Zhenitty - Parte 2

Dezenas, centenas de relâmpagos seguidos de trovões que fizeram o chão tremer por quase quarenta segundos. Thaissa enfiou a cabeça entre as pernas, tremendo. Raul pulou no sofá, ao lado de Marina, encostando a cabeça dela contra o peito, protegendo seus ouvidos.

Luiz Eduardo ficou sentado, olhos arregalados e mãos sobre as orelhas. Foi o único a ver as luzes dos relâmpagos: ora eram azulados, ora esverdeados, amarelos, vermelhos... Nunca havia visto algo igual.

Quando aquilo passou, os quatro se olharam, confusos e assustados. Apenas o som da chuva forte restava, agora parecendo sereno após a grande tempestade de relâmpagos.

-Já acabou?-Thaíssa fazia cara de choro. Na verdade tinha trilhas de lágrimas no rosto.

-Galera... Que coisa terrível! - Disse Luiz.

-Sinistro- Gemeu Raul, ainda segurando Marina, que delicadamente se desvencilhou do abraço protetor do amigo, para sacar o celular. Estava preocupada com o pai.

-Onde está meu pai? O quê? Sem sinal?

-Acho que algum relâmpago deve ter atingido uma torre de celular.- Supôs Luiz.

Vez por outra um relâmpago iluminava a noite, e a cada vez os jovens temiam um novo fenômeno ensurdecedor e ofuscante.

-Vou ligar para o telefone da minha casa. Vou ver se meu pai ao menos já saiu.

-Isso se os relâmpagos não derrubaram os fios de telefone também.- Previu Raul. Quando Marina retirou o fone do gancho sua expressão deixou claro que o pessimismo se justificava.

-Ai meu Deus... E agora?

-Calma, Marina. Seu Pai já deve estar chegando.- Consolou Luiz.

Sentaram-se e fizeram a única coisa que podiam fazer: Esperar. Vez por outra alguém puxava conversa, mas ela não ia muito longe.

Subitamente a chuva cessou. Foi como se o registro de uma ducha fosse fechado.

-Pelo menos isso. Nossa, como meu pai está demorando!

Luiz se levantou e olhou pela janela.

-Galera...- O tom de voz do amigo e sua expressão denotavam muita estranheza. Todos foram até a janela, também. A escuridão da rua era atenuada por uma luz alaranjada de origem desconhecida. Parecia vir do céu.

Raul abriu a porta e se dirigiu ao portão de pedestres. Todos o seguiram.

A rua estava alagada. Viram luzes de velas e lanternas saindo pelas janelas das casas vizinhas. Em duas delas havia pessoas também olhando para cima, para a fonte da estranha luz. Um andarilho completamente ensopado apontava o nariz para o firmamento, bem no meio da poça d’água que costumava ser a rua.

A estranha configuração do céu era um espetáculo assustador. Ainda havia nuvens, e bem no zênite uma abertura enorme nelas. No centro dessa lacuna, que parecia ser o olho de um enorme ciclone, havia um ponto luminoso com um diâmetro angular semelhante ao do planeta Vênus. Era dele que se originava a luminosidade alaranjada.

-Meu Deus! É o fim do mundo!- Gritou o andarilho, quebrando o encanto dos jovens. Começou a berrar coisas sem sentido.

-O que é aquilo?!!- Gritou Thaissa, apontando para trás do mendigo. Parecia um par de brasas.

Os olhos do pobre homem encontraram com os dois olhos chamejantes, somando ainda mais pavor.

-Aquilo é um cachorro?-Perguntou Raul.

Reagindo como um animal em pânico, o andarilho arremessou o saco roto que trazia às costas sobre o que parecia ser um cão. Com um rosnado, o ser se moveu ligeiro por cima do saco e o atacou. O pobre homem emitiu um grito horrível.

A julgar pelo tamanho o bicho poderia muito bem ser um fila brasileiro, ou um terranova. Mas os jovens não observaram muito bem os contornos do animal, pois entraram desabalados fechando o portão atrás de si. Nenhum deles conseguiu sequer discernir as palavras gritadas pelas outras poucas pessoas que viram a cena, mas podiam sentir o pânico nas vozes.

-AimeudeusAimeudeusAimeudeusAimeudeus...- Repetia Thaissa, em choque, enquanto sentava no sofá, colocando a cabeça entre os joelhos. Marina colocava as mãos nos ouvidos e chorava enquanto ouvia os gritos dolorosos e os rosnados ferozes. Raul e Luiz subiram correndo a escada para tentar ver pela janela do quarto do Raul.

Ao olharem por ela não viram o corpo do homem. Parecia ter sido arrastado para algum lugar entre as sombras. A débil iluminação da estranha estrela laranjada não permitia que vissem detalhes, apenas a trilha de sangue que rapidamente se diluía na lama da chuva.

Apesar de parecer um ataque de animal, Raul não pôde deixar de trancar todas as portas e janelas. Pensou em ligar para a emergência. Seu celular ainda estava sem sinal, e quando chegou na sala encontrou Marina testando mais uma vez o telefone fixo.

-Nada! Mas eles não devem demorar a consertar isso, não é?

-Eles devem consertar logo.- Respondeu Raul, colocando a mão no ombro de Marina e induzindo-a a sentar-se.

Luiz olhou para o lado e viu Thaissa tentando se recompor. Estava apavorada.

-Calma, Thaissa. Estamos seguros aqui.- E acrescentou, acreditando que a acalmaria- Raul e eu conferimos todas as portas. Está tudo trancado.

-Ah! Meu pai!!!!- Sobresaltou-se Marina, assustando a todos.- E se ele chegar e aquele cachorro ainda estiver lá fora?

-Vamos lá para cima. –Disse Raul.- Vigiamos pela janela. Quando ele chegar, gritamos para ele não sair. Ele dá uma olhada, e vocês entram rapidinho no carro, se tudo estiver ok. Certo?

Todos concordaram e foram para o quarto do Raul. Caía uma garoa agora, que já havia lavado todo o sangue que sobrara do ataque. Abriram a janela para ver melhor. Tentavam encontrar o mendigo e várias vezes se alarmaram falsamente. Viram que outras pessoas também olhavam por suas janelas, ou portas entreabertas.

-Eeeeeiiii! Rauuuulll! O telefone de vocês funciona?- Uma vizinha de Raul gritava da casa ao lado.

-Não! E nem os celulares!

-Aqui também não!-Logo em seguida ouviram o som do portão da garagem se abrindo.- Meu marido vai sair para procurar o homem atacado!

O marido da senhora Letícia era policial aposentado. Certamente estava armado. Todos, menos Thaissa, se espicharam na janela e viram que o filho dela também estava saindo à caça. O moço fechou o portão da garagem e entrou no carro, uma pesada caravan com um motor de “oito bocas”, que arrancou à baixa velocidade.

Marina olhou atentamente para o estranho astro no céu.

-Gente... Aquela estrela está maior!- De fato, estava agora com o dobro do tamanho.

Todos olharam para cima, Thaissa se encolheu sobre a cama de Raul.

-Será que vai cair? É um meteoro!-Disse Raul.

-Não! Sem chance! Aquela coisa é lenta demais para ser um meteoro.- Discordou Luiz.

-Droga!- Uma voz grave e rude veio da rua. Logo depois ouviram a dona Letícia.

-O que houve, José?

-Essa merda apagou e não pega mais!

O motor de partida rosnou várias vezes sem resultado.

-Desce, Artur. Vamos empurrar de volta.-Disse o ex-policial.

Começaram a empurrar o veículo de volta para casa, bufando e praguejando.

-Epa! O que foi isso?- Perguntou o rapaz. Algo se esgueirou rápido atrás de umas sacolas de lixo acumuladas.

-O que foi? O cachorro doido?- Respondeu o pai, sacando um revolver enorme.

-Caramba!-Exclamou Luiz. Os jovens ficaram com medo de uma possível bala perdida, mas apenas se agacharam. A curiosidade foi mais forte que o medo.

Raul olhou para cima mais uma vez. Teve a impressão de que aquela estranha estrela estava um pouco maior. Fixou sua atenção nos dois homens abaixo.

-Acho que ele está atrás daquele monte de lixo, pai!

-Se estiver vou mandar fogo!- O homem correu e, mantendo cerca de 5 metros da possível localização do bicho, deu a volta para ver se ele estava lá.- Então você tá a...- E ficou em choque, com uma expressão de espanto.

-Pai!- Gritou Artur, correndo até ele. Mas antes que o filho se aproximasse o suficiente para ver qual o motivo da surpresa de José, este atirou berrando furiosamente, mas a sombra negra se lançou sobre ele, que sacudido pelo recuo do seu revolver .44 não conseguiu dar outro tiro. O braço direito dele foi agarrado pela criatura, que o lançou ao chão, separando-o da arma.

-Paaaaiiii!!!- Gritou Artur, atirando sem fazer mira. A dona Letícia também gritava da janela, mãos na cabeça.

Apesar de haver errado todos os seis tiros, Artur conseguiu afastar a criatura. Ajudou o senhor José a levantar. Este gemia e descarregava em palavrões a sua dor. Catou a arma no chão e teria ido atrás do animal, se o filho não o dissuadisse intensamente.

-Feladaputa! Eu mato esse bicho do caralho!

-Calma, pai! Vamos pra dentro! A gente tem que lavar isso com água e sabão!

Nesse momento Thaissa já havia saído do seu choque, e havia se aproximado da janela quando ouviu os tiros. Quando os dois estavam a meio caminho de casa, Thaíssa alarmou a todos quando gritou apontando para a dona Letícia, que estava com quase metade do corpo para fora da janela.

Uma criatura de forma símia, pernas curtas, mas fortes, braços potentes e longos, observava dona Letícia por cima, com seu corpo projetado sobre a borda do telhado. Tentou fugir ao ouvir o alarido da jovem.

O grito de Thaissa alertou José, que ignorou a dor do braço e atirou, interceptando a criatura quando ela saltava para o telhado da casa de Raul. Ela caiu pesadamente sobre a o telhado da garagem, arrebentando telhas coloniais, mas não chegou a atravessá-lo, pois a sustação metálica o deteve.

Tão apavorado quando os outros, Raul, desligou a luz fluorescente de sua lanterna, e ligou a luz mais concentrada. Todos olharam quando Raul a iluminou. José, Artur e Letícia gritavam perguntando se o monstro havia morrido.

-Já vou ver!-Gritou Raul de volta, inseguro.

Ele havia caído de barriga para cima, braços abertos. Iluminou primeiro os pés, de pele escamosa e segmentada, parecida com a de um réptil. A pele também parecia reptílica, assim como as mãos, mas o aspecto geral era símio. Nunca ouviram falar de um animal como aquele. Mesmo sem serem iluminados, os olhos da criatura emitiam um suave brilho avermelhado, como brasas. Raul iluminou demoradamente o ferimento no peito. O buraco era enorme. Tiveram a impressão de ouvir o sangue cair como uma pequena bica no chão da garagem.

-AhmeuDeus!- Gritou Raul.

-O que foi?-Disse José.

-Ainda tá se mexendo!- A criatura gemia e se contorcia quando a lanterna de Raul focava seu rosto de aparência globinóide, de focinho curto, dentes caninos que sobressaiam aos lábios, orelhas compridas e pontiagudas.

-Abre a porta da garagem que eu dou mais uns tiros nele! Letícia!!! O que você ainda está fazendo na janela?!? Fecha isso, porra!!!