Tratamento de maluco

Um bebê tossia no centro de tratamento intensivo. Era alta madrugada. O residente de plantão fazia a ronda no hospital verificando os pacientes internados, sob seu braço a prancheta com os casos do CTI que ele andara estudando nas últimas horas. O som da tosse era constante, vindo de vários dos quartos.

Na última semana mais de vinte bebês foram internados com os mesmos sintomas: temperatura corporal baixa e tosse com sangue. Os exames não indicavam ao médico nada sugestivo de nenhuma doença que ele tivesse estudado durante seu período universitário. Não havia sinal de infecção viral, bacteriana ou de qualquer outra origem.

A esperança dos médicos repousava no grupo de especialistas que chegaria ao hospital pela manhã, dentre eles pediatras e imunologistas.

Ele bocejou e esfregou os olhos, não dormia há 72 horas, seu corpo estava exausto, mas seu turno só acabaria em três horas. O uniforme azul do residente estava manchado de sangue e iodo em vários pontos, mas durante a madrugada ninguém se importava com esses detalhes.

O médico abriu a porta da pequena sala de café e se jogou no sofá que havia na sala. Se ele fechasse os olhos com certeza dormiria ali mesmo.

- Doutor, tome, vai lhe fazer bem – a enfermeira loura estendeu uma caneca de café fumegante para o médico.

O líquido quente escorreu pela garganta do médico, seu corpo agradecia, logo a cafeína atingiria seu sistema nervoso central e lhe daria a falsa sensação de alerta, e com certeza na manhã seguinte a úlcera em seu estômago precisaria novamente ser tratada, mas ele não se importou com nada disso.

A campainha de emergência soou no corredor, a enfermeira abriu a porta e correu para o painel de controle que ficava na sala de enfermagem.

- Quarto 202! Parada cardio-respiratória! – ela berrou.

Dois enfermeiros passaram correndo pelo corredor em direção a porta que ficava à direita nos fundos. O médico largou a caneca de café ainda pela metade e se apressou em direção ao quarto.

Ele sabia quem era no quarto 202, John, tinha apenas seis meses de vida, chegara ao hospital cinco noites atrás, segundo o relato dos pais o berço estava coberto de sangue quando eles acordaram com o choro do filho, mas não haviam ouvido nenhum som de tosse antes disso. Desde que John chegara ao hospital estava tossindo três quartos do dia, não havia medicação alguma que fizesse efeito para controlar a tosse.

O bebê não aceitava a mamadeira e nenhum outro tipo de alimento. Os dois braços estavam acoplados através de cateteres a frascos de soro e solução de alimentação enteral, era o que mantia o garoto vivo, hidratação e alimento diretamente na veia.

Os olhos do médico pousaram nos monitores, não havia sinal de batimento, pulso ou respiração, embora o monitor de ondas cerebrais informasse atividade intensa.

Os enfermeiros prosseguiam com as manobras padrões de ressuscitação cardio-pulmonar: compressão torácica, desfibrilador, oxigênio através da sonda traqueal, mas não parecia haver resposta do bebê.

- Quanto tempo? – um enfermeiro perguntou.

- Doze minutos – respondeu o outro consultando o relógio de pulso.

As ondas encefálicas ainda estavam alteradas de modo aberrante, o médico não prestava mais atenção ao paciente. A dias ele tentara achar uma explicação razoável para o que estava acontecendo com aqueles bebês, mas nada brotara em sua mente. Agora, olhando o monitor ele formulava uma teoria.

- Droga! Já sei! – ele berrou assustando os enfermeiros.

O médico caminhava rapidamente entre os equipamentos acoplando algumas mangueiras e despejando o líquido dentro do receptor.

- O que você pensa que vai fazer? – a enfermeira perguntou assustada.

- Resolver o problema dele! – o residente afirmou.

- Você vai matá-lo se fizer isso! – ela retrucou enquanto os outros dois enfermeiros continuavam com as manobras de ressuscitação.

- Não irei! É uma simples questão de lógica! – o médico avançou em direção ao bebê.

A enfermeira apertou um botão do lado de fora da sala. Longe dali, na central de segurança no primeiro piso uma luz piscou indicando a necessidade de seguranças.

- Não chegue perto desse bebê ou não sei do que serei capaz! – ela ameaçou.

Os enfermeiros pararam seu trabalho espantados com o tom da voz dela, o rumo da conversa não era interessante. O médico estava parado a um metro da mesa, segurando em sua mão direita um tubo, enquanto a mão esquerda puxava a mesa anestésica para perto do paciente. Ele só precisava acoplar o tubo a sonda endotraqueal e ligar o vaporizador para anestesiar aquela criança.

- Doutor? – o enfermeiro mais próximo do médico deu um passo na direção dele mantendo-se próximo a mesa – é melhor o senhor se afastar.

- Pro inferno vocês! Me deixem fazer meu trabalho! Vocês vão matar a criança! – o médico berrou exaltado, receber críticas da classe inferior era inconcebível para ele.

- Você não irá anestesiar essa criança! – o outro enfermeiro avançou na direção do médico.

O médico não prestou atenção aos enfermeiros, ele estava focado nos monitores. O cardíaco apitava sem parar desde o início da parada, e até agora nada o revertera mas, não era isso que preocupava, as ondas encefálicas que antes mostravam os complexos mais bizarros agora estava curtas, espaçadas, quase mortas.

O tubo escorregou da mão do médico indo ao chão. Ele largou o carrinho anestésico e se apoiou na cama.

- Agora não adianta mais – ele murmurou para si mesmo quando dois seguranças o pegaram pelos braços levando-o para fora da sala.

O bipe de emergência do monitor encefálico apitou.

- Hora da morte: 4:23 – a enfermeira anunciou enquanto saia da sala.

O médico dormia na cama da sala dos residentes quando foi acordado por dois médicos vestidos de branco.

- Por favor, nos acompanhe – um deles solicitou enquanto saia da sala.

Os três passaram pela porta, um segurança estava parado, havia ficado o resto da noite vigiando o médico maluco. O grupo foi até uma sala de reuniões.

- Explique sua atitude maluca da madrugada! – era o diretor do hospital, ele estava sentado numa posição central na mesa.

- Não foi uma atitude maluca! – ele retrucou.

- Não foi? Que diabos! Em vez de você salvar aquela criança, você estava tentando matá-la e por fim a deixou morrer! – um dos médicos bufava com raiva batendo com a mão na mesa.

- Se você tivesse visto aquelas imagens no monitor encefálico saberia do que eu estou falando. Aquelas ondas eram típicas de uma convulsão, o que não corrobora com a parada, mas foi então que eu entendi. Todas essas crianças nasceram de cesariana, e todas as mães foram anestesiadas com esse anestésico inalatório, segundo as fichas. Segundo alguns artigos a não exposição de um dependente a droga pode levar a lesão no cérebro. No caso deles, a lesão ataca o centro termorregulador e o centro de controle de tosse.

- E o que você sugere? – perguntou um pediatra do grupo especial que havia sido convocado.

- Dê a eles o que eles precisam!

- Você quer que nós “chapemos” os bebês? – o pediatra perguntou incrédulo

- Você tem alguma idéia melhor? – o médico perguntou

- Tenho! Internem esse doido no hospício! – um médico falou no canto da sala.

- Lamento, mas vamos ter que dispensar os seus serviços, residente. – o diretor do hospital completou liberando o médico da sala.

Outros dois bebês morreram durante o dia com os mesmos sintomas, e da mesma maneira. O médico sabia das notícias através do companheiro de república que ainda trabalhava no hospital.

- Quantos mais vão precisar morrer para eles fazerem o que é necessário! – ele estava enfurecido e triste ao mesmo tempo.

- Você realmente acha que anestésico vai salvar eles?

- Não, não qualquer anestésico, o anestésico do mesmo lote usado nas mães. Eu peguei uma amostra do fármaco e enviei para o laboratório para tentar isolar a molécula causadora da lesão cerebral, tenho certeza que ela está lá, assim que eu tiver o resultado na mão provarei para eles como eu estava certo, só espero que todos os bebês não morram até lá!

- Nenhum outro apareceu, eles descartaram qualquer chance de virose ou doença bacteriana neonatal, mas continuam sem saber o que fazer. O jeito é torcer pra não morrer mais ninguém nas próximas horas, porque eu estarei de plantão e não quero espíritos agourentos me perseguindo! – o homem disse enquanto seguia para a porta da casa.

A cena se repetiu naquela noite por duas vezes, os mesmos enfermeiros, as mesmas luzes de alerta, a mesma inutilidade do tratamento e por fim: morte.

O médico recostou a cabeça na parede gelada do prédio enquanto refletia as palavras do colega. “É algo pra se tentar, afinal, estão todos morrendo mesmo...” ele pensou enquanto entrava nos quartos e avaliava os monitores cerebrais, frustração era o que ele encontrava quando via as ondas normais.

Na última porta ele encontrou o que procurava. O bebê apresentando as ondas bizarras, mas ainda consciente. O médico fechou a porta e trancou-a por dentro. Preparou o equipamento e acoplou o anestésico a sonda inalatória.

O ar preencheu os pulmões do bebê. As moléculas atravessaram para a corrente sanguínea, os vasos disseminando a molécula pelo corpo, até que elas chegaram ao cérebro nutrindo as células com o veneno viciante.

Aos poucos as ondas cerebrais se normalizaram, e o bebê dormiu um sono tranqüilo, sem tosse, como não conseguia há dias.

Dentro do envelope pardo os exames comprovando a presença da molécula viciante no gás inalatório. A empresa revendedora do fármaco tentava se defender inutilmente, cerca de vinte processos particulares além da acusação pública de homicídio.

Emília Kesheh
Enviado por Emília Kesheh em 27/04/2009
Código do texto: T1563606
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