CRIME EM EUROPA (Primeira parte)
Que fogo inesgotável te queima os olhos?
Que febre inquietante ferve no teu sangue?
Que voz da sombra te fustiga?
Que terrível enigma decifraste nas estrelas?
R. Tagode
CRIME EM EUROPA
“A loucura da loucura está em ser secretamente razão”
Michel Foucaut
I
O som monocórdico e tenso do despertador pareceu-lhe ter vindo do mais fundo dos infernos, de tal forma o achou inoportuno.
Resistindo à tentação de esmagar o aparelho, procurou na mesinha de cabeceira um copo e sorveu o seu líquido num golo forçado.
Descendo da cama indolentemente, viu as horas, constatando ter ainda algum tempo.
Espreguiçou-se, bocejando longamente.
Tirou do armário uns calções e uma T-shirt, vestindo-os à velocidade normal dos semi-acordados, ou seja, devagar, devagarinho….
Amaldiçoo todos aqueles passíveis de serem detestados pela humanidade, e procurou um qualquer motivo para sair e casa. O dever óbvio acenou-lhe com a realidade dos factos, pelo que respirou fundo, foi até ao frigorífico e procurou o café gelado do costume.
Sentiu-se então suficientemente revigorado para sair.
Já várias vezes se tinha interrogado sobre os seus hábitos matinais, mas como se o oráculo introspectivo da sua pouco imparcial consciência não respondesse, inseria as dúvidas na mesma rotina, e abstinha-se de semelhantes introspecções até ao dia seguinte.
Dispunha de duas horas, tempo suficiente, mas tempo igualmente curto, por isso...Começou a correr.
Em ritmo calmo, percorreu a primeira alameda de corredores. Nem mesmo quando alguns conhecidos menos desejáveis (traduzindo: chatos!) o saudaram, abrandou. Marcou o compasso pelo som do seu peso no piso de metal, esforçando-se para fazer o máximo barulho possível.
Durante os primeiros tempos de estadia, achara divertido, e até mesmo hilariante, pois era costume os técnicos mais novatos virem a correr verificar se algo corria mal, deparando então com ele e o seu ar de gozo. Após um pedido de desculpas, ele continuava, discretamente, até que se lembrava de fazer o mesmo no dia seguinte. Continuava actualmente a fazer o mesmo, mas mais por hábito, já que o gozo se perdera, tornando-se, também ele, monótono, mas também por resistência contra as novas tecnologias, que, permitindo um melhor isolamento sónico lhe dificultavam a tarefa, tornando raras as aparições dos técnicos.
Acelerou.
O “Bip” indicava-lhe estar a ser necessário algures. Ignorou-o. Tempo de folga era tempo de folga. Parou e bebeu água num dos inúmeros fontanários situados por toda a torre (nome quase pomposo, se tivermos em conta não ser mais do um mero cano estilizado, posto na vertical por onde saia água para os cidadãos). Acendeu o cigarro da praxe. Era proibido, a composição do ar respirável tinha sido idealizada numa época de poucos fumadores (pelo menos assumidos...) bem o sabia, mas havia que dar alguma piada à monotonia, reforçada com o facto de ser o próprio a passar a multa. Tirou a agenda do bolso da camisola e escreveu o seu nome e a frase “apanhado em flagrante delito”.
O cigarro por si só estava longe de ser um divertimento na pausa, pelo que não resistiu a ver o conteúdo das mensagens. Meia dúzia de trivialidades, para não dizer idiotices do tipo “a cozinha ardeu completamente, desconfio do vizinho” ou os mais imbecis “desapareceu o meu gato”, e tal era a sua repetição que, não poucas vezes, ele se interrogava se as pessoas da estação o tomariam por um bombeiro!
Respirou fundo e sentiu-se tonto. Alguém se enganara ligeiramente na mistura de oxigénio. Erro insignificante mas o suficiente para obriga-lo a utilizar o ritmo irritante de quase passeio.
Percorrera cinco dos vinte pisos, começando a sentir as primeiras caimbras quando se lembrou do encontro com Raquel.
-Merda, merda, merda !!!-Ia resmungando entre-dentes, enquanto se preparava para o raspanete previsível.
Decidiu atalhar pelo elevador mais próximo, mandando às urtigas o treino que procurava seguir escrupulosamente.
-Mais pneu menos pneu...
Ao entrar no duche filosofou sobre a insistência da palavra “habitual” na sua vida -As manhãs eram habituais, o exercício habitual, os encontros com Raquel habituais, o emprego habitual, as noites habituais, a paisagem...demasiado habitual.
Um barulho habitual -Alguém entrou no apartamento com o seu código.
-Ernest...
-Raquel?
-Olá lindo!
Saiu indolentemente, preparado para a ouvir, cinco minutos eram um descuido imperdoável.
Ela nada disse, limitando-se a tirar-lhe a toalha e a massajar as suas costas enquanto o beijava com fervor. O jogo iniciou-se. Fizeram amor até ao limite do tempo.
E era sempre assim, habitual, desesperadamente habitual. Só se tornava dócil quando o cio a dominava. Pena era que isso lhe dava muito raramente.
Deixou-a deitada na cama e saiu a correr.
Apesar de o fazer esporadicamente, adorava chegar atrasado, pois isso quebrava a inevitável rotina.
Comprou o jornal, sabendo de antemão ir ler praticamente as mesmas notícias da véspera à excepção de um ou outro colocado.
Chegou ao escritório e constatou agradavelmente ter muito pouco para fazer, resumindo-se as tarefas a passar meia dúzia de multas, além de despachar os quase inúteis recados recebidos durante o “joguing”. Ou seja, nada que não resistisse ao pequeno-almoço prolongado por si tanto apreciado.
No dia anterior chegara uma nova colaboradora. A refeição constituía pois excelente ocasião para a conhecer. Telefonou-lhe e convidou-a.
Sentaram-se numa das esplanadas da zona com vista para o mar. Sendo comissário, estava habituado a fazer perguntas, pelo que não encontrou dificuldades em lidar com as palavras adequadas.
-E então Berta? De onde vem?
-Da Alemanha.
-E está a gostar?
-Bem...é um pouco fechado...
Sorriram os dois.
-Desculpe, mas é inevitável observar a sua juventude...Sabe, por estes lados gente nova constitui tal raridade que a pergunta era quase obrigatória...
-O que tem de especial? Formei-me sempre com a ideia de vir para aqui. Desde pequena, as imagens das estações, o ambiente em volta delas....Reforcei esse interesse ao longo do curso onde li uma série de relatórios e de estudos, cada um deles aumentando a vontade de partir, de experimentar a “última fronteira”. Provavelmente achará estranha essa atracção...
-Engana-se, estou aqui por motivos semelhantes.
Ela fez uma tal cara de espanto que Ernest se viu na obrigação de, como anfitrião, lhe dar algumas explicações.
-Compreendo o seu espanto, mas acabada a academia e alguns cursos de aperfeiçoamento, de início, a perspectiva de um futuro encerrado num gabinete ou a perseguir criminosos de valor duvidoso era atraente, mas, após seis anos nas ruas, tempo suficiente para estas instalações se banalizarem ainda mais (quando me alistei o interesse ainda existia...)e a febre à sua volta ter baixado a níveis menos “mediáticos”, a minha vontade tinha esmorecido. Nessa altura senti ter chegado o momento para o grande salto. Afinal as listas de ingresso tinham sido reduzidas ao mínimo, devido ao esgotamento da novidade e ao isolamento.
-Desculpe a observação, mas como futuro este lugar está longe de ser imprevisível ou de constituir uma alternativa...excitante, peço desculpa, entusiasmante. O meu caso é diferente, desde pequena que a minha intenção era vir provisoriamente, nunca, jamais pensei em ficar permanentemente...
Ernest franziu o sobrolho, abstraindo-se durante segundos, como se tivessem acabado de lhe dar uma grande novidade.
-Sim...Talvez tenha razão, mas a perspectiva dos anos contarem a dobrar para a reforma, um bom ordenado e o estar longe da agitação dos grandes centros, revelaram-se argumentos suficientes a fazer quase esquecer a previsível pasmaceira. O desgaste das perseguições, seguidas de prisões temporárias, da libertação da escumalha por parte dos sempiternos advogados, e das suas manhas...transformou-me num “refugiado”. A falta de adrenalina é de longe compensada pela tranquilidade...Para um idealista este sítio poder-se-ia assemelhar ao esilio, mas como a minha faceta sonhadora tinha ficado nas ruas...Afinal é tudo uma questão de hábito. O gostar é meramente subjectivo...Com o tempo a acomodação cola-se a nós, depois a nossa vida resume-se a contar os dias até à saída. A determinada altura até nos esquecemos que estamos aqui. Só o facto de não podermos dar “uma voltinha ao ar livre” nos devolve momentaneamente à realidade.
Mas voltando a si, formou-se em quê?
-Psicologia e sociologia das fobias com pós-graduação em psicologia criminologica.
-Então não é um agente puro...
-Faz alguma diferença?
-Para lhe ser franco...aqui...tal revela-se irrelevante. Caso estivéssemos noutro local mais agitado, onde a criminalidade fosse minimamente significativa, sim, servir-me-ia de pouco. Ou ter-se-á esquecido de ter vindo como minha adjunta directa, ou seja é a segunda figura policial na estação?
-Eu pensei...
-Que a distância iria originar o aparecimento de uma série de neuroses e de patologias do foro psíquico tão graves que a sua presença se revelasse vital...Minha cara, o que é que andam a ensinar nas escolas actualmente? Já sei, estamos perante a velha problemática da diferença entre a teoria a prática profissional!
O homem riu-se à gargalhada perante a ingenuidade da jovem, e retomou rapidamente o seu raciocínio.
-Aqui anda toda ou quase toda a gente medicada com cargas e cargas de drogas. A seguir aos materiais de prospecção, os medicamentos são a segunda matéria vital por estes lados. Se sem os primeiros este local perdia a razão de ser, sem os segundos o caos ambos instalava-se, tornando a situação incontrolável...
-Mas...Mas isso é uma parvoíce, uma asneira crassa! Isso é incorrecto!
-Eticamente incorrecto, será a expressão mais adequada. Mas tal só é aplicavel num lugar onde a sobrelotação de licenciados leve à criação de expedientes tais que, “milagrosamente” alguns conseguem colocação apesar de ela não existir. Neste lugar, e noutros semelhantes, a história é outra...há falta de “mão-de-obra”...
Se quiser um conselho, encare a sua comissão como férias bem passadas. E olhe que a coisa até pode ser divertida...Só nos clubes há sempre rapazes ansiosos por caras novas...Por mim, pode lá passar a maior parte do seu tempo, está formalmente autorizada.
-Vim com o meu marido.
-Sim? Qual é a função dele?
-Técnico de prospecção.
Mais um mineiro! -Pensou secamente Ernst, abstendo-se, todavia, de o dar a perceber a Berta. Continuou, tentando mostrar-se simpático.
-Isso é mau...ele sempre ocupado, e você...Gosta de armas?
-Pensava serem proibidas.
-Aconselho-a a actualizar-se lendo os nossos regulamentos. Apenas nós estamos autorizados a usá-las; embora nunca o tenha feito, apenas no simulador, onde passo a maior parte das minhas tardes. Imagina as situações perigosas em que a maldita máquina é capaz de nos colocar? Não seria nem a primeira nem a segunda vez a sair de lá directamente para o hospital.
-Tudo isto é novo para mim...
-Compreendo-a. Sabe isso do tempo custar a passar é uma ideia relativa. Quanto mais ocupados estamos, menos o sentimos.
-Então nada tenho para fazer?
-Praticamente.
-Nesse caso...seria possível ir de barco até às outras estações?
-De barco nunca iria, aconselhável seria o over-craft por causa do gelo, e mesmo assim...só com pessoal especializado. Mas, mesmo apesar do tempo livre, os regulamentos impedem-na de sair da estação .Só quando chegar o seu substituto lhe é permitida qualquer saída. “Nenhum agente deve sair do local da sua jurisdição, sendo aceite tal ausência em caso de substituição”, veja na página quatro do manual dos agentes destacados para a E1.
Bem sei, é um absurdo a nossa ausência mal seria notada, e nunca aproveitada, mas ordens são ordens, os tipos que escrevem esta coisa imaginam a estação como um Centro Comercial em moda (ou seja, demasiado agitado), ao invés de a olharem como a concentração humana mais estável jamais criada...Por isso nada posso fazer. Já enviei vários relatórios onde descrevia o dia a dia por estes lados, mas nem assim se muda o regulamento. Pessoalmente não vou ao exterior há já alguns anos, mas paciência. Por isso não me volte a pedir para sair, pois sou inflexível. A última coisa que quero é arranjar problemas. Seria bonito, vir para a fronteira livrar-me de chatices e ter um processo!
-Mas se me autoriza a passar o dia fora do gabinete...
-O gabinete não é a estação. Aqui posso contactá-la imediatamente, estando você a umas centenas de milhas não. Além do mais, os regulamentos não especificam o local aqui dentro onde passa o tempo, logo, pode passá-lo onde bem entender, excepto se houver trabalho. Compreendo o que está a sentir, mas desde já vamos esclarecer uma série de pontos de forma a evitar problemas futuros: Primeiro, deve ter sempre presente a sua função primária Polícia, ou agente federal com competências alargadas, por mim ponho ambos no mesmo saco dos servidores da lei, e dai estar subordinada a leis muito próprias, às quais deve obedecer rigorosamente. Cientista, estudiosa, ou o nome que lhe quiser dar, será sempre a sua função secundária, logo não relevante. Obedece a regulamentos da nossa corporação e não a um relógio de ponto universitário. As tardes de folga, ou sem nada para fazer e aquilo que delas faz, estão longe de serem uma violação dos regulamentos, caso contrário estar-me-ia a borrifar para o seu tédio e obriga-la ia a permanecer comigo no posto. Segundo, e na mesma linha, a sua formação académica é irrelevante dado, como já expliquei, as habilitações desse tipo são tão úteis como um assistente social, em teoria são necessários, na prática podem ser dispensáveis se a situação e a escassez de recursos assim o exigirem. Se quiser pode discutir perfis psicológicos comigo ou matérias da mesma índole, mas nunca utilize a sua ciência quando tal se revelar desadequado. Por muito brilhante que seja, creio ter escolhido mal o local para aplicar os conhecimentos. Quero-a como colega de ofício e irei avaliá-la neste prisma. Periodicamente será submetida a situações fictícias, mas cuja probabilidade de eclodirem poderá ser real. Estará porventura esquecida que um dos factores que nos diferencia dos outros animais é a imprevisibilidade? Apesar de todos os sensores, câmaras e restante tecnologia o controlo sobre a população não é um dado adquirido...Apesar de pouco provável ninguém nos garante que alguém se passe da cabeça e comece a disparatar...A inexistência de armas está longe de ser o garante da estabilidade total...Afinal, muito antes da invenção da armas de fogo já existiam assassinos em série...Já passou muito tempo desde que aqui cheguei e nunca vi sequer uma tentativa de homicídio, mas nunca fiando. Por isso mantenha-se alerta... Terá um prazo limite para a sua resolução e qualquer atraso servirá como penalização, constando, obviamente, na sua ficha.
Se for rigorosa naquilo que lhe é exigido, asseguro-lhe que nos iremos dar muito bem. Se quiser, podemos, fora daqui, ter uma relação mais informal. Fora de serviço posso ser boa companhia e facultar-lhe qualquer informação pretendida sobre este local, posso ser o seu “Cicerone”, tarefa que desempenharei com enorme prazer, prazer que abalará um pouco da minha rotina, facto a todos os níveis de salutar. Há anos que não recebo ninguém
A propósito, hoje comemoro dez anos de permanência, se quiser aparecer...
-Adorava, mas o meu marido está muito cansado, a viagem foi muito longa.
-Apareça na mesma. Raquel está ansiosa por novas caras.
-Sendo assim, apareço às...
-Oito horas, a morada é 18º Piso quinto apartamento do lado direito da estação.
Aproveitando a tarde livre de Berta, Ernest requereu a sua documentação aos serviços administrativos. Apesar de se terem mostrado renitentes em ceder a parte confidencial do dossier, o facto do director de serviços ter sido um velho agiota recuperado por si nos seus tempos fora dali, facilitou em muito a sua tarefa.
Por norma adquirira o hábito conhecer bem os seus subordinados, mesmo que tal implicasse o vasculhar abusivo das suas vidas. Tudo na lógica de evitar situações inesperadas.
Ao longo da sua carreira aprendera que se controlasse todos os elementos de uma situação, esta raramente se tornaria imprevisível. Estava longe de ser um polícia puro, ou mais particularmente um investigador ( a sua especialidade), mas compensava essa lacuna com o rigoroso controlo de todas as variáveis de uma situação. Era conhecido por ser de um enorme rigor, e se algum brilho tinha era nessa aréa que se revelava perito.
Longe de ser limitado, preferia viver num mundo de conceitos simples e realidades tangíveis. A análise dos factores inseria-se nessa lógica.
Tudo quanto fosse mais do que a dialéctica diária ou a filosofia simples do saber que se existe porque se existe, era para si excedentário e passível de recusa. Problemas só os tinha quando confrontado com algo cuja lógica desconhecia totalmente, preferindo entregar o assunto a alguém mais capacitado. Como isso nunca acontecera desde que desembarcara na estação, ele considerava aquele emprego o melhor à face da terra, aliás, sobre a terra...
Apesar disso, apesar de desprezar intimamente a maior parte dos intelectuais, compreendia os seus assuntos de reflexão, considerando, no entanto a problematização dessa reflexão excedentária. E no entanto, assumia ter uma base idealista, aderindo à polícia, como tantos, por se sentir seduzido por aquele mundo de dever, de exploração. Encarava-a como uma profissão de sacerdócio, “Honra e dever incondicionais”, mas o passar dos anos e o lidar de perto com um mundo bem mais negro daquele por si idealizado tornara-o amargo e banal. As razões da sua estadia na estação estavam longe de serem aquelas explicadas a Berta, mas como devotava uma desconfiança nata em relação aos homens e mulheres cuja função constituía em lidar com os mistérios da mente, preferira dar-lhe o mínimo dos dados possíveis ou a resposta desejada. Podia controlar os seus passos, mas nunca a consciência, e por isso, apesar de não a conhecer, temia-a.
A realidade no entanto passou a ser outra muito rapidamente, completamente diferente -Com o passar dos anos aquilo que o levara à polícia desaparecera. Perseguir criminosos menores, investigar crimes iguais aos sempre praticados, lidar com a mesma gente anónima e a anódina, desprezível na escassez de perspectivas e temível por fazer tudo para alcançar esse pouco, transformara-o em apenas mais um funcionário, sem animo, sem esperança a não ser a da reforma, transformara-se num deles, e isso amargurava-o secretamente. A oportunidade da fronteira leva-lo ia a envelhecer sem o ver nos rostos de quem o rodeava. Quando regressasse os colegas ou teriam morrido ou estavam demasiado velhos e longe para os reconhecer.
Aos jovens invejava-lhes somente a crença da mudança, todo o resto era-lhe totalmente indiferente, e foi com essa indiferença que pegou no ficheiro de Berta.
Berta Srot, 27 anos Licenciada com distinção em Psicologia e sociologia das fobias, Mestre em psicologia criminologica, pela universidade de Berlim e membro do quadro de honra das universidades Europeias
Filiação - Friederic Allonsus e Martha Allonsus
Casada com Joachin Van Srot.
Dossier Confidencial - Acesso restrito
Durante três anos Berta Srot integrou o Projecto Vivências, no qual desenvolveu uma série de pesquisas cujo conteúdo permanece secreto.
Devido à qualidade de agente, foi considerado oportuno a não revelação da sua participação num projecto de objectivos meramente científicos.
“Meramente científicos...”
Ernst desconfiou.
Requereu toda a informação disponível sobre o tal Projecto Vivências.
Aparentemente nada tinha de especial, pois tratava-se apenas de um mero estudo sobre a as vivências de pessoas a longo termo em estações semelhantes à sua. O objectivo era melhorar as condições de socialização e evitar a prática corrente do uso de drogas, usando as velhas práticas de Dinâmicas, onde se incluíam as psicoterapias e sessões de grupo, caídas em desuso com o decorrer do tempo e desenvolvimento de novas correntes dentro da psicologia, mas agora ressuscitadas por não se encontrar nada de novo para resolver os velhos problemas de sempre.
O comissário encostou-se na cadeira e resmungou. Afinal a sua “chocada subordinada” seria tudo menos uma caloira assustada com a inacção reinante por aqueles lados. Ela (pensava ele) sabia muito bem para o que vinha...Suspeitou que de alguma forma ela servisse os interesses de algum mentor na Terra, tendo-se servido da sua condição de polícia para agir como uma espécie de “cavalo de Tróia”. A fama dos agentes destacados para as estações de resto facilitava este tipo de manobras, pois, regra geral, eram considerados funcionários menores que serviam no aglomerado mais tranquilo de todos os sistemas humanos, homens sem fibra, cuja maior preocupação era vigiar o passar do tempo...Por isso sabia que, mal pudesse, a jovem tentaria impor os novos ensinamentos.
Viu de novo o dossier e perante a ausência de recomendações, deduziu que ela vinha apenas como polícia e nada mais. Se se metesse em experiências seria exclusivamente sobre sua própria responsabilidade. No entanto, a hipótese dela poder estar ao serviço de outros estava longe de o abandonar
Apesar de raramente se dar por vencido, Ernest reconsiderou a irredutabilidade maliciosamente... Talvez a deixasse agir, mais precisamente sobre aquela grupo típico de donas de casa cujo maior passatempo era torrar-lhe a paciência com questões perfeitamente idiotas. Sorriu sadicamente...A imagem de Berta atulhada em crises existenciais e nada poder fazer parecia-lhe irresistível. Por outro, se a experiência resultasse iriam diminuir o número de remessas de drogas e assim poupar combustível e material. Todos ficariam satisfeitos e a velha mas segura pasmaceira regressaria à normalidade.
Outro cigarro e a respectiva multa anunciou as tréguas com a extinta intranquilidade.
Decidindo passar o resto da tarde, foi ao paiol de onde tirou a sua eterna pistola, depois, dirigiu-se até ao salão de V.R ( Realidade virtual).
O simulador estava “arrumado” numa sala de dimensões menores, mas totalmente adequadas. Do seu lado direito estava o vestiário com o equipamento obrigatório constituído essencialmente por pequenos imanes e sensores. Ernst colou-os às zonas indicadas e entrou. Devido à obrigatória rentabilização do espaço existente, desenvolveu-se uma nova realidade virtual. O objectivo dos magnetos era restringir os movimentos a um mínimo, tendo como resultado a pessoa mexer-se normalmente mas sempre no mesmo no mesmo espaço; em complemento, os sensores transfeririam para o corpo as sensações das paisagens virtuais.
-Opção “Revolta na Bounty.”
Perante si tinha o cenário de um sector em anarquia. Dispunha de duas horas para capturar os cabecilhas com o mínimo de mortes.
No fim do prazo, o líder principal fora preso, ele recebera duas balas de raspão e o adjunto jazia abatido bem como cinco reféns na gravação da sessão.
-Cada vez menos eficaz...- Comentou, indiferente, em voz baixa.
Após o indispensável duche, apressou-se a cumprir a última das tarefas do seu turno- Passar pelos centros principais da construção e verificar a sua normalidade. Podia fazer tudo isso do gabinete, mas apreciava de sobremaneira a ronda e a sua aura dos bons e velhos, muito velhos tempos. Imbuído no espírito, cigarro entre os dedos, melodia ritmada no assobio, olhar vigilante. Era um classicista empedernido.
Em primeiro lugar iria á central dos ecrãs, verdadeiro olho vivo a controlar tudo menos os aposentos individuais. Só numa emergência a intimidade destes seria violada, e a pena para quem desobedecesse pesada.
Saudou Thomas, o responsável actual e conversou sobre trivialidades habituais. Ele e o comissário eram os decanos do local, pelo que, embora estando longe de serem amigos, tinham várias afinidades e a alma da antiga geração. Ao contrário dos outros, estavam ali para acabar a carreira e só isso já os tornava únicos. Contrariamente a Ernest, Thomas tinha mulher e filhos, sendo a primeira adepta incondicional de tranquilizantes, e por isso mesmo totalmente amorfa, e os segundos inimigos acérrimos da central, tanto que o pai se vira obrigado a deixá-los ir estudar para outros locais mais “sociáveis”. Por isso mesmo vivia solitário despido de perspectivas, sempre bem-disposto, mas recluso da única coisa que agora verdadeiramente o interessava, a sala dos ecrãs.
Se alguma antipatia havia no comissário em relação a este homem alto, curvado mas de razoável constituição física, residia precisamente no ponto em que deixara chegar a situação familiar. Desprezava a ausência de uma atitude, de um assomo de dignidade, a mediocridade.
De forma a evitar este arrastamento em relação a si, Ernst adoptara em relação às mulheres um distanciamento subtil, ausência confundida com mistério, que as seduzia. As companheiras duravam menos de um ano, sendo Raquel a excepção, record absoluto superando o dobro do tempo. Talvez fosse a idade a arrastá-lo para a quase inevitável estabilidade emocional, ou talvez se estivesse a apaixonar. Apartamentos diferenciados constituíam garantia suficiente para a terrível perspectiva raramente durar mais do que um cigarro.
Despediu-se e tomou o elevador para o poço. Verdadeira alma das instalações, à volta dele tudo se desenrolava, por ele tudo se fazia, a ele nada poderia faltar. O pessoal de serviço constituía pois a elite da corporação, respondendo directamente à base. Nem mesmo Ernest dispunha da autoridade para os investigar. Detestava-lhes a altivez, embora fossem silenciosos, raramente falando, sempre a trabalhar, quase sem folgas. Por isso as suas comissões duravam somente metade das outras. Embora fossem extremamente bem remunerados, o desgaste físico e psicológico obrigava-os frequentemente a retirarem-se prematuramente.
Acenou a cabeça cumprimentando os presentes, consultou a folha de serviço e saiu. Vistoriar o local era tarefa capaz de durar dias, pelo que só o fazia duas vezes por ano.
Para acabar dirigiu-se ao porto aéreo, totalmente mecanizado e dispondo somente de um funcionário menor para assinar as guias já confirmadas pelas autoridades.
Confirmou a inexistência de partidas durante as próximas noventa e seis horas, dando então o serviço por acabado.
(Continua)
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