvez juntos o consigamos resol...

-Resolver? Jamais, mas talvez tenha razão, talvez revelando-o a alguém, nem que seja um mero funcionário de qualquer secreta me alivie...A vingança essa...

Lugar comum, uma infância feliz com pais suficientemente lúcidos ao ponto de se aperceberem da genialidade do rebento e de o porem a estudar numa escola especial. Nesse tempo, o governo investia mais do que nunca nos seus sobredotados, tratando de os dotar de tudo quanto o dinheiro podia pagar de modo a suprir o mínimo capricho do prodígio. Como recompensa teriam, numa dúzia de anos um técnico incomparavelmente dotado na sua área cuja lealdade teria sido trabalhada nos anos precedentes. Os objectivos filantrópicos ficavam apenas para os idiotas que acreditavam na propaganda oficial.

E a máquina era de facto fantástica, ao ponto de não mimarem demasiado o génio, de o enfrentarem, de modo a evitar transformá-lo num menino mimado, disposto a só trabalhar quando lhe bem aprouvesse...

À minha maneira vivi tranquilo entrando na pré-adolescência, altura em que as primeiras experiências sexuais eram em capacetes 3D (uma prática que penso ainda actual) e com parceiras reais mas imaginárias às vezes a milhares de quilómetros de distância, mas no entanto era tudo tão real... Revelei-me um ás, dominava esse jogo e cheguei ao ponto de inventar regras novos que um certo pudor me impede de revelar, preferindo deixar isso à sua imaginação...Mas o meu libido revelou ser ainda mais surpreendente tornando-me o favorito entre as minhas amigas e amigas de amigas, enfim...A par desta “actividade” o meu brilhantismo académico não cessava de espantar colegas e mestres.

Adorava a vida e todos os seus prazeres, procurando frui-los ao máximo, a um tal ponto que desde muito cedo comecei a cortar nas horas de sono para aproveitar essa vida que soubera preencher da melhor das maneiras. Claro está, a minha forma de estar não era própria de gerar consensos, o brilhantismo estava longe de me tornar invulnerável, mas tive a sorte de ser apadrinhado pelas pessoas certas.

A par destas vivências, completava a minha formação com leituras de todos os géneros, conhecendo desde cedo os clássicos de todos os tempos, mergulhando em nas religiões acreditando em todas não seguindo nenhuma, mas bebendo de todas e extraindo os ensinamentos que julgava necessários. O mesmo aconteceu em relação à política - Aprendi a extrair um pouco de cada partido ou ideologia, escalpelizei-os e. sobretudo aprendi a desconfiar dos volúveis políticos. Dolorosamente constatei que mesmo conceitos sagrados no nosso meio eram rebatíveis. O exemplo da Democracia é paradigmático – Palavra e sistema chave sobre o qual se construíra a “moderna” ordem desde à quatrocentos anos estava muito longe de ser universal...nem todos os homens deveriam viver nesse sistema pois nem todos os homens sabem respeitar os limites por ela impostos; a apoiar este raciocínio estavam às dramáticas situações vividas quando as potências ocidentais impunham o seu sistema à força...

Claro, tive paixões, fixações; determinadas escolas chegaram a orientar, momentaneamente, a minha conduta, mas o meu padrão sempre foi o livre arbítrio, recusando sempre qualquer tipo de grilhetas, querendo e procurando a essência das coisas. Para tal, de forma a conservar a independência, uma clarividência de espírito, aprendi, como bom estudioso a racionalizar tudo, a reduzir todos os fenómenos a uma ínfima ração da sua dimensão e assim os estudar melhor.

Vivia num turbilhão constante de ideias, esforçando-me por nunca entrar em contradição comigo mesmo, ignorando os perigosos caminhos trilhados demasiado depressa por alguém tão novo.

Fiz os impossíveis para manter o equilíbrio, mas as forças desencadeadas revelaram-se demasiado fortes.

Podia ter encontrado um ponto de equilíbrio nas relações afectivas, ou mais intimas, mas até ai recusa-me prender. Tinha um ciclo de amigos enorme, mas nenhum especial, nenhum que servisse de depositário das minhas intimidades. Cada um sabia algo de mim, mas não havia ninguém que pudesse afirmar conhecer-me bem, pois na vertigem recusava tanto voluntária como involuntariamente a criação de laços. O mesmo se passava em relação às namoradas. Tive muitas, mas pareceram-me sempre demasiado poucas. Penso que gostei delas todas, de uma maneira especial, mas nunca amei nenhuma, nunca permiti que elas, tal como os amigos, me chegassem a conhecer. Nunca permiti que nenhuma fosse a depositária das minhas angústias, das minhas lágrimas, ou dos sorrisos provenientes dos brilharetes nos estudos, ou dos primeiros prémios de concursos científicos. Nunca soube porquê, mas aprendi a centralizar a minha esfera intima na minha pessoa. Todos os que me rodeavam eram apenas elementos secundários, que orbitavam em torno de mim. Mas esta forma de socialização acabou por criar um enorme vácuo mental e sentimental que quase me levou ao abismo.

Pela idade dos dezassete anos entrara num ciclo tal de irrisão que, de repente nada fazia sentido, nada valia a pena, a vida tinha-se esvaziado.

É capaz de imaginar um jovem daquela idade a chegar a conclusões de uma existência inteira no limiar desta? Foi demasiado, rapidamente transformei-me num farrapo, deixando, numa fase inicial de me aplicar nos estudos, nas relações sociais e, de seguida de deixar de me alimentar. Quando o meu estado clínico começou a ser preocupante internaram-me e passaram a alimentar-me de uma forma intravenosa. Sabia da preocupação entre os meus, apercebia-me da importância tida entre os mestres, mas já nada tinha significado, e apesar da parafernália de medicamentos o meu corpo recusava a reagir.

A paixão pela vida fora substituída pelo abismo, pelo fim. Só este me seduzia e apenas a ele me queria dedicar.

Lembro-me de ser um verão quente do ano 42, muito, tanto que o sentia dentro da enfermaria privada. Lembro-me de ver a luz intensa a penetrar por entre as frinchas das persianas, e a inundar com uma luz diafama o quarto, conferindo-lhe um aspecto ainda mais lúgubre. Lembro-me do misto de alegria e tristeza que sentia, e de me sentir a afundar na cama, a afundar demasiado, e a gostar; era uma forma de partida como outra qualquer...os olhos de quem me rodeava isso me diziam...

Até que entre aqueles olhos, aqueles rostos surgiu alguém por mim desconhecido.

-”Sou a irmã de Tom” – (Aquele que poderia considerar na medida do possível o meu melhor amigo)-Disse num tom de voz rouco e calmo, tão calmo que lhe prestei alguma atenção.

-Estamos mal e ambos sabemos porquê...Vamos trabalhar isso, sim?

Palavras banais, ditas desta maneira (e que me pareceriam noutro contexto), mas que vindas daquela figura estranhamente sedutora tiveram o condão de ser ouvidas por mim.

Desde já lhe digo não ser ela um modelo especial de beleza, embora estivesse longe de ser vulgar, dificilmente constituiria o ideal de alguém...e é preciso relembrar a minha experiência entre o chamado sexo fraco...

Como lhe explicar então?

Desde o início que houve qualquer coisa de inexplicável, uma químico se quiser, ou...talvez fosse amor, que acabara de conhecer. Na minha vivência racional nunca dera espaço ao verdadeiro sentir, à verdadeira interioridade e, naquele momento de fragilidade física e psicológica, as minhas defesas estavam baixadas e foi por ai que ela entrou. E este primeiro encontro teve tanto impacto que senti como irrecusável o seu convite de recuperação.

O olhar...meu deus, passaram tantos anos e ainda me lembro tão bem...como foi possível criar tal maravilha? Eram os olhos simples, uns olhos castanhos, quase banais, mas de onde irradiava um brilho, um calor, una força, uma intensidade intransmissível, por onde falava a alma...

Por todos os infernos! A única coisa que lamento por me ter transformado nesta máquina é não puder voltar a sentir a impressão que aqueles olhos me causavam, a vida que transmitia!

Intimamente sentia-me grato por ter um amigo como Tom, especialmente agora, que, aparentemente pedira à irmã para me visitar, embora normalmente, no que tocasse à família ele fosse pouco falador, dai a presença da irmã desconhecida ser normal.

Em breve a minha recuperação permitiu-me dar os primeiros passeios a pé na aréa verde da clínica, apoiado nela, numa altura em que já éramos inseparáveis...Ah! Ainda não lhe revelei o nome, chamava-se Aurora, um nome maravilhosamente belo, rejuvenescedor...Sim, sim, desculpe as pausas, as recordações têm o condão mágico de me reviver...Se ainda tivesse rosto estaria a exibir o mais sentido e nobre dos sorrisos...uma máquina a sentir, quem havia de imaginar...uma máquina que já foi um homem, feliz e realizado, um homem que depois de totalmente recuperado por essa criatura incomparável, com ela começou a descobrir a semelhança de duas almas espantosamente semelhantes, tendo a de Aurora o condão de continuar a acreditar e de me ter feito acreditar com ela.

E ao seguir ao amor veio a paixão...Já é algo tão descrito tão falado, e no entanto faltam-me palavras para descrever esse inolvidável verão de 42.

Senti-me rendido e deixei-me guiar, deixei-me por fim partilhar.

Ela emanava ternura e carinho e era perfeita em tudo o resto; respeitava os meus silêncios, a minha verborreia e discorrer interminável quando o assunto me interessava...Contei-lhe, como nunca o voltei a fazer com ninguém, aquilo que sentia, os meus tormentos, fantasmas, pesadelos, sonhos, ambições, vontades menores, vontades maiores, enfim, fui verdadeiramente humano na verdadeira acepção da expressão!

Lembro-me de ter nela a minha primeira audiência para as numerosas teorias e conceitos teóricos que, anos mais tarde me tornariam famoso. Todavia o seu papel estava longe de ser passivo -Graças a uma espantosa cultura rebatia-me sempre, mostrando-me as sábias virtudes do debate, do diálogo, ensinando-me a ouvir e disciplinando a minha oratória.

Foi apenas um verão, mas, temporalmente pareceu durar anos...Chegou até para uma breve viagem a uma instância turística na lua e a um surreal passeio no exterior, onde o nosso máximo contacto era dado através das grossas luvas do fato, mas transcendido pelo contacto das mentes e abençoado pela terra, no antigo papel de patrona dos apaixonados desempenhado pela lua.

Foi tão pouco tempo...mas nele julguei tudo ser eterno, e se esta máquina existe, este...este bicho cibernético é porque nessa altura criei as estruturas mentais sem as quais seria impossível concebê-lo. Ela, além de me ter ensinado o que é o amor, teve o condão de me fazer acreditar na infinitude do pensamento, na possibilidade de tudo, mas mesmo tudo realizar! E a compatibilidade era tamanha que planos para o futuro nasceram naturalmente, eu continuaria a estudar e a acabar os diferentes cursos agora na parte final, ela ficaria à espera, continuando, também os seus estudos, para depois nos unirmos, deixando por fim a tutela dos mestres, cuja vigilância nunca cessou. Apesar de me ter isolado com ela em várias ocasiões, de fazermos as coisas típicas dos namorados, senti que eles estavam sempre por perto, como se receassem algo.

Curiosamente o seu irmão evitava sempre falar nela quando estava comigo, evitava-a, como se ela não existisse...

Sentia-me no auge, procurava o auge na sua companhia, embora fosse obvio para toda a gente que já me tinha recuperado totalmente, sendo capaz de uma existência autónoma e independente. Era obvio para todos...

Num dia que jamais esquecerei, Tom foi a minha casa. Devia ter desconfiado pois as suas palavras foram no sentido de me acalmar, de me preparar. Ao fim de uma longa e insuportável hora de constantes apelos à calma e de frases feitas do género “ Ainda ês muito novo nada está perdido”, enfim xaropadas enjoativas ameacei-o de expulsão se não fosse directo ao assunto, pois esperava Aurora e a vontade de o ouvir era nula .

As luzes apagaram-se e a nave ficou silenciosa.

-Doutor?

-...

-Doutor!?

-Desculpe, ao fim de um século ainda...

-Ela...

-Morreu num acidente. Ficou totalmente desfeita quando o veículo se despedaçou contra um monte. Dos catorze passageiros nenhum sobreviveu.

Ao invez de me apagar, reuni todas as minhas forças e decidi atingir todas as metas a que me tinha proposto com ela. Disfarcei a dor na busca ainda mais sedenta pelo saber, mas dessa vez eu poderia criar esse saber, pois entretanto especializara-me num sem número de áreas. Procurei trabalhar para a humanidade, em seu benefício, em homenagem a Aurora. Deve decerto ter reparado que todos os meus livros e ensaios tem uma pequena dedicatória.

-A A. Eternamente.

-Sim, a Aurora eternamente, banal, mas sentido.

Explicar a mudança operada em mim através dela...Até a conhecer, a minha visão de qualquer tipo de relação era demasiado objectiva : eu queria algo, a outra pessoa também e não se perdia mais tempo! É, sem dúvida um olhar demasiado imediatista, mas os jovens e as almas simples são e serão sempre imediatistas...Os jovens porque insistem em viver a sua fantasmática temporaneidade e as almas simples por serem incapazes de mais...

Em termos filosóficos a subjectividade constitui uma zona onde se encerram a maior parte dos fenómenos ditos menos inteligíveis, memos perceptíveis ao homem comum; uma prateleira “chavónica” destinada a descansar as consciências mais intranquilas em relação às incomensuráveis ideias...Mas, quando essa subjectividade escapa aos nossos limites adquirindo uma forma lírica, torna-se imperativo saber lidar com ela e , ou tentar percebê-la ou amá-la, sem a conhecer totalmente, mas sabendo sempre sre o conhecimento a única forma de ter alguma paz...

Durante esse tempo de conflito, de indecisão, citava para mim próprio mil e uma frases de poetas e escritores sobre o fenómeno, tentando apagar esse calor, antítese de toda a minha lógica racionalista, reducionista. Perturbava-me estar a viver um fenómeno totalmente fora do meu controle...

E no entanto Aurora era apenas uma espectadora anónima, meio objecto, meio sujeito, sentindo mais do que percebendo...mas sempre tranquila...Foi a sua tranquilidade, a sua serenidade o que me permitiu fazer a síntese entre esse mundo superior e eu...

Optei então por apenas viver o fenómeno, intensamente, sem me importar se era ou não senhor desses domínios, sem a ânsia do domínio...Passou a ser uma não luta, doce. Para citar um político de outros tempos, passou a ser uma “Revolução tranquila”, com as mudanças a operarem-se quase “subliminarmente”. O meu amor em relação a Aurora vem essencialmente daqui...Jamais alguém conseguiu tal prodígio em relação a mim...

Sabe, a ligação entre o homem e a máquina é uma ciência...quase transcendente...Só ao alcance de espíritos elevados, não só para a conceberem, mas, mais importante, a pensarem...Vou-lhe dar um exemplo: O que comanda os movimentos dos membros, aliás de todos o corpo, é o cérebro, mas sempre com preciosos auxiliares...Como um governo, este só consegue executar aquilo a que se propõe através de um exercito de executantes...Os do cérebro são as sinapses, a região de contacto entre um neurónio e um músculo que ele enerva, milhares e milhares, incontáveis, analogicamente são como que pequenos circuitos integrados. Durante mais de três séculos estudou-se essa rede “neuronal” até à exaustão, procurando fazer uma espécie de um mapa. As actuais próteses são o resultado dessa pesquisa - Comandadas directamente pelo cerebelo, constituem algumas das máquinas mais complicadas criadas pelo homem...prodígios da técnica mas pálidas mediocridades perante a natureza. Por muito amável que seja um pai, o toque do seu braço metálico jamais se igualará à carícia da pele, do calor humano...Um membro ausente é e será sempre insubstituível...Nunca viu nem nunca verá um atleta profissional ou um astronautas de exteriores com esses membros artificiais...Nos próximos anos certamente que se irá assistir ( ou mesmo actualmente) a sucessivos melhoramentos dessa aparelhagem, mas o original será sempre o original...

Esta foi uma das linhas mestres a orientar-me na concepção deste computador, aliás de mim...A outra surgiu de uma conversa tida com Aurora, uma conversa acalorada em que o tema era a temporaneidade, a impossibilidade do homem prolongar a sua vida muito para além de um limiar previsível...Surgiu então a ideia desta máquina como forma de nos manter vivos. A cibernética estava então ridiculamente atrasada para um objectivo destes, mas sabe bem a temeridade dos jovens...os impossíveis são meras figuras de retórica...O projecto foi-se progressivamente solidificando, tornando-se numa obsessão piorada pelo tempo e pelo desaparecimento de Aurora. Constituía o meu derradeiro legado em sua memória, mesmo depois de saber que ela nunca existira...

Claro que estou longe de ser o único obreiro, paralelamente fiz amizades noutras areias e fui acompanhando os seus avanços, aperfeiçoando-os sempre que possível.

Embora tivesse tido várias companheiras posteriormente, todas foram apenas companhia de uns meses, senti-me sempre incapaz de viver com alguém, procurando apenas uma mera satisfação física, já que a mental encontrava-a no estudo, nas descobertas, nas invenções. Vista assim, a dor é quase doce e suportável...

Reencontrara o equilíbrio construindo uma carreira notável e brilhante que me levou a ser convidado, pela idade dos trinta anos, a ocupar o lugar de supervisor de jovens dotados, ou seja o papel dos meus antigos mestres.

Agradecido aceitei e entrei a partir dessa altura num mundo sigiloso, obscuro, onde se utilizavam todos e qualquer meios para controlar os prodígios. Apesar de me sentir progressivamente enojado, o juramento feito e a fidelidade para com os meus superiores levou-me ao silêncio. Durante cinco anos esse silêncio e uma crescente competência levaram-me ao topo dessa carreira e aos corredores mais sombrios. Nesses corredores vim a descobrir os laboratórios secretos de genética...Secretos e avançadíssimos. Desde há muito que se faziam homens e mulheres, desde há muito que o homem brincava aos deuses, brincadeira perigosa sempre desmentida. Com uma periodicidade assustadora se criavam novos brinquedos...Lembra-se de uma época em que nasceram uma série de anões? Não é do seu tempo, mas o facto ficou registado e atribuíram-se as responsabilidades às condições climatéricas, a uma deformação num gene, enfim, a toda a gente menos aos seus directos responsáveis...Eu sei porque vi os relatórios dessa experiência...E de uma década em que setenta por cento da população sofreu de um qualquer tipo de cancro? Não foi o sol nem a camada de ozono e muito menos os agentes ambientais...os exemplos sucedem-se interminavelmente...

Você não imagina nem queira imaginar aquilo que se faz na sombra...Apenas uma percentagem ínfima das realizações são reveladas, o suficiente para satisfazer as massas e conferir uma imagem de progresso à sociedade, o suficiente para satisfazer os velhos senhores, os senhores de sempre...

Suportei o choque estoicamente, até à altura em que, ao passear por uma área onde estavam encerrados em vida suspensa alguns destes humanos gerados por nós, julguei ter tido uma visão. Fiquei estático. Por detrás de uma vitrina de vidro, de olhos fechados e rodeada de tubos estava...Aurora. Pensei ser uma sósia, um clone, ou o que quer que fosse menos ela...Chamei o responsável pelo sector e inquiri-o. A minha posição era suficientemente importante para me facultarem toda a informação que quisesse.

-O que é isto?

-Como?

-Isto - Disse apontando em direcção ao rosto dela.

-Dr., sabe bem é uma das nossas criações. Vê aquele código ao pé da orelha?

-Sim, é o que destina o fim.

-Posso saber o desta matriz?

-Claro, deixe ver...

Foi até ao gabinete e voltou com um pequeno dossier.

-Olhe esta matriz até já está inutilizada a uma série de anos...

-Porquê?

-Foi usada com um dos jovens do seu departamento. Ao que parece o desgraçado estava a passar mal...Uma depressãozita de adolescência...Inserimos algumas características mentais dele nela, através da análise do carácter do miúdo observamos a sua mulher ideal e, já está, eis a companhia ideal para um reestabelecimento perfeito! Depois, quando as coisas se resolveram...é o habitual ela desaparece tragicamente, o outro está bem seguro, a vida continua!

Sofri um baque só comparável à morte dela, mas recusei-me a acreditar, precisava de mais alguma coisa, de uma prova.

-O nome do jovem, dê-mo!

-Lamento mas nem eu nem ninguém sabemos, isso é confidencial.

Como um louco fechei-me no meu gabinete com o código dela.

Ao fim de horas e uma infinidade de truques, códigos a troco de favores e alguma persuasão, penetrei no ficheiro com o número de Aurora. Os meus olhos recaíram na terrível frase - Objectivo : Albert Marcus Revses, eu!

-Meu deus, exclamei horrorizado

-Meu deus?! - Berrou a voz metálica

-Deus? Nos brincámos aos deuses, manipulámos tudo, manipulamos tudo e queremos acreditar em alguma coisa! Se deus existe o homem é a sua mais grotesca criação!!!

Imagina então a minha dor? E revolta?

O tal silêncio a que era obrigado só me deu uma alternativa – Partir. Partir à procura de vingança.

Movi todas as minhas influências e consegui que equipassem uma nave com a última tecnologia de ponta a todos os níveis. O laboratório dessa nave só era suplantado pelos militares, secretos, insidiosamente secretos...

Só a solidão do espaço me aliviava. Embora fosse obrigado a ter uma tripulação e contas a prestar (era importante mas não ao ponto de ser independente) isolei-me cada vez mais, procurei as rotas mais distantes e trabalhei sem cessar numa miríade de projectos impossíveis de numerar, mas com um objectivo obsessivamente em mente : dar a pagar ao poder o sabor amargo da derrota, da mais crua vingança. Não quero que me compreenda, porque me estou a marimbar para si e para todos, mas eu estava cego, estava possesso e procurava, procurei sem cessar qualquer coisa.

Entretanto, e em segredo, consegui desenvolver a máquina na qual me encontro. Perguntou-me ao bocado se me apercebi da maravilha construída...É claro que sim! Mas queria mais, sempre mais, mais... A procura durou vinte anos, até que por fim, o nosso computador assinalou-nos uma nave de modelo desconhecido...

-Não me diga que...

-Sim, mas isso nem eles, os monstros que me usaram sabem ou souberam -estabelecemos o primeiro contacto com um objecto extra-terrestre fabricado por uma inteligência não humana. Enviámos uma equipa ao seu interior e eles voltaram desiludidos, pois tratava-se apenas de um casco vazio...Mesmo exteriormente ela era francamente... desinteressante, quase banal, quase terrestre.

-Mas como sabem, como têm a certeza de ser não-humana?

-Devido ao vírus.

Desconfiado disso, fiz análises ao sangue dos dois homens. Um deles morreu dois dias depois o companheiro permaneceu saudável.Os meus conhecimentos nessa área eram suficientemente avançados para adivinhar o que se iria passar. No falecido dectetei e isolei o vírus, mas no outro não...O maldito revelou-se diabólico e invisível. Tinha finalmente o instrumento de vingança entre mãos! Um instrumento que me permitisse punir a humanidade que repugnava, tolerando apenas a tripulação como possíveis instrumentos de vingança. Depois bastou criar um incidente, simular um desastre, separar a nave, dar a impressão que este sector se perdera irremediavelmente e esperar, pois sabia que viria alguém um dia...quando me tornasse subitamente importante e os novos instrumentos desmentissem a minha morte...

-Mas diga-me ele é deliberadamente hostil?

-Meu caro, hostis somos nós...O ser humano, na sua eterna retórica egocêntrica, que se estende a todos os domínios do saber e artes imaginou sempre o contacto extra-terrestre ou proveniente de uma outra dimensão ou com uma forma física inteligível...Está correcto, está certo, mas toda a gente, exceptuando uma meia-duzia de teóricos mal ouvidos jamais imaginaram que essa forma diferente poderia ter as melhores intenções em relação a nós, mas essa constituição...por ser tão diferente, por vir de locais tão diferentes, por ter sofrido uma evolução tão distinta, poderia ser, inocentemente...mortal. Sabe que os primeiros europeus a visitar os povos americanos levaram com eles uma série de doenças inócuas na sua terra mas mortal a povos que as desconheciam e que não as podiam combater por não terem conhecimentos sequer do que os afectava...

-Esclareça-me uma dúvida que tenho: nos relatórios sobre a “explosão” desta nave não aparece nenhuma referência ao encontro com a alienígena, nenhum dos elementos tocou sequer no assunto.

-Porque, apercebendo-me de tal consegui convencer a tripulação que ela se tratava de um projecto secreto do governo que acidentalmente se cruzara connosco. ao abrigo da segurança do estado tal encontro deveria ser mantido secreto, e por isso não existem nenhuns registos sobre ela.

-Compreendo. Mas você desenvolveu uma cura...

-Sim, vista o fato.

Apressei-me ansioso esquecendo a minha imunidade perante a perspectiva da tão desejada cura, o fim do terrível pesadelo das cidades vazias, de cada vez mais cidades vazias

-Veja! Olhe para o laboratório!

As portas abriram-se e deparei-me com uma sala totalmente destruída, praticamente reduzida a cinzas.

Fiquei desesperado e desatei a berrar.

-A cura, você destruiu-a, condena a raça à extinção!!! Nenhuma vingança justifica isto, isto...! Não é justiça é extermínio! A sua ética e moral! Crítica os outros por brincarem aos deuses sendo pior! Você brinca aos holocaustos! Você...

-Sou o último dos homens meu amigo, perfeito, capaz de trocar de corpo, eterno, senhor da sua própria clonagem e de se multiplicar indefinidamente...O último homem...saboreie o tom épico da frase...Fiz por merecer e mereço a eternidade, comigo a raça irá sobreviver...e com Aurora...As suas células e as minhas estão conservadas prontas para essa clonagem! Mal encontre uma civilização inteligente e um clima propicio, a raça ganhará de novo vida...A santíssima trindade, dois corpos, este computador...e um renascer, muito depois de todos terem morrido! Suprema ironia, não?

Agora quero que saia de mim, pois vou começara minha viagem rm direcção ao espaço não mapeado onde existirá essa civilização.

Perante a monstruosidade e a inevitabilidade da louca razão de Revses calei-me.

Olhei a máquina fantástica em que ele havia transformado o seu drama ainda durante alguns minutos, saindo por fim, derrotado.

Tal como eu o cientista procurara a essência das coisas, mas ao nível que a sua invulgar inteligência lhe permitira, acabando quase por morrer, porque se conseguira secar. Depois, o mais irónico desta enorme tragédia é que, ao tentar recuperá-lo, os seus orientadores criaram um drama maior, subestimando um certo destino os seus enormes recursos, e a terrível sede de vingança que surgiu da descoberta da ilusão daquele verão de sonho. Compreendia-o, e até o conseguia estimar, só lamentando que a sua vingança pessoal levasse a vida na terra ao Ocaso.

Ele e eu estávamos pois entregues à maior das solidões. Ele porque estava condenado a errar pelo espaço durante centenas ou milhares de anos (ou provavelmente para sempre) até encontrar a tal raça que lhe permitisse a clonagem, eu porque poderia vir a ser o último dos homens devido à minha imunidade.

Para ambos o futuro vislumbrava-se negro.

Mas, no entanto, quem poderia prever o futuro?

Esse futuro nunca chega

apenas lânguido sentido

as esperanças são nossas

e os sonhos feitos em vídeo

FIM

Fevereiro de 1997

Corrigido em Novembro de 1999

Conto protegido pelos Direitos do Autor

Miguel Patrício Gomes
Enviado por Miguel Patrício Gomes em 22/05/2006
Reeditado em 27/06/2008
Código do texto: T160557
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