OS SENHORES DA CRIAÇÃO (Parte III e conclusão)

V

O Deserto de Leon

Claro que não podia ir de mãos a abanar, teria de me preparar, levando alguma comida, alugando um carro (e não levando o meu) mas foi mais por pressentimento do que por qualquer outro gesto racional que decidi levar um dos fatos dos Sacerdotes, mas sem luvas, pois estas, por um motivo que nunca descobri, existiam em muito menor número do que os fatos, logo era possível dar pela sua falta mais depressa do que pelo resto.

Depois de ter concertado a parede e de ter deixado a sala o mais possível intacta, desculpei-me com falta de material, pedindo alguns dias para o reunir, com total anuência dos Sacerdotes.Com isso ganhara tempo, um tempo precioso par tentar dissipar a terrível e incómoda dúvida que começara a sentir para com os Sacerdotes.

Parti ao meio da noite, procurando não levantar suspeitas, e dizendo a Silvie que iria trabalhar até tarde numa casa particular.

Tive sorte por diversos motivos, desde as ruas estarem relativamente cheias de carros, à ausência de tempestades. De qualquer das formas, quando deixei a cidade era já tarde demais para ser detido, embora, muito sinceramente, hoje preferisse que de facto isso tivesse acontecido, preferia que os Sacerdotes não nos deixassem tão à vontade.

Andei mais de uma hora, sempre em velocidade máxima pelas enorme estrada que me levava à outra cidade, consumindo quilómetros atrás de de quilómetros, quilómetros irrisórios naquele gigantesco deserto cujo fim apenas se adivinhava no seu interminável horizonte. Seguindo as coordenadas, sai da estrada e dirigi-me ao local onde supostamente estaria a abertura de um dos túneis. Quando estava a algumas centenas de metros do meu objectivo vi algumas luzes que desciam do céu.

Parei e dirigi-me até elas a pé, tendo entretanto começado uma das célebres tempestades que levavam os Sacerdotes a desaconselhar tal viagem.

Instintivamente corri para o veículo e acelerei no sentido oposto ao da tempestade, de maneira a evitar a tempestade que rapidamente transformava em segundos a distância entre mim e ela.

Apesar da velocidade o vento não parava de aumentar de tal forma que me senti envolvido por ele e a girar sobre mim mesmo, enquanto uma estranha obscuridade transformava o luar em noite absoluta.

Durante enormes segundos senti a morte próxima, senti o turbilhão do vento e da minha ansiedade, que estavam quase a levar-me à loucura quando tudo acabou repentinamente.

Completamente aturdido e enjoado procurei sair do carro, deparando então com uma visão assustadora que me devolveu de imediato a capacidade de raciocínio: ao invés da nuvem de areia e do vento, estava sob um veículo de dimensões de tal ordem pouco comuns que me pareceram impossíveis. Hoje sei que era uma nave espacial, mas na altura era apenas algo de desconhecido, algo que não se encaixava em nada por mim aprendido ou visto, a visão mais aterradora que tive em toda a minha a vida. Por isso agi por instinto e um bocado por raciocínio primário - Como enfrentar a pior das visões, a mais assustadora de todas? Simples, fazendo-nos passar pelo ser mais poderoso por nós conhecido.

Foi assim que o fato dos Sacerdotes tive a sua utilidade.

Embora “protegido” continuei a sentir o lógico receio pelo desconhecido enquanto observava o ventre do monstro, apoiada em inúmeras plataformas que, soube mais tarde, serem o trem de aterragem, mas que na ocasião me parecia as patas de um estranho molusco pela sua forma e feitio.

Ao mesmo tempo, e no espaço deixado vago, reparei que outros dois engenhos idênticos a este aterravam suavemente, levantando violentamente a areia. Mal poisou a última nave a tempestade acabou.

Seriam elas as responsáveis pelos ventos ciclónicos?

A dúvida pairou literalmente sobre mim até que um barulho metálico vindo do ventre fez-me seu refém condicionando todos os meus sentidos na sua direcção. O monstro abria as entranhas, sobre a forma de uma plataforma, de onde saíram...homens. Homens como eu, vestidos com um bonito fato de macaco azul-escuro. Eram homens invulgarmente altos e bem constituídos, elegantes que transmitiam até essa elegância à forma mecânica de andar, a fazer-me lembrar os Sacerdotes.

Mal me viram cumprimentaram-me familiarmente na minha língua, logo de seguida disseram algo que me pareceu incompreensível pela sua lógica.

-Ainda bem que estava aqui a horas! Detestamos quando se atrasam! Agora vamos ao trabalho o tempo é curto, e temos de desenterrar pela milésima vez esses buracos!

Que raio de buracos seriam aqueles que eu não conseguia ver? Pergunta desnecessária perante os gestos seguintes da tripulação -Do bojo do monstro saíram mangueiras que, sem que ninguém lhes tocasse, começaram a aspirar a areia, criando uma cratera de algumas dezenas de metro de diâmetro e profundidade, no fim do qual se via algo de semelhante a uma tampa de esgoto. Depois de solidificarem a areia com um líquido desconhecido, criaram uma rampa, por onde desceram alguns veículos (que me pareceram, acertadamente, de transporte de mercadorias pesadas) que entretanto tinham descido da nave. Veículos sem condutor que, sozinhos, desapareceram no interior da terra. Mal o enorme comboio destes desapareceu, apareceu uma espécie de automóvel de oito rodas que parou ao meu lado e abriu uma porta, saindo do seu interior o rosto de um dos homens que me cumprimentara.

-Está-se a esquecer da boleia?

E disse-o de uma forma tão amigável e também tão rotineira que julguei tal gesto fazer parte daquele estranho espectáculo, pelo que não ousei recusar, tanto pela minha curiosidade, como pelo facto de uma negativa me poder desmascarar.

Dentro da máquina pude comprovar que esta era totalmente estanque, com sistema de refrigeração autónomo. Outra das suas características mais visíveis era o facto dos lados e tecto serem de um material transparente a permitir visualizar o túnel onde nos enfiáramos.

O túnel! Afinal existia!

Entusiasmado pela “descoberta”, foi-me particularmente difícil coordenar a tentativa de prestar atenção à conversa com os outros cinco elementos do grupo (que entretanto tinham começado a falar) e ao túnel, pelo que optei por lhes dedicar a maior parte da minha atenção.

E então? Falta-te muito tempo por aqui? - Comentou o de rosto mais simpático.

A que respondi com um aceno de cabeça vago de enfado.

-Compreendo...Nunca mais acaba...-E fez gesto de enfado com as mãos. Que raio é que me levou a só reparar nelas, naquele pormenor que deveria ter soltado à vista?! Mãos nuas, sem luvas que mostravam cinco dedos! Cinco dedos comuns a cada um dos outros elementos!

Cinco dedos! Que confusão!

Sem conseguir compreender, respondi com o olhar hipnoticamente nas mãos deles e utilizando as palavras que, naquele momento me observavam...mostrando-lhes as minhas nuas.

-Cinco dedos! Cinco bons dedos!

E para meu espanto os outros responderam rindo e acrescentando a lógica que me faltava à charada.

-Cinco dedos que nos separam dos mineiros! Devo-lhe confessar que ainda hoje a ideia não me deixa de espantar pela genialidade simples, apesar do paradoxo -Temos menos um dedo, mas somos os senhores, os senhores da criação! De génio! Se algum destes desgraçados escapasse deste planeta de imediato seria detectado por não haver ninguém fora daqui com seis dedos! Podem-se criar os sistemas de controle de detecção que quiserem, mas este meu caro, este é o melhor!!!

Rindo-se então todos à gargalhada.

Não era preciso ser um génio para compreender algum do sentido por ele dado.

Os mineiros seríamos nós, o povo dos seis dedos, e se havia a possibilidade de sair do planeta quer dizer que havia habitados, os deles, os dos senhores da criação, onde todos teriam cinco dedos, sendo estes um elemento de diferenciação. E se éramos mineiros, dado a nossa actividade principal (e à volta da qual tudo se organizava), ser esta, era lógico que estes homens se interessavam pelo mineral, sendo supostamente os veículos, robóticos para o transportar.

Mais elementos de repente se tornaram lógicos devido à língua de trapos do meu companheiro de viagem -Se as luvas tinham o sexto dedo falso, tal queria dizer que os Sacerdotes eram homens do mesmo planeta que os da nave, ou pelo menos que os conheciam dada a forma como me tinham saudado, o que pressupunha haver um acordo entre as duas partes, acordo a envolver o mineral, elemento fundamental da nossa sociedade.

Cheio de dúvidas, e concentrado nelas, abstive-me de mais conversas, tendo oportunidade de contemplar o túnel. Iluminado por luzes claras, tinha as dimensões exactas para deixar passar os veículos e uma profundidade de vários quilómetros, que se esgotaram em poucos minutos, altura em que o comboio parou numa enorme câmara, no centro da qual um funil de dimensões industriais despejava o minério nos veículos que surgiam de dois outros túneis, sobre os quais estavam duas placas com as palavras Terra (no primeiro) e Colónias (no segundo). Por mera curiosidade olhei para o de onde tinha vindo e vi uma placa idêntica que tinha escrito Reserva.

Instintivamente, mal parámos, procurei sair do carro, sendo parado pelos meus companheiros de viagem atónitos.

-Está louco?! Quer morrer envenenado?! O ambiente aqui é muito mais tóxico do que no exterior!

-Pois, uma coisa é vocês lidarem com os gajos lá fora, lhe darem a porra da religião e os convencerem a trabalhar, outra coisa é estar aqui, onde a concentração do mineral é muitíssimo mais alta!

-O gajo deve ser dos novos...pelo menos não me lembro da cara dele. E olhem...Até se esqueceu das luvas...É um novato, não há dúvida...

-E a altura dele? Agora até aceitam anões!!! Deve haver dificuldade a nível de vocações...O problema de todas as religiões!

-Sou um pouco baixo, mas isso não me impede de desempenhar as minhas funções -Respondi a medo temendo ser descoberto.

-E são vocês que orientam o rebanho...Bem, mas o que interessa é manter os tipos a produzir, todo o resto são pormenores...Pois bem, vou-lhe dar um conselho, mas o assunto fica entre nós...Ouvi dizer que vão propor duas comissões a vocês ao invés de uma. Não aceite. O minério é muito mais venenoso do que se julgava. Seis anos aqui pode dar-vos cabo da saúde. Sabe quanto tempo é que vivem os mineiros?

-Trinta, quarenta anos, no outro dia um jornal assinalou que um conseguira chegar aos sessenta.

-Esse tipo era praticamente imortal! Um milagre da sobrevivência! Eles vivem um quarto do nosso tempo! Um quarto! Ouviu bem? Portanto quando acabar a comissão mande ás urtigas o dinheiro e saia daqui! Muito sinceramente nunca aceitaria a vossa profissão, e além do mais pelo que estou a ver nem vos informam bem dos riscos. Prefiro mil vezes o transporte e supervisão do minério do que trabalhar por aqui -E disse isto enquanto apontava para o tecto -Só de estar por debaixo da Fábrica já me sinto arrepiado!

-Não o assustes mais, senão ele despede-se! Peço desculpa pelo meu colega, tem bons nervos para as naves, mas quando se apanha em terra é o pior dos medricas! Mas com alguma razão -Este planeta é um autêntico veneno Mesmo nós que só aqui estamos o mínimo tempo possível temos de ir ao médico a cada viagem. Por isso...cave daqui rapidamente e regresse à nossa velha terra.

Fiquei em silêncio a pensar, e assim continuei até o comboio arrancar outra vez em direcção ao deserto de Leon.

Apesar de ainda estar confuso começara a compreender, e por causa disso a sentir-me aterrado.

Muitas vezes a ignorância é um dom, pelo qual eu deixara de ser abençoado naquela madrugada.

Quando chegámos ao deserto já não era o mesmo homem de horas antes, aliás, já não era nada, apenas um mero objecto para os objectivos ainda obscuros dos meus donos, os homens da chamada Terra, o seu planeta de origem.

Em poucos minutos voltaram a tapar os buracos e a deixar tudo, quase, na mesma.

E a partida, no mínimo foi triste, porque, de certa forma, era também a minha futura partida do planeta.

Deixando-me no solo, dirigiram-se para a rampa de onde tinham vindo. Novamente de forma amigável saudaram o meu silêncio, e, como despedida só me lembrei de erguer o braço esquerdo e de acenar com a minha mão deficiente de cinco dedos.

Corri então rapidamente para fora dali, para o automóvel acelerando até os efeitos da descolagem dos monstros me serem irrelevantes.

Reparei, nessa altura que três outros automóveis também aceleravam. Eram automóveis exclusivos dos Sacerdotes.

Certamente que cada um estaria destinado a uma nave, mas a minha presença dispensou os homens da religião da boleia.

Provavelmente pensariam que se tinham enganado na escala, mas isso já me era totalmente indiferente, e talvez viessem a reparar no engano, começando a raciocinar e a, provavelmente, descobrirem que um estranho se tinha intrometido no seu jogo.

Mas infelizmente isso nunca veio a acontecer, os Sacerdotes nunca deram por nada, nem pela falta do fato que ainda conservava.

VI

O DIA EM QUE DESCOBRI NÃO SER EU

Já nada, absolutamente nada me interessava, e estava-me a borrifar se viessem a descobrir que uma das ovelhas tinha descoberto o logro. Pelo contrário, desejei ser apanhado e eventualmente silenciado, pois essa era a única forma de aliviar a enorme dor que sentia.

Apesar de ter acabado o trabalho e de ter continuado a minha vida como se nada se passasse, vivia dolorosamente um drama interior, dividido por dúvidas, cujo solucionar iria decidir o meu destino.

Absurdamente continuava a acreditar na religião e nos Sacerdotes, mas ao mesmo tempo duvidava de tudo e odiava-os profundamente.

Todo o sentido da minha vida era dado pela religião, e sem esta sentia-me perdido, vazio, pois deixava de acreditar em tudo.

Lenta mas inexoravelmente o que vira começou a convencer-me, e a partir desta altura cada dia passado revelava-se extremamente doloroso: àquela já não era a minha cidade, aquele já não era o meu povo, a Catedral passou a ser o palco do grande logro, e os Sacerdotes seres de um maquiavelismo quase transcendente de uma monstruosidade tal que jamais os consideraria iguais a mim, grandes demais para o serem e algozes demasiado para os equiparar com o meu povo; enquanto que a Fábrica e a cidade eram os seus parentes pobres na gigantesca mentira, gigantesco cenário sem tamanho destinado a sustentar o verdadeiro mundo humano, palco da pior das escravidões, porque encenada, porque nem sequer deram aos escravos o luxo de saber que o eram, preferindo criar um mundo à sua altura e nele os fazerem querer que eram únicos, e não apenas meros instrumentos, mera criação a ajudar a raça perfeita da terra.

Tudo era um enorme e sádico cenário, e por isso mesmo era-me impossível amar um cenário, amar a ilusão. Nem mesmo Julie e o seu amor poderiam alterar esta nova visão. Como podia a partir dai encarar o mundo da mesma forma? O futuro, a própria Julie? Como iria ter filhos depois de saber que estes não passavam de meros escravos, destinados a morrer envenenados em prol da verdadeira raça humana?

Senti ter perdido aquilo que era. Sentia-me como um joguete, uma criatura de laboratório, controlada permanentemente, privada da liberdade e só a tendo na sua ignorância.

Só me restava pois a alternativa de partir.

Aproveitando uma das tempestades, e usando o mesmo estratagema que me permitiu ser confundido, consegui penetrar numa das naves e deixar aquela terra maldita.

A diferença que desde o nascimento me perseguira, foi o passaporte para a fuga. No sistema nunca me procurariam, afinal era igual a eles, aos senhores...E o facto de me afastar daquele lugar aumentava-me a esperança de vida. Ou seja, mal chegasse ao exterior passava a ser um cidadão (quase) normal.

Depois de me introduzir numa das naves, mal cheguei à base, misturei-me com a população civil do local.

A falta de documentos foi disfarçada por uma amnésia, impossível de desconfirmar, o que me valeu alguns meses de internamento mas também os desejados documentos.

Se lhes tivesse passado pela cabeça e quisessem ser invulgarmente persistentes, teriam passado o meu caso para instâncias superiores. Um desconhecido sem identificação, detectado na zona pouco frequentada e nas imediações do planeta vedado poderia ter levantado suspeitas a quem estivesse minimamente a par da história. Felizmente um qualquer funcionário menor, com pouca ou nenhuma vontade para tentar descobrir quem era aquele tipo com mau aspecto fez o favor de simplificar a confusão, dando-me uma nova identidade e vidas.

Passei a ser um Augusto, de profissão semelhante à anterior, mas infinitamente mais leve devido à automatização. Máquinas preciosas, inteligentes, capazes de transformar em realidade os meus projectos mais ousados, e tudo com meia-dúzia de frases. Máquinas fantásticas, movidas pelo minério extraído com as vidas dos meus irmãos.

Agora, anos depois de viver entre eles, de os conhecer a todos os níveis, acho a própria história tão previsível, que o espanto advém da própria surpresa em relação à monstruosidade.

E a conclusão pareceu-me lógica, parece-me hoje lógica, demasiado... o minério riquíssimo era destinado a sustentar a civilização da terra e as suas colónias, sendo as cidades o local onde viviam os escravos, a Catedral o local onde os evangelizavam no sentido de produzirem cada vez mais, e a Fábrica o local onde era depositado o minério, “resgatado” através dos túneis subterrâneos. Tudo tinha sido pensado ao pormenor, até a camuflagem da aterragem das naves, transformada em gigantesca tempestade de maneira a afastar os mais curiosos.

O que me salvara fora a minha deficiência e a crença sobranceira por parte dos senhores que o seu plano nunca seria descoberto.

Como todos tinham previsto, a hiper-industrialização acabou por sufocar em si mesma. Tendo criado uma sociedade ávida de vastos recursos minerais, quando estes começaram a esgotar-se, a civilização abeirou-se do fim. As energias alternativas entretanto descobertas e desenvolvidas revelavam-se escassas ante a necessidade crescente de energia.

Foi então que por acaso se descobriu um mineral potentíssimo e em enormes quantidades, num dos novos planetas. O seu poder era tal que bastava uma pequena quantidade para alimentar a máquina produtiva de um grande país. Segundo os cálculos feitos de imediato as reservas serviriam para alguns milhares de anos. O alívio sentido então transcende qualquer comentário nos livros de história, e qualquer expressão utilizada para o transmitir pecará sempre por escassa. De imediato se enviaram equipas prospectoras para o local e se estabeleceram cidades para as suportarem. Mas, mesmo antes das primeiras levas chegarem aos centros da civilização, a comunidade mineira começou a morrer sem razão aparente. Depois das inevitáveis investigações chegou-se à conclusão que o minério, depois de removido se revelava altamente venenoso, contaminando todo o planeta. As próprias máquinas deixavam de funcionar e Devido à particularidade do mineral, o uso de fatos era demasiado incómodo, só o trabalho manual permitia dar à rocha o seu altíssimo valor.

Estavam demasiado coisas em jogo, pelo que se tornava lícita qualquer decisão.

Não se sabe quem teve a ideia, provavelmente nunca se saberá. Provavelmente a solução saiu de uma das várias equipas “multidisciplinares” organizadas para encontrar a solução. Provavelmente haveria outra que não aquela, mas alguém muito importante deve ter achado a coisa engraçada, autorizando-a e a partir dai fazer tábua rasa a qualquer prurido ético que pudesse impedir o concretizar da ideia

No entanto tudo era perfeito: nunca ninguém saberia de nada. Para a humanidade a crise tinha sido solucionada pela descoberta de um mineral algures num dos novos e distantes planetas. E as imagens das minas e da sua extracção lá estavam para o provar imagens onde mineiros felizes (principescamente pagos) e as suas famílias trabalhavam para o bem-estar dos seus irmãos do planeta azul. Nada que alguns técnicos de efeitos especiais não pudessem fazer, imagens que inundavam periodicamente as grandes cadeias informativas, para fazer a humanidade acreditar, para os continuar a cegar.

Embora pareça estranho, demorei algum tempo a adaptar-me. Tudo me parecia, e parece ainda hoje, demasiado fantástico, demasiado bom. Apesar de viver e de estar completamente inserido neste meio, continuo a considerar-me nada mais do que um estranho. Toda esta luz me soa a falso, toda esta felicidade insustentável ante a verdade que não queria ter dentro de mim, mas que nada faz esquecer.

No auge do seu esplendor, eis o homem a recuar no valor supremo que o deveria guiar - A própria humanidade.

Será inútil e vão questionar o direito, a autoridade com que ele criou e sacrificou uma subespécie de forma a servi-lo.

Nunca se desceu tão baixo.

Se noutros tempos se poderia ter utilizado a própria evolução histórica para caucionar as arbitrariedades do homem, o que irão utilizar para justificar isto?

Sabe-se demasiado bem os efeitos perigosos do mineral, o sofrimento prolongado entre as populações que o trabalham directa ou indirectamente, além da esperança média de vida ser diminuta, sabe-se também quão impessoal e inumano é condicionar o destino de alguém, e, pior criá-lo para um determinado fim. Foi-se longe demais, agiu-se para além de qualquer barreira, a omnipotência tocou as raias do mais absurdo.

Ele, o homem que se auto-elegeu como o ser mais perfeito da natureza, não se portou com um monstro, ele elegeu-se à condição suprema ao permitir-se ser auto-ilusoriamente tão grande que se deu ao luxo de ser tornado num inominável Senhor da Criação.

Criação física, laboratorial, cientifica, criação psicológica, deusificada. Deusificada...Tudo isto me mete demasiado nojo! O ter sido objecto, a sensação de que alguns dos momentos especiais da minha vida foram, de certa forma, delineados por alguém, escapa a qualquer expressão. Tenho uma dor demasiado profunda, uma revolta demasiado grande para te dar a explicar.

Desejo apenas que mais ninguém passe pelo mesmo, e de certa forma foi este motivo que me levou a deixar-te este testemunho. Sê um homem justo e equilibrado dentro desta verdade. Olha ao teu redor com força suficiente para não te deixares iludir. Conta apenas esta história a alguém que consideres especial, o suficiente para nela acreditar.

Ou então...Faz aquilo a que estranhamente me sinto incapaz: revela tudo ao mundo. Fornece as coordenadas do planeta a uma grande cadeia televisiva, o suficiente para ter meios e vontade para lá chegar. Desmascara os algozes, faz justiça, faz-me justiça. Destruirás as vidas dos escravos, ao fornecer-lhes essa verdade, mas impedirás a continuação da ignomínia.

Segundo os médicos tenho menos de um mês de vida. Nunca poderei ver o teu rosto, ouvir o teu choro, proteger-te dos primeiros fantasmas e assim me tornar humano. O material que esteve na origem desta horrível história acabou por me destruir, lenta, mas seguramente.

Morro destroçado, mas feliz por saber que vou continuar contigo. Uma nova oportunidade num mundo que nunca foi verdadeiramente meu.

Tenta pois ser o homem, o ser humano, que nunca fui.

Amo-te sem te ver, ama-me também.

Augusto desligou a máquina, recolheu o pequeno disco, meteu-o num envelope e lacrou-o, entregando-o digitalmente na morada do seu advogado. Dai a um mês e meio a sua mulher deu à luz uma bela criança morena como a mãe, olhos azuis do pai e seis dedos do avô.

FIM

Ideia de 1990, primeiro esboço de 1995

Conclusão e revisão em Abril de 2000

Conto protegido pelos Direitos do Autor

Miguel Patrício Gomes
Enviado por Miguel Patrício Gomes em 15/05/2006
Reeditado em 27/06/2008
Código do texto: T156352
Classificação de conteúdo: seguro
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