Coisas de Bailarina
O SOM DA MÚSICA CLÁSSICA era baixo como um sussurro. Isabela tinha os olhos fechados, enquanto seus braços e suas pernas iam e vinham em uma dança ritmada e tão emocionante quanto as notas que saíam do aparelho sonoro. Mesmo de olhos fechados, ela tinha completa noção do espaço onde dançava: sabia onde estavam as paredes, onde ficavam as barras nas quais deveria se segurar para o apoio dos movimentos mais difíceis e sabia o limite entre o palco e a plateia. Tudo na escuridão de seus olhos, avaliando e esboçando sua dança em magníficos e complexos passos.
Quando a música enfim terminou, ela abriu os olhos. Ouviu aplausos estrondosos vindos de um público de quase duzentas pessoas, que outrora permanecia em total silêncio. Alguns chegaram às lágrimas, agregando o som da música à suas lembranças particulares e àquela menina de um metro e sessenta que ia e vinha, leve como uma pluma, com cabelos longos presos em um coque excepcionalmente perfeito.
Isabela queria chorar como aqueles homens e aquelas mulheres. Queria sentir o poder que aquela música exercia sobre todos. Afinal, qual era o segredo? Por que elas choravam com uma sequência sonora de violinos e violoncelos? Ela queria entender de qualquer forma, mas não podia.
Afinal, um robô não podia se dar ao luxo de perder seu tempo com sentimentos humanos.
O TRABALHO DE ISABELA ERA simples: entreter aos homens e mulheres durante o espetáculo. Até o presente momento, nunca havia apresentado nenhum defeito que a impossibilitasse de executar suas danças. Apenas uma vez, quando um erro em seus circuitos internos fez com que a menina dançasse O Lago dos Cisnes quando deveria dançar O Quebra-Nozes. Nada que interferisse na beleza da dança, uma vez que apenas a organização do espetáculo percebeu tal imperfeição. Os espectadores – em sua maioria pessoas com conhecimentos básicos ou ínfimos sobre balé – viam a tudo boquiabertos, chorando com os movimentos errados, talvez por uma obrigação de se sentirem emocionados em um espetáculo caro como aquele.
O segredo de tanto sucesso era, acima de tudo, o talento nato de Jorge e Edson, pais de Isabela. Os dois – antes simples hackers que viviam de pequenos golpes aqui e acolá – começaram no showbiz como simples programadores. Com o tempo, passaram a criar novas propostas para o espetáculo. Deram ideias maravilhosas, e com o passar do tempo, conseguiram a confiança de todos.
Começaram a criar Isabela há cinco anos atrás. Com cada vez mais apoios vindos de patrocinadores que passavam a acreditar no trabalho dos dois, a compra das matérias-primas foi o menor de seus problemas. Sem a ajuda de ninguém além deles mesmos e de uma centena de livros, os dois, em parceria, apertaram parafusos e porcas, criaram pele e cabelo sintéticos, compraram olhos de vidro e moldaram dentes e unhas. Deram-lhe uma feição angelical, a mais humana possível, com todos os remendos escondidos em locais estratégicos – sob os cabelos, nas costas, abaixo dos pés e na parte onde deveriam ficar seus órgãos sexuais. Isabela era uma obra-prima, recebida com entusiasmo pelos organizadores do balé. Tinha inteligência artificial, era ativada por comando de voz e tinha baterias que carregavam através da conversão de luz em eletricidade. Um projeto ambicioso e caríssimo, mas altamente lucrativo. No primeiro ano, havia praticamente pagado sua construção com as apresentações, cada vez mais cheias e comentadas. “Ela é sensacional!”, o público dizia. “Faz movimentos incríveis. Realmente não sei como consegue ter tanta flexibilidade!”
Essa era a grande e lucrativa jogada: para o mundo, Isabela não passava uma menina extremamente talentosa.
BEETHOVEN, NONA SINFONIA. ELA OUVIA, de olhos fechados, os violinos explodirem ao fundo, enquanto lembrava-se do maestro executando os movimentos com sua batuta, abrindo e fechando a mão livre, subindo e descendo os ombros, enquanto seus cabelos perfeitamente arrumados iam para todas as direções e sua camisa saía do lugar. E a orquestra fazia seus movimentos com perfeição, descendo e subindo tons, fazendo a música atingir seu ápice e logo depois silenciar, para mais uma vez estourar numa profusão de sons.
Ela lembrava-se de cada imagem como uma foto. Mas não imaginava; não tinha esse poder. Só podia lembrar do que havia visto, não imaginar: sabia que os homens e mulheres daquela orquestra – sobretudo o maestro, com todos os seus gestos e devaneios – sentiam a música, da mesma forma que sentiam todas as outras coisas da vida: sentiam amor e ódio, sofrimento, dor e prazer. Sentiam as coisas boas e ruins.
Mas Isabela não era como as outras pessoas. Ela nem sequer era uma pessoa de verdade. O robô sabia o que era uma pessoa, o que faziam e o que sentiam. Sabia o que era dor e o que era amor, mas nunca havia sentido nada daquilo. O que sabia era o que seus pais haviam lhe ensinado e o que suas atualizações lhe diziam.
Olhou para sua própria mão. Via as unhas sintéticas que nunca cresciam e a pele, macia ao toque. As linhas de suas mãos eram desenhadas com perfeição, assim como suas impressões digitais, iguais a de qualquer ser humano. Alisou uma das mãos com a outra, tentando sentir a sensação de ser tocada. Os setores responsáveis pela sensibilidade enviaram as informações para sua base de dados, que logo converteram os códigos binários em respostas. Ela percebeu o toque, soube que a mão passava pela outra. Mas era indiferente. O que deveria sentir? E se, ao invés de sua própria mão, sentisse a de outra pessoa? A de um pai ou de um amante? Iria se sentir segura, acuada, amedrontada? Sua inteligência artificial dava-lhe uma infinidade de possibilidades e nomes; todo o conhecimento necessário sobre os sentimentos. Sabia que o coração bateria mais rápido se estivesse com medo ou apaixonada. Mas quão intensamente ele bateria? Como ele bateria? Afinal, paixão e medo não são a mesma coisa. Então porque o coração batia acelerado da mesma forma?
- O que está fazendo?
A voz veio de trás. Isabela virou o pescoço, dando de cara com Jorge. Ele estava de pé, os braços cruzados e a expressão duvidosa. Estava ali há tempo suficiente para perceber que Isabela não se comportava como deveria.
- O que é o amor? – ela perguntou, sem se surpreender ou se preocupar com a raiva expressa nas rugas do pai. – Por que o coração das pessoas bate rápido quando elas estão apaixonadas?
- Deus... – ele sussurrou, olhando para cima e passando as mãos no cabelo. – Edson atualizou seu software? – ele perguntou.
- Não. – ela silenciou por um momento. Piscou os olhos, ainda alisando as mãos. – O que é o medo? Por que o coração das pessoas bate rápido quando elas estão amedrontadas?
- Eu não tenho tempo para isso... – ele sussurrou para si mesmo. – Venha até aqui.
Ela obedeceu. Como uma máquina.
Jorge agachou-se e desabotoou as costas da camisa do robô. Isabela percebeu quando ele removeu sua pele sintética e tirou uma chave de fenda do bolso. Desparafusou a placa de metal que ficava logo acima das nádegas e tirou-a; depois, apertou um botão e retirou o software em forma de CD que a ginóide tinha em seus circuitos internos.
- Ah. – ela suspirou, antes de ficar imóvel.
Isabela parou de imitar os movimentos respiratórios dos humanos. Parou completamente, estática, imóvel como um tronco de árvore, a boca entreaberta.
Jorge a ergueu e colocou-a em um armário, longe das vistas daqueles que não sabiam nada a respeito dela.
Foi até o computador, executou o CD e começou a atualizar o software de sua criação. Assim que Edson chegasse, Jorge teria uma conversa séria com ele. O acordo preestabelecido entre os dois era o de que não poderiam esquecer-se do mais primordial para o bom funcionamento de Isabela: sua atualização mensal. Edson havia ficado responsável pela atualização desse mês, e sua atitude relapsa poderia levar a ginóide a cometer erros. E ela não poderia cometer erros. Não o tipo de erros que pudessem levar a crer que ela não era uma menina de verdade.
Jorge olhou para o relógio. Oito e quarenta. O espetáculo começava as nove, e a atualização estava prevista para demorar no mínimo cinquenta minutos. Ele tentou apressar as coisas, cortando arquivos que achasse desnecessários e se conectando a internet, na tentativa de baixar algum outro tipo de programa que fizesse a atualização mais rapidamente. Estava tão apressado que não percebeu quando um vírus entrou discretamente na base de dados de Isabela.
NOVAMENTE A MÚSICA, NOVAMENTE OS olhares chorosos, novamente aquilo que fora programada a fazer. Isabela ergueu-se na ponta dos pés, colocando as mãos sobre a cabeça na forma de um arco. Depois, erguendo uma das pernas e criando um ângulo de noventa graus, ficou equilibrada apenas por sua perna esquerda. O povo estava deslumbrado com o desempenho da menina.
- Isso... é impressionante. – sussurrou um dos espectadores para a companheira que tinha ao lado, ambos boquiabertos. – Não entendo como ela consegue fazer...
O resto da frase não saiu da boca do homem. Engasgou-se com as letras, observando o que acontecia no palco. Aquilo não era nada bom.
Isabela havia caído. Assim, sem mais nem menos, sem motivo. Caiu com força, e a queda provocou um barulho assombrosamente alto, como se uma placa de metal tivesse sido arremessada do décimo andar sobre um carro. Fragmentos do piso de madeira voaram para todos os lados, assustando os espectadores e os organizadores.
Um minuto de silêncio, no qual todos prenderam a respiração.
- Ei, ninguém vai ajudar a menina? – berrou um dos homens da plateia, após olhar para os lados e se certificar de que ninguém se pronunciaria. – Ei, menina, você está bem?
Isabela não estava bem, é claro. Alguma coisa estava acontecendo com ela.
Imagens apareciam e desapareciam de seu sistema de lembranças. Via mulheres sobre homens, gemendo, pedindo por mais, pedindo que não parassem nunca; viu um avião caindo sobre uma pista de pouso, e logo depois explodir; viu um homem ser baleado e perder a cabeça em uma massa avermelhada de miolos e sangue.
As imagens, os vídeos e as palavras passavam rápido demais. TENHA O MELHOR DO SEXO POR APENAS 9,90 AO MÊS; PROBLEMAS COM A PARCEIRA? AUMENTE SEU PÊNIS DE 5 A 7 CENTÍMETROS, APENAS 39,90 SEM JUROS; HOMEM SE SUICIDA APÓS MATAR MULHER E SEU AMANTE; CATÁSTROFE NATURAL DEIXA MAIS DE 3.000 MORTOS E 25.000 DESABRIGADOS.
Via todo o material que o vírus recolhera do computador de Jorge e Edson. Toda a imundície do submundo da internet, onde todos os tipos de excentricidades eram permitidas. Mal vistas, é claro, mas ainda assim as mais lucrativas e acessadas. Grandes hipócritas, esses humanos.
- Então isso é ser humano? – ela perguntou, num tom pouco alto e completamente impessoal, enquanto os espasmos se tornavam cada vez mais contínuos. – Se for, por favor, me deixem fora disso.
A cortina fechou-se repentinamente, mas já era tarde demais. Dali para a imprensa seria uma questão de tempo. De pouco tempo.
OS JORNAIS NOTICIARAM TUDO COM a costumeira sede de respostas a todas as questões. “O espetáculo, em sua tradição” – segundo palavras dos próprios organizadores – “ainda não se pronunciou para a imprensa, pois alegou que ainda não era a hora adequada”. “E quando seria a hora?”, não pode deixar de perguntar um dos jornalistas quando o advogado representante da empresa saía de mais uma seção judicial. “Quando tudo acabar, a empresa se pronunciará”, ele respondeu, com a cabeça baixa e andando rapidamente, evitando flashes e mais perguntas.
A verdade era que nenhum juiz havia visto algo como aquilo em toda a sua carreira. Moreira, o juiz responsável pelo caso, tinha um nó na cabeça e mais do que perplexidade estampada em sua cara. Falava das coisas com assombro, como se o caso não fosse daquele mundo. Como aquela menina – não menina, robô; ele nunca se acostumaria àquilo – como aquele robô conseguia fazer todas aquelas coisas? Como conseguia parecer tão humano? Essa era a questão principal. Onde ficava a linha entre a ficção e a fantasia, entre o real e o irreal? E a ética, onde entrava na história? Por lei, robôs não eram proibidos, mas nunca havia sido daquela forma. Robôs não passavam de estruturas metálicas ou plásticas, e não faziam nada além de movimentos básicos. Agora um com aparência humana, que tirava vantagem de pessoas ao se passar por uma menina normal? Aquilo estava além da compreensão humana cabível. Aquilo era história para filmes e livros! George Lucas, Stanley Kubrick, C. Clarke, era isso o que aquela menina era! Aquilo nunca poderia ser real, não quando dois zé-ninguéns alegaram construí-la apenas com o conhecimento de livros e internet!
- Inteligência artificial... – ponderou o juiz por um instante. – Então o senhor está tentando me dizer que aquela garot... que aquela máquina responde às minhas perguntas por inteligência artificial?
- Sim, senhor. – disse Jorge perante os jurados, o juiz, o advogado que atuava pela defesa do espetáculo e o promotor público. – Ela foi criada com um sistema de sensores por todo o corpo e...
- Senhor Jorge, poupe-me dos detalhes técnicos. – disse o juiz. Depois, olhando ora para os jurados, ora para as pessoas que assistiam ao julgamento, continuou. – Isso... isso tudo é simplesmente fantástico demais para mim. Nem nos meus sonhos mais absurdos eu poderia conceber uma coisa como essa, não com o avanço tecnológico que temos hoje. Já vi inúmeros filmes com robôs de aspecto humano como protagonistas, mas nunca achei que estaria vivo para ver um na minha frente, respondendo às minhas perguntas. E eu sinceramente não sei o que motivou esses dois senhores a criarem aquela... aquela coisa. Quem sabe eles quiseram bancar Deus ao seu próprio modo, talvez? Eu só sei que isso é irreal demais para mim. Senhores jurados, tirem suas próprias conclusões e deem seus veredictos, por que eu realmente estou perdido. Completamente perdido.
Ele bateu o martelo. O barulho ressoou pela sala como um choque.
- Meritíssimo... juiz Moreira? – era um dos membros do júri. Uma mulher de vinte e poucos anos, com cabelos negros e óculos de lentes grossas. – Podemos ouvi-la, senhor? A... a robô, podemos ouvi-la?
O juiz olhou para a mulher. Era difícil jurados fazerem pedidos repentinos, e aquilo não deixava de causar certa estranheza.
- A senhora... quer mesmo ouvi-la?
Houve um segundo incômodo de silêncio antes que ela respondesse.
- É... é claro, Meritíssimo... acho que todos nós deveríamos ouvi-la. Segundo os homens que a criaram, ela possui inteligência, certo? Então o advogado e o promotor podem perguntar algumas coisas para ela e então... e então poderemos dar nosso veredicto.
- Os senhores concordam com isso? – o juiz perguntou aos outros jurados.
Todos balançaram a cabeça, animados. Estavam todos se sentindo importantes por atuarem em um caso com toda aquela repercussão, além de entusiasmados por poderem ver um robô com inteligência artificial responder às perguntas do promotor. Aquilo seria sensacional!
- Então, tudo bem. – disse o juiz. Bateu novamente com o martelo na mesa. – Mandem entrar a menina. – ele disse, sem perceber que havia tomado a criatura por humana mais uma vez.
- VOCÊ SABE POR QUE ESTÁ aqui? – perguntou o promotor.
Assim se iniciou o primeiro interrogatório judiciário brasileiro com uma criatura de inteligência artificial.
Isabela não usava mais suas roupas de balé. Ao contrário, e por ordem da Vara da Infância e da Juventude – o juiz não soube muito bem para quem mandá-la, e decidiu, de última hora, que aquele órgão seria o mais adequado – ela vestia uma roupa simples, composta por uma camisa de algodão branca e uma calça jeans azul. Tinha os cabelos soltos e penteados para trás, e olhava para os jurados e os espectadores com um ar divertido e duvidoso; os olhos – agora todos sabiam que eram de vidro – vazios e apáticos, mesmo com o brilho artificial característico.
- Eu não quero mais ser humana. – ela alegou, com um tom de voz casual, como se falasse de cutículas nas unhas ou um eminente temporal. – Eu já vi como vocês são e eu não quero mais ser assim.
O promotor olhou para o juiz. Estava apreensivo, sem a mínima ideia do que deveria falar. Mesmo assim, continuou.
- A senhorita foi criada por uma dupla de engenheiros técnicos, não foi? Os nomes deles eram Jorge e Edson?
- Fui; eram. – ela respondeu às duas perguntas automaticamente. – Eles estão bem?
- Estão presos.
- E por quê?
- Porque eles construíram você, e também...
- Então quer dizer que eu sou um crime? – ela perguntou, interrompendo o resto da frase do promotor. – E por que os criminosos de verdade não estão presos? Os criminosos como os ladrões, por exemplo.
- Ora, a polícia está aí todos os dias, prendendo...
- Não, a polícia também é criminosa. Eu vi, eu sei. Estava na internet, na minha atualização. Era uma notícia que falava sobre um esquema de propinas de mais de dez anos. Os policiais recebiam a propina, vendiam suas armas para os traficantes e tudo continuava do mesmo jeito. E eu também sei que a investigação está sendo apurada por uma bancada de juízes e que ainda entrará em processo judicial, e enquanto isso todos esperam em liberdade. – virou-se para os jurados. – Ficaram sabendo disso?
- Isso não vem ao caso, se-senhorita... – disse o promotor, perdido.
- O senhor vê pornografia na internet? – ela perguntou, depois de olhar para o alto, como se estivesse se lembrando de alguma coisa importante. – Já viu aqueles homens com aquelas mulheres, todos aqueles gritos...
- E-eu... eu não sei, eu...
- As pessoas gostam de sentir dor? Por que todos sentem dor e colocam tudo na internet? Porque tudo está na internet, para quem quiser ver. Sim, eu vi, eu vi as cabeças expostas e as feridas abertas, vi um homem perder a vida com um tiro no meio da testa em um vídeo. Está tudo lá, senhor, tudo na internet. E as pessoas veem essas coisas, e se divertem vendo. Divertem-se vendo outras morrerem, vendo outras sentirem dor, e por quê? Por que são humanas? Se for esse o motivo, eu nunca, nunca mais quero sequer pensar em ser humana. Não, senhor, prefiro mil vezes não saber o que é sentir a sentir todas essas coisas imundas que os senhores sentem.
- Meritíssimo... – disse o promotor ao juiz. – Ela deve estar com algum defeito, eu não consigo...
- Oh, por favor, meus pais me ensinaram boas maneiras, como pude esquecê-las! O senhor quer me perguntar alguma coisa, não é mesmo?
Então se calou, com a mesma facilidade com que se punha a falar. Ficou apenas ali, com aquele sorriso abobado no rosto, olhando para o nada e esperando o promotor fazer a pergunta.
- E-eu... – o promotor estava aturdido. Respirou fundo, tentando organizar os pensamentos. – O que você acha disso tudo? Digo, você não se sentiu lesada em algum momento por estar servindo apenas para ganhar dinheiro?
Ela continuou ali, parada, sorrindo.
- A senhorita pode responder agora... – disse o juiz, depois de um minuto verdadeiramente incômodo de silêncio.
- Você falou sobre sentir – disse Isabela. – Eu não sei o que é isso. Nunca senti nada, portanto, não posso dizer como me sinto em relação a isso. Acho que estou feliz. Isto é, se meus arquivos estiverem corretos, alguma coisa como felicidade deveria estar tomando conta de mim agora. Não sei, nunca posso saber. E é melhor assim.
- Você... tem raiva de Jorge e Edson?
- Raiva, raiva... não, se estou correta, raiva não é um sentimento bom.
- Como saber se é ou não bom?
- Eu não sei, apenas presumo. A partir das informações que tenho, tiro minhas próprias conclusões, graças à inteligência que me foi dada. E é apenas isso. Tiro as conclusões e ponto final.
- Meritíssimo, esse interrogatório não tem sentido algum! – esbravejou o advogado de defesa do espetáculo. – Essa... coisa foi criada apenas com um intuito: gerar lucro. Vocês estão fazendo um grande teatro de tudo isso!
- Então é assim que você se porta diante da situação? – perguntou o promotor, desviando o olhar fascinado de Isabela por um segundo e olhando para o advogado. – Meritíssimo, dadas as alegações da defesa, não vejo por que continuar com esse interrogatório. Ele mesmo alegou que a menina... que o robô foi criado apenas com o intuito de gerar lucros e enganar os espectadores...
- Ora, eu nunca disse isso! – exclamou o advogado, suando em bicas, percebendo em que tipo de enrascada havia se metido.
- ...fazendo deles bobos por uma máquina que imitava uma garotinha! – ele continuou, pouco se importando com as palavras do advogado. – Então, Meritíssimo, vejo que não há mais nada a ser discutido por aqui. Deixo tudo nas mãos do júri.
Silêncio.
- Deseja falar mais alguma coisa, senhor? – o juiz perguntou para o advogado de defesa.
- Eu... não, Meritíssimo. – disse, dando-se por vencido.
- Então está bem. Entramos em recesso de uma hora. Quando voltarmos, o júri terá sua sentença.
Bateu o martelo, fazendo todos se levantarem. Isabela continuou ali, parada, analisando aquelas pessoas; analisando a forma como falavam e agiam, como se esgueiravam através das mãos da lei e como deturpavam as palavras dos oponentes em prol de sua própria salvação. E se certificou ainda mais de que eles eram asquerosos, e que sentir não devia ser uma coisa assim tão boa.
O VEREDICTO FOI DADO ASSIM que a seção voltou do recesso. Nada vantajoso para o espetáculo, diga-se de passagem: a organização do balé foi obrigada a arcar com todos os custos dos espectadores que se sentiram enganados ou lesados. Foram obrigados a devolver-lhes integralmente o dinheiro do ingresso do espetáculo. Os espectadores fizeram filas assim que a decisão foi anunciada à imprensa e colocada nos jornais. Mesmo aqueles que adoraram o espetáculo e pagariam para assisti-lo mais uma vez – mesmo sabendo que não era uma garota e sim uma máquina quem fazia aqueles movimentos – entraram nas filas de ressarcimento, por Deus sabe que motivo. Ganância, talvez, de receber o dinheiro de volta, ou apenas a oportunidade de, com muita sorte, ser abordado por alguma equipe jornalística e dar uma entrevista para um telejornal.
Isabela via a tudo pela televisão. Via a multidão na frente do teatro onde se apresentava. Aquele barulho de vozes falando umas sobre as outras era muito confuso, completamente diferente da música clássica. Era rude, sem leveza, apenas uma massa de vozes grossas e finas conversando às alturas, umas querendo se sobrepor às outras, todas querendo ser ouvidas.
A ginóide estava em um quarto de orfanato, isolada das outras crianças. Parecia uma presidiária, sentada sobre a cama, os olhos abertos fitando a TV. Seu desligamento estava programado para aquele dia, à uma da tarde, e seria feito por Jorge ou Edson, únicos que sabiam exatamente como ela funcionava. Os dois, ultrajados pelo escândalo do caso, não se pronunciaram, e as más línguas diziam que os dois haviam sido demitidos – junto com dezenas de outros empregados, visto o rombo no orçamento do espetáculo e a mancha na reputação do mesmo – e que agora viviam novamente de pequenos golpes a sites de compras.
FOI EDSON QUEM COMPARECEU AO orfanato na hora marcada. Junto dele, o advogado do espetáculo, o juiz Moreira e o promotor público.
- Ela não vai... sabe, sentir dor? – perguntou o promotor, preocupado.
- Ela é uma máquina. Não sente nada. – respondeu Edson, olhando de soslaio para o promotor. – Não se preocupe, ela não vai morrer. Não está nem viva, pra começo de conversa.
Viraram em um corredor. Algumas crianças brincavam no chão, com robozinhos de brinquedo, carrinhos e bonecas.
- PSSSSSSSSSSSSH... oh não, ele tá quebrado! Vamos, senhor cientista, está na hora de mostrar o que você aprendeu com seus estudos! – gritou um menininho, segurando um boneco em cada mão. Na esquerda, um homem; na direita, um robô. Ele tremia a mão que segurava o robô, como se o boneco estivesse sofrendo de alguma doença. Depois, aproximando os bonecos, continuou com sua brincadeira solitária. – Agora está tudo bem, senhor robô. Você pode parar de tremer. – E assim se fez. – Muito obrigado, senhor cientista! – ele fez o robô responder. – Agora vai ficar tudo bem. Não estou sentindo mais dor!
Edson não pode deixar de rir com a brincadeira da criança.
- Vamos acabar logo com essa palhaçada – ele murmurou, entrando no quarto sem cerimônias.
Isabela estava lá, sentada, os olhos abertos e vidrados na TV, assistindo ao Jornal Hoje. Os âncoras comentavam brevemente sobre o caso, mas logo foram interrompidos pelos comerciais.
- Ah, oi. – ela se limitou a dizer, desviando os olhos e mirando os de Edson. – Faz tempo que não o vejo.
- Estou aqui para desligá-la. – ele disse. – Vamos, venha até aqui.
Ela obedeceu mecanicamente. Levantou-se, foi até ele e se virou.
Edson abaixou-se, assobiando uma música qualquer. Levantou a blusa que a menina vestia, retirou a pele sintética, e, com a ajuda de uma chave de fenda, desparafusou a placa que protegia o software.
- Então é assim que acaba... – ela perguntou. – Não vai mais me ligar, não é?
- Não, Isabela. – ele respondeu friamente.
Apertou o botão, e, sem demoras, o CD saiu do corpo de Isabela.
- Ah – ela suspirou, como se aquele fosse um aviso de que estava sendo desligada.
Instantaneamente, a ginóide parou. Olhos estáticos, pose ereta, completamente rígida, como um manequim.
Edson, ainda assobiando, imprimiu força com as mãos e quebrou o CD. O barulho ecoou pelo quarto vazio, pegando o promotor e o juiz de surpresa.
- Pronto, está feito. Agora vocês façam o que bem entenderem com ela.
Para Edson era só um mau negócio, uma coisa que lucrara muito, mas que, no fim, não dera certo. Mas para as visões apuradas do promotor e do juiz, aquilo era muito mais.
Tão efêmera, tão descartável. Esvaiu-se assim, de repente, e ficou ali, estática, parada, morta. Por mais que tentassem negar, não podiam deixar de encarar aquilo como vida. Vida breve, que foi embora num piscar de olhos.
O promotor e o juiz se convenceram, naquele momento, de que aquela ginóide era mais humana do que eles; era uma vida, que, com um suspiro breve, deixou de existir. E como dizer que não podia sentir nada? Eles viam, naqueles olhos estáticos e parados, a personificação do medo. Medo de partir e não saber para onde ir. Isabela teve medo, foi o que eles pensaram em uníssono e em silêncio, observando-a. Ela sentiu medo, assim como todos os homens sentem medo ao partir. Além de medo, Isabela sentiu nojo dos homens e de suas obscuridades, desejou com todas as forças não ser humana.
Por mais que ela negasse, havia um pouco de humanidade em seus circuitos. Afinal, o que é mais humano do que odiar os homens em algum momento da existência?