CRIME EM EUROPA (Terceira parte e conclusão)
CRIME EM EUROPA – TERCEIRA PARTE E CONCLUSÃO –
Ela retirou-se, enquanto Ernst a observava pensativo.
Belo corpo...ao qual não falta alguma personalidade...Se fosse mais novo...Se tivesse outra disposição, se Raquel...
O biénio composto pelas hábitos mais as hipóteses de oportunidades adiadas constituíam a equação da sua vida.
-Merda, vou passear!
Embora longe de se sentir bem, a frustração da última novidade levou-o ao passeio.
A estação, ao exemplo do acontecido noutras instalações fundamentais, nunca estava verdadeiramente parada. Enquanto descansava, outro agente ocupava o posto de Ernest a menos que este lhe fizesse o serviço, um pouco por toda a parte os corredores continuavam a fervilhar de intensa actividade. Por isso a sua volta estava longe de ser solitária. Coisa engraçada, interrogava-se por vezes, embora todos ali padecesse de algum tipo de solidão, raramente estavam fisicamente sós...Matutou o pensamento até se encontrar junto do seu apartamento. Deixou-se cair na cama sem dormir, relaxando durante horas.
Foi despertado do torpor pelo código de emergência privativo da polícia.
-Encontrámos o desaparecido...
-E depois?
-Morto...
Num salto rápido pôs-se de pé, correndo até ao escritório onde, obedecendo aos regulamentos, accionou o código laranja, só activado quando se verificassem casos daquela gravidade.
A convocação tinha vindo da zona do poço. Pelo caminho passou pela casa de Berta levando-a consigo. Apesar da sua veterania, nunca tinha deparado com uma situação semelhante na estação. Ao longo de quase dez anos nunca tinha morrido ninguém em Armstrong. O sexto sentido indicava-lhe estar perante algo...ou talvez estivesse enganado por anos de inactividade.
Mal chegaram, ele reparou na presença de várias câmaras operacionais.
-Porque é que estas câmaras não estão assinaladas no mapa da estação -Perguntou sentindo-se desautorizado.
-Fazem parte do equipamento de manutenção. Só o técnico responsável por esta área e Thomas estão autorizados a ter acesso a elas - Resposta que o remeteu de nova ás malditas directivas que atrapalhavam o seu trabalho, e por isso mesmo ao silêncio
Ainda não se tinha retirado o corpo do lugar onde fora encontrado por este ser inacessível: no poço, pendurado num plataforma de manutenção, várias dezenas de metros mais abaixo do local onde se encontrava Ernst. O mutismo dos prospectores em nada ajudou. Recusavam-se pura e simplesmente a descer por não terem ordens nesse sentido. Só com a prestável intervenção da adjunto alemã permitiu algum entendimento. Continuavam a recusar a descida mas facultariam material a quem se dispusesse a tal...
Durante a descida, pendurado fragilmente em cabos, Ernest recordou os seus tempos de giro nas ruas, onde as perseguições constituíam trivialidades...Independentemente de estar a ser vigiado por vários pares de olhos, uns mais ansiosos que outros, sentiu-se só, deliciosamente só, no meio da imponente e sigilosa estrutura negra acentuada pela quase total ausência de luz, barulho industrial intenso. Olhou com atenção - a cinco metros de si estava o vulto de um homem. Pediu mais suporte, desceu e amarrou o corpo.
Dai a pouco, já na sala da enfermaria do local foi confirmado o óbito.
No fim do dia a autopsia indicava como causa de morte uma queda. Estava nas mãos do corpo policial determinar o local e a possível ocorrência de homicídio.
Após ter dispensado Berta, Ernst fechou-se no escritório.
Em duas horas tinha inserido todos os dados recolhidos no computador e, de seguida, começou a fazer perguntas. As respostas foram totalmente inconclusivas A vítima ( Andreias Funck, prospector, solteiro e de amizades desconhecidas) tinha caído exactamente do lugar onde Ernst o avistara. Aparentemente tinha escorregado. Aparentemente.
Novamente o sexto sentido alertou o polícia. Câmaras a funcionar, aparentemente nada registado...Motivos, alguém teria motivos para o assassina...teria de os ter. Após ler os dados pessoais do falecido e a dos seus colegas próximos, conferiu os depoimentos recolhidos por Berta. O técnico responsável pelo local tinha um álibi sólido. Mas havia alguém fora daquela especialidade a ter acesso à zona. Esse alguém era Thomas,
Convocou-o.
Sentados, na sala de interrogatórios, começou o inquérito.
-Onde é que estavas durante o desaparecimento do prospector?
-Na central.
-Mostra-me então os filmes do dia do desaparecimento.
-Estragaram-se.
-Mostra-mos!
-Não posso, estragaram-se, nada se vê.
-Quem estava de serviço?
-Eu, devo ter tomado qualquer coisa das trampas da minha mulher. Durante quatro dias mal consegui dormir, pelo que fiz todos os turnos...
-A tua situação está longe de ser famosa: só havia duas pessoas que poderiam ter acesso àquele lugar. A primeira não pôs lá os pés, a segunda és tu. Ou seja, tens duas alternativas: ou me apresentas os filmes, ou alguma testemunha a dizer que “de facto” estavas na sala e não ali...
-Já te disse que os filmes estragaram-se, não sei porquê, mas o certo é que se estragaram. Quanto a testemunhas...Não tenho nenhuma, normalmente trabalho sozinho.
Resoluto, Ernst levantou-se e de voz firme :
-Thomas Parquer a partir deste momento esta oficialmente detido até ao esclarecimento total da morte de Andreias Funck.
Após ter encerrado o suspeito, ligou para Berta.
-Vou finalmente precisar dos seus conhecimentos. Quero que me elabore o retrato psicológico de um suspeito. Terá à sua disposição qualquer informação requerida, mas, peço-lhe para ser breve antes da bronca chegar à terra. Autorizo-a a falar com ele, mas, por favor, despache-se...
Intrigada, dirigiu-se de imediato ao departamento. Este súbito pedido deixou-a intrigada; se há menos vinte e quatro horas era considerada pouco mais do que um empecilho, qual a razão por detrás da súbita importância? Sim, ali ou em qualquer outro lugar um crime seria sempre um crime. Pelo contrário, as dimensões do local facilitavam uma rápida resolução, como de resto parecia ter acontecido.
Com a voz cansada, o superior esclareceu-a.
-Infelizmente as coisas estão longe de serem tão simples como é habitual. Apesar das circunstâncias serem outras, as estações continuam a ser os locais mais pacíficos habitados pelo homem. A ocorrência de delitos restringe-se somente a pequenos furtos. Elas constituem exemplos de uma gestão cuidadosa das tensões humanas. Um assassínio constitui...sei lá...nunca devia ter acontecido...mesmo que tal só passe por uma mera suspeita...Pessoalmente estou inclinado para acreditar ser este um caso isolado, mas os nossos amigos na terra...Irão julgar estar perante a praga tão temida, o caos estar iminente etc, etc, etc...Ah, sim, o aspecto económico também se irá ressentir, com as acções da empresa em causa a cair em flecha...E o pior é a falta de álibi do suspeito...
-Mas você parece-me demasiado calmo. Esta “excepção” é sem dúvida assustadora, alguma coisa falhou, e no entanto a sua calma...
-Intimamente estou convencido que tudo se passou de um mal entendido, de um acidente. Conheço bem Thomas. É perfeitamente inofensivo. Já lidei com todo o tipo de gente, prendi escumalha capaz de coisas por si inimagináveis e este desgraçado parece-me sobretudo...perdido. Nem precisaria de um álibi : como responsável pela central dos ecrãs, tinha acesso directo ao local de onde caiu a vítima. O local é estreito, você própria já o viu, dois homens corpulentos a cruzarem-se, um encontrão, alguém desequilibrou-se e...O pior é que ele insiste em que esteve sempre na sala. Desconfio que ele mente, e por isso quer que o leve a admitir que foi um acidente. Francamente não percebo...Bastava dizer que tinha dado o tal encontrão para livrar a pele, mas não...
-Demasiado simples. Se assim foi, porque motivo ele não “confessou” logo?
-Vê-se bem não conhecer Thomas...Representa o arquétipo ideal de alguém que faria o impossível para evitar chatices...E como julga que estar na sala é a sua melhor desculpa.... No seu intimo julgaria ninguém acreditar na história. a mentira constitui o caminho mais fácil. Antes de você chegar conferi as gravações que Thomas diz estarem estragadas. A aparelhagem confirmou-o. Agora das duas uma ou ele teve um azar monumental ou mente.
Preciso de si e da avaliação para me confirmar ou desconfirmar. Apesar de o conhecer, os nossos contactos foram sempre superficiais, indo no máximo a uma secção de copos...Se aparentemente o defendo é porque tudo o que aprendi nas ruas me diz isso. No entanto devido ao estrondo que isto vai dar, teremos de seguir os trâmites oficiais. Assim, depois da sua avaliação, irei submetê-lo à câmara da verdade.
-Já a instalaram aqui?
-Qual o espanto? Sabe tão bem como eu que mesmo nos pequenos delitos, o regulamento é bem explícito : se alguém mentir durante a ocorrência do processo é de imediato recambiado. Assim, para se evitarem viagens escusadas, dá-se a derradeira oportunidade, depois de confrontar o sujeito com os resultados da câmara, para confessar. Estou prestes a dar o assunto por findo. Basta-me somente fazer o relatório, mas só avançarei quando você acabar.
Então, quando começa?
-Mal leia os dados biográficos.
Passaram-se quarenta e oito longas horas durante as quais Ernst descansou da estafa dos últimos dias.
Retomara o Joguing, indo na segunda metade do treino quando Berta o convocou.
Foi directa ao assunto.
-O caso afinal é complicado...Ele deu-se como culpado...Bem, como uma espécie de culpado...Certamente já ouviu falar de esquizofrénicos. Thomas constitui um caso típico, aliás devo acrescentar, bastante curioso. Parece um catálogo de patologias mentais.
Para começar tem nítidas perturbações da afectividade, notando-se claramente indícios que vão desde a angústia até à mania, ou ainda perturbações de carácter cognitivo onde são manifestos sindromas ilusório-alucinatóriose até a presença de psicopatologia delirante. Mas a coisa está longe de terminada - Toda uma série de delírios parece apoquentá-lo, desde delírios esquizoides ( onde ainda detectei delírios de prejuízo, de perseguição) a delírios melancólicos ( aqui o seu delírio de ruína é seria motivo de riso se o caso não fosse tão grave) passando por delírios paranóides ( o delírio de grandeza e o de invenção vão constituir exemplos quando revelados e estudados, por serem tão manifestos). Finalmente os delírios passionais. Aqui só encontrei um, o delírio místico. Ele julga-se elevado a um patamar superior, tocado por qualquer poder divino, a encarnação da mensagem.
Dá evidentes sinais de ser um psicótico, sendo incapaz de distinguir as imagens entre o self e do objecto.
Diz conhecê-lo como uma pessoa calma, concordo consigo, mas isso em nada servirá como atenuante: há casos registados de indivíduos perfeitamente normais durante a sua existência, simpáticos e até gentis que “explodem “ em determinada altura. Basicamente viveram secretamente um enorme conflito interior, onde cada gesto simpático camuflava a sua enorme ânsia de destruição. Até se dar a detonação. Aí...pessoas como eu e você entramos em campo para os capturar e “limpar” a sociedade...embora eu seja apologista de uma visão menos negra deste seres alienados.
-Desculpe, mas todo esse lindo arrazoado para mim é...intraduzível. Seria possível fazer uma tradução?
Embora estupefacta, Berta recompôs-se e fazendo um sorriso forçado tentou explicar, adaptando-se à linguagem menos técnica de Ernst.
-Ele enlouqueceu. Longe de se defender, assumiu as culpas de forma pouco ortodoxa pois delira, atribuindo a morte a seres estranhos e, em simultaneamente a si próprio. Julga-se a reencarnação dos males universais e o porta-voz de seres invisíveis que viverão num universo paralelo, raramente se manifestando. A morte representa um aviso da nossa forma errónea de estar e viver.
Recusa-se a qualquer defesa e pediu já a sua transferência para a terra para ser julgado em nome de todos. Para além de mim, recusa-se a falar com quer que seja. Portanto, terá de confiar no meu relatório...
-Evidentemente...gravou tudo?
-Tudo. O ”passaporte” para ser sustentado pelos contribuintes até ao final da sua existência...
-Coitado...
-O que vai fazer?
-Não sei...Diga-me, como polícia e, sobretudo, como técnica, devo submetê-lo à câmara da verdade...?
-Francamente penso que isso será inútil: num doente destes, mesmo que os tais monstros sejam falsos, para ele são partes dum mundo bem real, do seu mundo. Por isso a câmara vai-nos revelar um ser falar a mais pura das verdades, a sua verdade...
-Resta-me então despachá-lo...desgraçado.
Quatro dias depois a nave prisão estava prestes a chegar.
Desde que ouvira Berta, Ernst convencera-se, sentindo-se melancólico com a partida do último dos tripulantes da sua geração. A partida marcava o início de um novo ciclo, sendo ele o resto anacrónico...Apesar de nunca ter sido intimo de Thomas, sentia pena dele: aprendera a evitar ligações, a torná-las superficiais, mas mesmo na superficialidade há sempre alguma aproximação, pelo que lhe custava ver mais uma vida desperdiçada, ainda por cima de um pobre coitado a quem o destino nunca fora feliz.
Leu as suas notas e redigiu o relatório oficial.
Do oficial em chefe Ernst Doom, responsável pela segurança interna da estação E1 Armstrong.
Após o desaparecimento do técnico prospector Andreias Funck e posterior descoberta do seu corpo, tomaram-se as medidas adequadas de forma a apurar a eventual gravidade da ocorrência. Como resultado das investigações procedeu-se à detenção e posterior prova de culpabilidade do responsável pela central dos ecrãs, Thomas Parquer.
Comprovou-se que, no décimo dia do quinto mês do presente ano, o acusado após lutar com a vítima e a de ter posto inconsciente, a atirou para o poço da estação. Infelizmente para o agora arguido, Andreias ficou pendurado numa plataforma de manutenção cinquenta metros abaixo, onde veio a morrer em consequência da queda. Posteriormente, e valendo-se do seu cargo, Thomas apagou as imagens do crime
Apesar do estado de demência em que se encontra, a admissão de culpa foi feita tendo ele admitido ter atirado a vítima ao poço central, pelo que, seguindo o regulamento, procedeu-se à sua transferência para a prisão central.
Em anexo segue o relatório médico da agente graduada Berta Strot.
Faltavam duas horas para o embarque e ele estava designado para escoltar Thomas até ao espaço-porto.
Quis tentar falar com ele por uma última vez. Mal acreditava num desenlace destes, e logo com o ser mais pacífico que jamais conhecera.
Desde o diagnóstico que nunca mais o vira . Esta seria a despedida.
Entrou na sela almofadada e sentou-se, informalmente no chão.
-Então meu caro, o que andámos a fazer...perdemos a cabeça...?- Disse em tom de monólogo.
Para seu espanto, Thomas respondeu.
-Ernst, por favor, poupa-me a condescendência...”estou louco”, irá escrito na minha nova “carta de recomendação”.
Estarei? Duvido mais de vocês do que de mim...
Como polícia nunca tinha lidado com uma situação tão delicada, a precisar de palavras cirurgicamente colocadas. Sentiu-se a errar... por momentos a dureza das ruas pareceu-lhe demasiado branda. Pela primeira vez em muitos anos teve saudades. Mergulhado na nostalgia, e imensamente confuso, sentiu-se a falar quase inconscientemente.
-Deixaste-te arrastar por esta porcaria, eu próprio já senti a pulsão...mas...entre nós, sem gravações, sem pressões, porquê?
-Porquê, porquê, porquê, sempre a trampa dos nexos de causalidade! Interrogo-me tantas e tantas vezes...O nosso destino, as consequências das nossas acções, a diletância com que destruímos a terra e agora o universo! E tudo isto para quê? Para nos perpetuar-mos ou para evitar a imagem da nossa cara no espelho das nossas realizações? Será por isso que não paramos de construir, raramente olhando para trás com o olhar reflexivo que nos permitisse interrogar-nos sobre a justeza dos nossos comportamentos, e quem diz comportamentos diz obras, pois estas derivam quase sempre dos primeiros...
Desde sempre que empreendemos o jogo insidioso de evitar a verdade, onde quer que ela se esconda, porque a verdade é como a luz, cegando quando demasiado forte!
Preferimos fabricar essa verdade e encontrá-la nas realizações, sempre elas. Fez-se a filosofia para perseguir ideias superiores, ou conceitos que alguns sabiam serem incompreensíveis. E o que é que aconteceu? Criamos um universo do saber retórico discutindo conceitos por vezes tão abstractos que se tornam incompreensíveis...Construímos um edifício tão complexo que nos perdemos nos seus corredores.
Esquecemos o essencial, a nossa essência -a demente premência de viver, o aproveitar dessa vida.
O “Carpem Diem” transformou-se, complicou-se porque o complicámos quando nos quisemos eternizar. Rodeámo-nos assim de tantos conceitos que acabámos por perder o espírito inicial, falhando redondamente porque, pelo caminho, perdemos e dispersámos a essência.
Essência que poderia ter sido espelhada na arte. A arte surgiu para dar vazão à ânsia de transmitir aos outros aquilo que ia na alma dos criadores, ou o excedentário da essência. “Os espelhos são usados para ver o rosto; a arte para ver a alma”, e no entanto até no pequeno paraíso dos sentidos que é a arte nos enganámos...Se um criador medíocre tiver a protecção de alguém sonante, toda uma legião de criaturas menores se aprestará a venerá-lo. Pelo contrário, se outro alguém nasce genial mas tem a pouca sorte de ser anónimo, as multidões ignoram-no. Sempre a mediocridade a guiar-nos, sempre o condão, a sina de intoxicarmos a mais belas das realizações...
Gostamos de apregoar o livre arbítrio como a bandeira a guiar os nossos gestos, ignorando estar tudo já escrito, já determinado!
A essência é a vida, a raça humana julga-se imortal e age em função disto, apesar de estarmos redondamente enganados, porque nada é absolutamente eterno. A maioria de nós permanece na obscuridade, mas uma minoria dispõe de indícios do nosso fim. Não Ernst, isto não é mais uma teoria conspirativa, é a constatação de uma das mais aterradoras verdades com as quais nos vamos ter de confrontar um dia.
Lembraste de Marte, de Sojourner? Do primeiro robô a percorrer um planeta “genuíno” solo para gáudio da humanidade? O “jipezinho de brinquedo”, ridículo mas eficaz na missão e perante os meios da época. Sei, sei bem, não é do nosso tempo, mas ao marcar a nova exploração espacial, essa missão passou a fazer parte do nosso tempo.
Pela primeira vez olhos humanos tiveram uma perspectiva da visão de outro astro que não a da sua lua de estimação. Pela primeira vez sentimos verdadeiramente o espaço dentro da terra. Fomos visitados pela aura sedutora das planícies cósmicas e jamais quisemos largar a visão, porque finalmente começámos a acreditar na possibilidade de viver noutros mundos, ou de pelo menos por lá passar fisicamente.
Para a história ficaram as imagens inesquecíveis a fazer sonhar a raça.
Para os arquivos ficou o segredo do planeta vermelho.
Porque Marte era um tenebroso espelho retrospectivo de um possível, do destino futuro da terra; por isso as imagens recolhidas nunca poderiam ter sido reveladas na sua totalidade.
Vales escavados por antigos rios, a humanidade ainda podia suportar e até receber essas imagens mergulhados num estranho romantismo, a fazê-la imaginar quase idilicamente “ como teria tudo sido dantes...”
Mas as cidades...se bem que praticamente invisíveis pelos anos de erosão, uma cidade é uma cidade aqui e em qualquer lugar do cosmos.
Dai termos deixado todos se extasiarem pelas fotografias mais simples.
Depois, quando o robô ficou encurralado nos destroços de uma das cidades, bastou inventar a estafada desculpa de falta de autonomia, forjar, “arranjar” fotos do aparelho bem perto da sonda, e repensar nos bastidores o peso da descoberta, discernindo se se enviaria ou não uma equipa ao astro vermelho, sabendo de antemão que uma tripulação demasiado selecta iria levantar suspeitas...as fotos contradiziam a essência, devolviam-nos a realidade de um fim. Mais tarde, outras sondas, outros projectos que viram demais seguiram o mesmo destino, num mecanismo de ocultação da verdade que se tornou rotineiro entre quem sabia, porque as provas nunca cessaram de aparecer...Que caminho havíamos então de seguir? De certa forma o silêncio e a ignorância eram-nos mais compensadores.
Marte e os seus enigmas podia bem ser o nosso espelho.
Ao vê-lo, ao descobrir o mais negro dos horizontes humanos voltava a surgir, o horizonte da finitude, o fim da essência.
Poucos são aqueles a encarar o terminus frontalmente, sem rodeios, a vivenciar a possibilidade e a estarem, permanecerem serenos até ao desenlace.
Como reagiria toda a nossa espécie perante a primeira prova da extinção total de uma forma de vida inteligente?
Supomos que com o caos.
Incapaz de encarar as suas realizações futuras, com a perspectiva de serem vãs, as consciências descontrolar-se-iam, as velhas relações de dominação entrariam em colapso, a civilização viveria os seus últimos milhares de anos em ruínas.
Claro que alguns desesperados ou lúcidos apregoariam sempre uma qualquer saída mais ou menos concretizável, mas quem estaria disposto a ela quando isso envolveria a colaboração total e inequívoca dos esforços de toda a gente, incondicionalmente, numa altura em que o visionar do Armagedão convidava à sublimação edionista da individualidade de cada um?
Talvez o nosso fim esteja na negação dessa salvação.
Distante, muito distante do sentido redentor mas inevitavelmente condicional de algumas das religiões humanas, mais veneráveis, porque essas religiões sempre exigiram, sempre pediram, sempre sugeriram esse “bilhete postal para a imortalidade” através de uma troca.
Mesmo a bondade quando imposta coercivamente é condicional, é condição...Por muito nobres que sejamos objectivos, a mancha maculada do condicional constitui um pecado, porventura o pior de todos. Elas sabem bem do peso da essência, dai perante a inevitabilidade da morte do corpo, terem inventado um céu onde a essência é prolongada, desde que...
Por isso estamos perdidos.
A raça humana, longe dos idealismos políticos, é e será sempre intrinsecamente mercantilista.
Um beijo dado, pede outro em troca, uma carícia anseia pela resposta. Mesmo que não o digamos, desejamo-lo.
Os próprios sistemas estão, estiveram sempre em causa. O que lhes permite a sobrevivência? A troca. Aquilo a viabilizar a sua sobrevivência constitui o seu próprio fim.
Isto ensinaram-me as sombras.
A sua existência é intemporal porque os seus conceitos são tão diferentes de tudo aquilo por nós conhecido que escapam muito à nossa compreensão, não por serem superiores, mas apenas por virem de um meio a nós totalmente estranho, inóspito, de tão estranho.
Não possuem valores, estruturas familiares, uma organização quer formal, quer informal. A única semelhança é a existência de uma espécie de ética, que longe de ser maniqueista, vale para si própria por si própria.
Ao pecarmos por sermos demasiado “fenomenológicos”, cerceámos a parte do pensamento que nos poderia facilitar a sua compreensão. Longe, demasiado longe do mundo objectivo e subjectivo dos primeiros filósofos. Nem eu próprio, apesar de ter sido iluminado o consigo explicar.
Qual mundo sensível, inteligível! Há outra barreira à qual se poderia designar grotescamente por “dimensão”, pois o seu sentido é muitíssimo mais amplo, e é ai que eles vivem, não, permanecem, pois eles não vivem.
Estão entre nós desde sempre, desde antes do início. Apesar de não os vermos, a relação existe - Uma vez por outra abrem-se portas, mesmo na terra.: por vezes há testemunhas humanas ocasionais, que prontamente identificam a ocorrência com algo de muito forte existente no seu imaginário dando assim origem às chamadas assombrações, aparições etc...e ainda a alguns tipos de ovnis; mas continuam a ser meras imagens, eles nunca se manifestam fisicamente, agem sempre no domínio da mente. As representações existentes limitam-se a ser produtos humanos sob a influência de qualquer coisa que os transcende. E eis a razão da existência destas “entidades” ser estranha a todos...
A nossa existência é-lhes irrelevante, mas a presença aqui em Europa não.
Este local é o único em várias galáxias onde se tocam permanentemente as duas “dimensões” (a nossa e a deles) e por isso convém mantê-lo como terra de ninguém, lugar neutro.
O contacto nunca poderá ser permanente. E1 é permanente, e por isso terá de desaparecer.
As provas tidas contra mim, a facilidade relativa com que acharam o corpo, o facto de eu não ter, nem querer ter um álibi, a coincidência de haver uma especialista em avaliações psicológicas, o facto de ocorrer aqui, E1 ou Armstrong, a estação destinada a homenagear o primeiro humano a pisar solo alienígena...dando início a um percurso “cronológico”, tanto ao nosso gosto. Coincidências a mais...porque eles querem que eu seja culpado! E eu assumo-me como culpado, pois sei que eles têm razão. Fui eu que empurrei o prospector, assumo-o! Porque eles querem, e eu nada sou para os contrariar! Querem que esta conversa exista! Querem que tu duvides! Técnico veterano, de formação agnóstica e cuja fé na raça se aproxima da mais pura das descrenças; um homem nostálgico, mas, ao mesmo tempo, receoso da anterior vida, refugiado na fronteira por se considerar um desajustado. Nunca acreditarás, porque pura e simplesmente não te resta mais nada em que acreditar! Em situações normais escolheriam a estação onde servisse um polícia crente, mas o seu agir é anti-lógico...Só a sua coleguinha médica acredita, reforçando a minha crença mas somente na lógica de eu vir a falar mais e mais e mais, alimentando os seus estudos e uma possível tese de doutoramento. A loucura em mim constitui uma razão autonómica, “a verdade da minha loucura é a razão”. Serei famoso, lamentavelmente famoso graças a ela. A sua crença é mercenária e talvez esteja ai a suprema ironia.
Meu caro amigo, a máxima conquista “deles” será a nossa descrença, e mesmo isto lhes é irrelevante...são muito estranhos...
Farão tudo para nos expulsar, e consegui-lo-ão, isto é apenas o princípio. Tocam-nos onde dói mais, na essência.
Para além de nós, continuarão.
Eu irei acabar morto num hospício, tu encurralado numa rua por um gang, demasiado sofisticado para os teus métodos. Ambos não iremos assistir ao desenlace, graças aos céus!
Finalmente impressionado pelo grau de demência atingido por Thomas, o agente ficou durante segundos estático, fumando um cigarro, observando o fumo branco a desenhar desenhos impossíveis e a desvanecer-se, tal como a loucura do amigo, até ser despertado pelo alarme do relógio. Estava na hora de levar o prisioneiro.
Ernst levantou-se e esticou a mão para levantar Thomas, puxou-o suavemente, mas este, subitamente, começou a gemer descontroladamente, tanto que o agente teve de lhe dar um anestésico.
-Meu caro, o que se passa, a prisão é assim tão má? - Disse, tentando, por uma derradeira vez ser cordial.
-Não. É um velho problema que “apanhei” aqui, uma hérnia discal. Há mais de oito anos só consigo arrastar objectos de pouco peso e tenho de ter muito cuidado nos movimentos; qualquer coisa que implique um mínimo esforço põe-me neste estado. Daqui a uma semana estou outra vez como novo, mas a chatice disto tudo é que mesmo que me encoste a algo as dores voltam.
Passaram-se dois anos.
Tinha decorrido um mês depois da morte, num beco sujo e esquecido de uma cidade terrena, de Ernst Doom, quando nas estações E2, E3 e E4 se registou um inusitado aumento de violência, com morte de vários tripulantes.
FIM
Agosto de 1997
Revisto em Novembro de 1999
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