Zhenitty - Parte 3
Raul agradeceu mais uma vez e trancou o portão. José havia pretendido acertar os três tiros restantes na cabeça da criatura, mas após o segundo tiro nem mesmo havia uma cabeça. Usou o último no tronco, mais por raiva que por medo.
O jovem tentou passar o mais longe possível da poça de sangue que havia no meio da garagem. Era de odor nauseante. Raios de luz alaranjada, agora quase tão forte quanto da Lua cheia, entrava pelos espaços entre as telhas e o corpo do estranho animal, se é que era mesmo um simples animal. Olhou com asco a orelha no chão, presa ainda a um pedaço do crânio.
“Legal, mosqueteiro!”, pensou Raul. Foi uma atitude meio “um por todos e todos por um” que o levou a recusar ir para a casa de José, e ficar sob a proteção armada dele e do Artur. O que havia acontecido foi que Thaissa decidira ter outro ataque de histeria e se trancara no banheiro. Dissera que não sairia de jeito nenhum. “Fazer o quê?...”
-Luiz! Marina! A Thaissa já saiu do banheiro?- Perguntou com certa impaciência.
-Não- Respondeu Marina, iluminada apenas pela luz do visor de seu celular- E os celulares, nada. O telefone está mudo, ainda.
Luiz descia as escadas, trazendo a lanterna.
-Conferi todas as janelas e portas, Raul. Está tudo fechado... Tem certeza que não seria melhor irmos para a casa do policial?
-Com certeza seria, Luiz, mas o que vamos fazer se a Thaissa deu a louca? E a estrela?
-Maior ainda. Já está até fazendo sombras. Se for um corpo celeste em queda, deve ser enorme.- Luiz estremeceu.
-E se for um meteoro do tamanho do que extinguiu os dinossauros?- Perguntou Marina.
-Não estou falando de nada do tamanho de alguns quilômetros!- Respondeu Luiz, irritado com a falta de noção de astrofísica da amiga- Estou falando de proporções planetárias!
Marina ficou em silêncio. Podia não saber nada de astronomia, mas era inteligente. Mesmo assim não acreditou na imagem que lhe vinha à cabeça: O planeta sendo simplesmente destruído, como um mamão maduro atingido por um bastão.
-Mas temos um dilema. Se está a tanto tempo visível no céu sem cair, é por que é enorme. Por outro lado, se é enorme e tão brilhante, não poderia deixar de ser visto pelos astrônomos...- Divagou Luiz.
-Ei! Com essa confusão toda só agora lembrei que temos uma luneta aqui!- Disse Raul.
-O que estamos esperando? Vamos dar uma olhada na estrela!- Entusiasmou-se Luiz.
-E abrir a janela? Nem pensar!-Protestou Marina.
-A gente dá uma boa olhada em volta antes de abrir. Vem, Luiz!- Raul já foi pegando a lanterna.
Quando Marina ia colocar mais uma objeção, um grito agudo veio do banheiro.
-Thaíssa!- Gritaram os três, correndo até o banheiro.
-O que houve? O que está acontecendo aí?- Gritava Raul, mas a moça apenas berrava e se batia contra a porta, girando freneticamente o trinco, aparentemente apavorada demais para ter presença de espírito para virar a chave.
Finalmente ela lembrou de destrancar a porta, abriu-a de uma vez e saiu, quase derrubando Raul. Gritava desesperadamente:
-Tem um bicho lá dentro! Tem um bicho lá dentro!
Raul iluminou o interior do banheiro, mas não viu nada de estranho. Olhou a janela: intacta. O box estava fechado, mas ele não via nenhum contorno estranho através do vidro translúcido. Ouviram o som da carreira de Thaíssa escadas acima.
Os três amigos se entreolharam. Luiz pegou o rodo e tentou abrir o box com ele.
-Cuidado, Luiz!- Disseram Marina e Raul.
O box se abriu, mas nada apareceu atrás dele, a não ser uma barata que fugiu para a sombra do vaso sanitário.
Todos riram.
-Pode uma coisa dessas?- Luiz entrou no box tentou pisar a barata, mas ela era pequena, e conseguiu escapar entrando no ralo.
-Que susto!- Disse Raul- Pensei que fosse um outro bicho daqueles!
Marina fez uma expressão de estranhamento e disse:
-Mas, pessoal, ela fez todo aquele escândalo só por causa de uma...
Antes que Marina terminasse sua frase, e antes que Luiz saísse do box, a tampa do vaso sanitário abriu-se abruptamente, revelando uma criatura com aparência de crustáceo, talvez de uma lagosta, mas anelado e comprido, cheio de pernas duras que faziam um ruído repugnante contra a porcelana.
Luiz pôs-se a gritar, acertando a criatura com o rodo, empurrando-a para dentro do vaso. Ela reagia mordendo com sua boca dotada de dentes finos e compridos, e patas dianteiras com pinças, arrancando lascas de madeira e borracha, enquanto recuava lentamente.
Quando o bicho sumiu, Luiz saltou fora do banheiro, tirou a chave do lado de dentro e o trancou.
-Caramba! O que está acontecendo aqui?- Disse Luiz, trêmulo.
-Calma, cara!- Disse Raul.
Nesse momento, eles ouviram o nome de Raul ser chamado do lado de fora da casa. Era o vizinho José.
Eles subiram as escadas e abriram a janela. José e Artur estavam na mesma janela que dona Letícia estivera.
-Vocês estão bem? A gente ouviu vocês gritando e...- José se virou para o interior da casa- Letícia! Fica aí! Não, não vem pra cá, não! Fica aí dentro!
-Estamos bem, senhor José! Mas saiu um bicho esquisito do vaso sanitário! Tomem cuidado!
-Do vaso?
-Isso! Parecia uma mistura de centopéia com lagosta, sei lá!-Enquanto Raul conversava com José, Marina achou a Thaíssa e Luiz luneta do pai de Raul embaixo da cama.
-E a sua amiga? Ela estava no banheiro, não é?
-Estava, mas saiu correndo feito uma louca.
-Ah, então já que ela saiu, venham para cá!
-Tudo bem. Vou falar com eles. Quando estivermos prontos, te chamamos, ok?
-OK!
José entrou novamente, cerrando a janela.
Quando Raul também fechou sua janela, encontrou Luiz abrindo a caixa da luneta, e Marina acalmando Thaíssa, ambas sentadas na cama de Raul.
-O senhor José nos chamou para ir a casa dele. Acho que quanto mais gente estiver junta melhor. Além disso, os caras têm armas.
-Não antes de olharmos a estrela!- Disse Luiz, já montando o tripé- Como se prende essas pernas?
Raul concordou, mas não completamente seguro. Talvez fosse melhor levar Thaíssa agora, enquanto estava quase em estado de choque e não se oporia. Por outro lado estava muito curioso para olhar aquele estranho corpo celeste, que parecia ter alguma relação com a tempestade, os raios coloridos e as estranhas criaturas que apareceram desde então.
Luiz e Raul em poucos minutos haviam montado a luneta. Deram uma boa olhada na rua, e como nenhuma criatura foi avistada, eles abriram a janela mais uma vez e colocaram a luneta para fora.
Graças a um acessório com espelho, eles podiam olhar a luneta lateralmente. Imediatamente Luiz começou a tentar focalizar o objeto.
-Aaaaa! Meus Deus! O que é isso!?! Aaaaaa!!- Um grito vindo de alguma outra casa. Parecia estar a uns trinta ou quarenta metros dali.
Marina se levantou e tentou puxar a luneta para dentro.
-Gente, tem monstros soltos por aí...- Mas foi detida por Raul.
-Espere! Luiz? Está conseguindo?
-Calma...-Respondeu ele, concentrado.
O buraco nas nuvens era extraordinariamente estável. Marina olhou assustada para o lindo espetáculo. A estrela era tão grande agora que aparentava uma pequena esfera. Haviam também estrelas aparentemente comuns.
-Consegui... é alaranjado, e tem muitas nuvens... Meu Deus! É um planeta!- disse Luiz, maravilhado.
-Deixa eu ver! Raul praticamente arrancou Luiz da lente ocular.
Marina continuou olhando, mas agora acompanhada de Luiz. Poucos segundos depois Luiz exclamou:
-Nunca vi essas estrelas!
-O quê?- Estranhou Marina.
-Essas constelações, essas estrelas! Elas não deveriam estar aí! Elas não existem! Esse não é o céu! Pelo menos não o céu da Terra!
-Do que você está falando, Luiz?- Disse Marina.
Raul, porém estava alheio à discussão. Parecia ter encontrado algo ainda mais fantástico.
-Luiz! Olha isso!
-O quê?
-Olha logo, cara!- Raul abriu espaço.
Luiz Eduardo colocou o olho na ocular. Viu o estranho planeta, de cor alaranjada, coberto de nuvens de aparência espessa, mas deixando em algumas partes aparecer estranhos continentes recortados em superfície diferenciada que parecia ser água de oceanos. Mas chamou-lhe a atenção uma estranha e fraca estrela que se movia lentamente do lado esquerdo da imagem, na direção do planeta.
-Viu a estrela se movendo?- Disse Raul.
-Não é uma estrela...- Luiz viu o momento em que ela entrou na região do disco planetário. Aquilo que parecia um ponto brilhante se tornou um ponto escuro ao se sobrepor ao planeta. E seu movimento pareceu cessar.
Ignorando os pedidos de Raul, Luiz trocou a ocular por uma mais potente. Lutou com os controles de foco e mais uma vez e conseguiu enquadrar e focalizar o objeto.
-... É uma nave!- Concluiu.
*******
Marina estava sentada na cama ao lada de Thaíssa. Ela tentava conversar com ela, para tirá-la daquele perturbador estado de choque. Luiz e Raul discutiam se deveriam ou não ir para a casa de José.
-Não dá para levar a Thaíssa do jeito que ela está- Disse Raul.- Se a gente a leva lá para fora, com certeza ela vai ter outro ataque e sair correndo. Também estou preocupado com nossos pais. E principalmente com o pai da Marina.
-É...- Concordou Luiz- Com todos esses animais estranhos por aí. Eu não estou entendendo isso!
-O quê?
-A ligação entre todas essas coisas: A tempestade, os animais estranhos que vimos, o planeta lá em cima, aquela nave...
Marina se aproximou deles nesse momento.
-Gente, a Thaíssa concordou em irmos até a casa do policial.
Os três se viraram para a moça quando ela se levantou.
-Isso mesmo- ela disse- Desculpem aquilo que eu fiz. Vamos para a casa do policial. Lá vamos ficar mais protegidos.
-Que bom, Thaíssa! Você nos deixou preocupados.
-O telescópio vai também! – disse Luiz, já indo em direção ao equipamento.
Raul deu de ombros e foi até a janela. Uma lufada de ar frio entrou por ela quando foi aberta.
-Senhor José! - Ele gritou. Em poucos segundos ele ouviu a resposta.
-Diga, Raul! Você decidiu vir?
-Sim! A gente já está descendo!
-Positivo! Vou descer com o Artur.- A janela do vizinho se fechou.
Raul já ia fechar a janela também, mas se deteve ao ver sombras sob as nuvens que formavam o estranho ralo no céu, onde estava centrado o planeta. Pensou que fosse um bando de aves, mas eram muito maiores que qualquer ave que já tivesse visto antes. Elas sumiram de vista, então ele preferiu não alarmar seus colegas.
-Vamos, pessoal! O seu José já está nos esperando.
Desceram as escadas com pressa. Luiz vinha atrás carregando o telescópio. Marina continuava encorajando Thaíssa.
-Ai, Marina... Estou com tanta vergonha de ter me portado como uma louca!
-Não, não pense assim! Qualquer um pode entrar em pânico. Olha só quanta coisa estranha aconteceu esta noite.
-É, mas eu serei mais corajosa daqui para frente.- Tentou ignorar a repugnante criatura pendurada no teto da garagem, quando por lá passaram.
Saíram de casa olhando freneticamente para os lados. A visão de José e Artur com armas em punho, dadas as circunstâncias, era encorajadora. Marina, e Thaíssa andaram apressadamente para o portão aberto da casa do ex-policial. Luiz e Raul ficaram para trás, pois Raul estava trancando o portão.
-Ai... Sabe... Eu fiquei mesmo com medo. Já sentiu como se houvesse chegado o dia da sua morte? Foi como eu me senti... Só conseguia pensar que eu iria morrer hoje.
O chiado que ouviram em seguida serviu de pouco aviso; apenas o suficiente para que José gritasse e começasse a atirar obliquamente. Criaturas aladas voaram em rasante, cada uma visando um alvo, mas a maioria foi afugentada pelos disparos.
Jogando-se no chão, Raul escapou de uma das criaturas que não se intimidaram. Luiz também foi atacado, quase simultaneamente, pelo mesmo ser, mas foi salvo pelo telescópio, que foi arrebatado de sua mão e ganhou as alturas, caindo já aos pedaços metros à frente.
Outra sombra indefinida, que com a melhor observação possível em frente a sua velocidade, lembrava um grande morcego, investiu contra Marina e Thaíssa. Mas Artur agiu rápido e conseguiu afugenta-la com vários tiros.
-Para dentro! Para dentro!- Gritavam os dois homens armados.
Marina correu e entrou rapidamente. Raul e Luiz correram também, mas Thaíssa ficou paralisada de medo no mesmo lugar que estava quando começou o ataque, olhos vidrados contra o céu sinistro.
-Eu vou morrer...
-Corre, sua doida!- Gritou Raul, preparando-se para carrega-la, ou ao menos arrastá-la para dentro- O que você está pensan...
Na velocidade de um raio, Thaíssa foi erguida, emitindo um possante e agudo grito de horror. Num ato reflexo, Raul agarrou o tornozelo dela, e subiu quase três metros antes de soltar, caindo sobre as sacolas de lixo.
Seus amigos tentaram correr para ele, mas foram impedidos por José. Quem correu em seu auxílio foi Artur. Conseguiram entrar e trancar o portão sem serem novamente atacados. As criaturas pareciam satisfeitas de terem agarrado uma presa, e foram tratar da partilha...
Os três amigos choravam pelo pavor da situação.
-Fiquem tranqüilas, crianças... Agora vocês estão seguros!-chegou a esposa de José, confortando-os.
Marina estava com o rosto molhado.
-Meus Deus! Ela estava com tanto medo de morrer!
-Mas...- Dizia Raul, com um choro mal contido- O que está acontecendo, meu Deus? Isso tudo não faz sentido!
-O governo deveria ter mandado alguém, a essa altura!- Disse Luiz Eduardo.
-Ele tem razão, pai.- Disse Artur.
-É mesmo estranho.- Concordou José.- Vai ver que eles ainda não sabem... Se ao menos o carro estivesse funcionando...