Zhenitty - Parte 1

Zhenitty

-É essa casa aqui. Estão ouvindo? É ele que está tocando.-Disse Marina aos seus dois amigos, Luiz Eduardo e Thaissa. O som amplificado do violão elétrico de Raul chegava a seus ouvidos.

-Os pais dele não se incomodam com visitas? Eles são legais?- Perguntou Thaissa.

-Muito legais, mas eles não estão. Foram com a irmã de Raul para a chácara deles, no entorno.

A residência, onde passariam uma tarde divertida assistindo alguns filmes, era uma construção de dois andares com a fachada salmão e detalhes brancos. Possuía uma garagem ampla, para dois, ou até três carros, mas a família possuía apenas um carro e uma moto, e o restante do espaço foi usado por Raul para fazer seu pequeno estúdio, onde ensaiava com a sua banda.

Marina avançou até o portão fechado, enquanto os outros aguardaram na calçada. Exceto Marina, nenhum deles já estivera na casa de Raul. Ignorando o interfone, a moça deu quatro batidas do lado direito, onde sabia estar o amigo. Imediatamente o som do violão cessou. Segundos depois Raul abriu a passagem de pedestres.

-Fala, Marina!- Raul os recebeu com um abraço amistoso na velha conhecida, um aperto de mão caloroso no colega de classe e outro, esse polido, em Thaissa. Mas essa fez questão de um abraço, também...

-Trouxeram meu filme?-Disse Raul, enquanto os fazia entrar. Passaram por ele até a sala de estar, decorada de modo aconchegante.

-Estão todos aqui.-Luiz abriu a sacola da locadora- O seu, V de Vingança... O meu, A Batalha de Riddick... o da Thaissa, O Albergue e o da Marina, Laranja Mecânica.

-“Mecânico Laranja”?-Disse Raul, troçando...

-“Laranja Mecânica”-Corrigiu Marina.- É um filme de Stanley Kubrick, 1971.

-1971? Que velharia... É VHS?

-Acabaram de lançar essa versão em DVD. Mas nem venham! Combinamos que todo mundo deverá assistir a todos os filmes!

-Ok! Trato é trato!!- Disse Raul-E você... Thaissa, né? Você deve gostar de filmes de terror. Ouvi dizer que O Albergue é pesado...

-Mais ou menos...- Disse Thaissa, ainda cautelosa, olhando onde pisava.

-Na verdade eu que escolhi para ela. Ela não sabia o que escolher.-Disse Luiz.

-Ah... O que eu escolhi vocês não quiseram...- Defendeu-se Thaissa.

-Mas a gente queria ver filme, não show.

Raul pegou os DVDs e levou até o aparelho. Os outros se acomodaram no sofá e no tapete felpudo.

-Ah, dependendo do Show. De que Banda?-Perguntou.

O aparelho estava ligado a uma TV flat de 29 polegadas, e um home theater

-Calipso ao vivo em Salvador, sei lá...- Respondeu Luiz.

O anfitrião fingiu um pequeno choque e logo disparou, arrancando risadas, menos de Thaissa, que sorriu não muito divertida:

-Aham... Pensando bem, estamos afim mesmo é de filme! Bom, vou estourar umas pipocas. Vão assistindo os traillers!

-De qual filme?- Indagou Marina

-V de vingança, claro.

-Legal- Apoiou Luiz.

-Pode ser...-Disse Thaissa.

*******

Durante várias horas os amigos se divertiram assistindo, rindo, e comentando. Apenas Thaissa se sentia deslocada. Quebrou o silêncio com um comentário fora do clima de brincadeira:

-Nossa. Esfriou!

Era verdade. Raul acrescentou:

-E escureceu...- Pressionou o botão “pause” no controle remoto e olhou pela janela: Nuvens carregadas, baixas e impelidas por um vento forte, davam um tom opressivo ao céu.- Luiz, vamos comprar o lanche, acho que vai chover forte.

A luz de um relâmpago imprimiu por uma fração de segundo a imagem da janela no chão. Em seguida um estrondo. A tempestade já estava chegado.

*******

-Pô, não precisava tanta coisa!- Reclamava Luiz. Os dois rapazes dividiram as sacolas nas quais traziam o lanche. Andaram rápido pelo caminho de volta.

-Você vai mudar de idéia quando comer o meu sanduíche especial. Hehehe... Caraca! Viu que relâmpago, cara? Vai chover e muito!

-Ei... Olha as nuvens!- Luiz apontou para o céu. Havia várias massas de nuvens- Desse lado as nuvens estão indo para o norte, desse outro para o sudoeste.

-E daí, cara?

-E daí que pode haver redemoinhos aqui. O vento desce...- Imediatamente uma rajada de vento frio os atingiu.

-Vamos correr!- Disse Raul. Várias pessoas na rua faziam o mesmo.

O vento jogava o lixo do chão aos ares. Uma coluna de poeira se ergueu de um descampado próximo.

-Viu!? Redemoinho! E dos grandes.

Começou a chover. Os pingos pesados, impelidos pelo vento, tinham o efeito de pequenos açoites em suas peles. Estalavam alto ao atingir as sacolas plásticas da padaria.

Abriram os guarda-chuvas, mas controlar aquelas “velas” enormes contra uma chuva de vento, carregando sacolas, foi uma tarefa que não conseguiram cumprir a contento. Em pouco mais de dois minutos suas calças estavam ensopadas quase até a cintura e os guarda0chuvas escangalhados. A rua da casa de Raul tinha um pequeno rio ao longo do meio-fio.

Ao entrarem em casa, encontraram as garotas caladas, sentadas uma de cada lado do sofá de três lugares. Marina se levantou e foi ajudá-los com as sacolas. Thaissa prontamente a seguiu, mas preocupou-se apenas em auxiliar Raul.

-Luiz, vamos nos enxugar. Eu te empresto uma calça.- Disse Raul.- Meninas, já para a cozinha!

*******

Antes de continuarem a assistir a outra metade do filme, prepararam um lanche à base de creme de açaí, sanduíches de presunto e queijo e torradas com geléias de ameixa e morango. Comeram até se cansarem.

Quando o filme terminou, a chuva continuava inclemente e os trovões cada vez mais potentes. Já havia escurecido.

-Raul, acho que a chuva pode entrar por baixo das portas.- Alertou Marina.

-Vou colocar uns panos de chão embaixo delas.-Disse Raul ao levantar-se.

-Vou junto!- Disse Thaissa.

Luiz Eduardo pegou o controle e mudou para o modo TV. Nem notou a inquietação de Marina, que por pouco não se levantou para ir junto deles.

“Ah! Mas que atrevida!”.

Raul foi até a cozinha, com Thaissa em seu encalço, abriu o armário sob a pia e pegou quatro panos de chão. Achou estranho aquela moça atrás dele.

-Oba! Tenho ajuda. Coloque embaixo da porta da frente, por favor. Eu vou colocar na dos fundos e na do jardim.

Ela deu um sorriso demonstrando simpatia, talvez de forma exagerada.

-Tá!- Saiu rápido, pretendendo voltar antes que Raul terminasse. Assim conseguiria um momento a sós com ele, imaginava.

Quando Thaissa ia saindo ele reparou nela. Achou-a bonita, mas havia algo que o impedia que se interessasse.

Thaissa rapidamente passou pela sala. Luiz estava comentando algo da TV com Marina, mas ela apenas fingia prestar atenção aos comentários dele, assim percebeu o que a outra estava fazendo. De repente cortou a fala de Luiz no meio de uma frase.

-Deu sede. Vou tomar uma água.- Levantou e foi para a cozinha.

Marina pegou um copo e enquanto colocava água gelada do aparelho purificador iniciou uma conversa com Raul. Quando Thaíssa chegou, já estavam conversando animadamente sobre estórias da sétima e oitava séries.

Percebendo que Marina estava disposta a frustrar sua estratégia, Thaissa decidiu não deixar barato.

-Nossa quanta animação. Quem vê, pensa que são namorados!

Enrubescida, Marina abaixou a cabeça e respondeu à meia voz:

-É que a gente se conhece há muito tempo...- Constrangimento. Era o que Thaissa queria. Agora Raul, brincalhão como era, faria uma brincadeira que deixaria a velha amiga ainda mais constrangida e ela fugiria para a sala. Isso se as coisas fossem como a rival de Marina queria.

-Pois é, não tem nada demais...- Raul também estava constrangido! Thaissa percebeu que a Marina era correspondida! Só isso explicaria o constrangimento do extrovertido Raul.

-Sabe, ainda bem!- Ela começou a jogar mais pesado.

-Ainda bem o quê?-Disse Raul.

-Que um garoto tão fofo esteja disponível!

Raul ficou tão sem graça ao ouvir isso na presença de Marina que agradeceu aos céus por ter acabado a energia naquele exato momento.

Mas Thaissa deu um grito forçado e se lançou no pescoço de Raul, que ficou sem saber o que fazer. Marina sabia que havia, sob o armário de parede, uma luz à pilha. Enquanto tateava procurando o interruptor, a outra “atacava” Raul.

-Ô, saco!-Gritou Luiz.- Tomara que volte logo. Raul, arranja uma luz!

-T-Tenho uma... Dá licença, Thaissa! ...lanterna no meu quarto! Só tenho que achar o caminho. Marina tem uma...- Marina conseguiu achar o interruptor e uma luz fraca e amarelada iluminou parcialmente a cozinha. Raul conseguira se desvencilhar de Thaíssa.-Obrigado!

Raul foi até o armário de desencaixou a lâmpada de um suporte.

-Vão para a sala. Vocês ficam lá e eu vou buscar a lanterna no meu quarto.

-Tudo bem. Vamos.- disse Marina.

Raul iluminou o caminho para as moças, que se uniram a Luiz. Quando o anfitrião foi buscar a lanterna, é claro que Thaissa quis ir junto, mas Marina a deteve discretamente.

-Ele volta mais rápido se for sozinho.-Raul imediatamente saiu correndo antes de uma provável insistência.

No pouco mais de dois minutos que ficaram os três na sala, reinou o silêncio, exceto por poucos comentários casuais de Luiz, sobre o vento, ou a chuva. O amigo estava completamente alheio ao clima entre as duas.

Mas seus comentários sobre o tempo não eram à toa. Os trovões estavam realmente violentos. A rua estava alagada. A mais de uma hora que chovia com a mesma grande intensidade, e parecia piorar pouco a pouco.

Um relâmpago, tão forte que iluminou toda a casa quase como o dia, foi seguido imediatamente por um estrondo potente o suficiente para fazer Marina e Thaissa esquecerem do ocorrido.

Luiz percebeu faíscas saindo de um poste à frente da casa. Levantou-se e disse:

-É, rapaz...- As Meninas o seguiram. A lua estava cheia, mas as densas nuvens não permitiam que sua luz chegasse à terra, porém os relâmpagos constantes permitiram que vissem o poste com o topo enegrecido, e vários fios no chão.-Parece que o “mecânico laranja” da Marina dançou!

Enquanto ainda observavam perceberam uma luz branca atrás de si. Era Raul que trazia sua lanterna. Era um modelo de socorro, com radlight, lâmpada convencional, sinalização sonora e uma lâmpada fluorescente, que estava em uso. A lanterna tinha cerca de quarenta centímetros.

-Caramba, que massa! Quantas pilhas pega esse negócio?- Disse Luiz.

-Oito das grandes. O que vocês estão vendo lá fora?

-Um raio atingiu o poste. Acho que a energia não chega hoje.- Disse Marina. É melhor eu ligar para o meu pai vir buscar a gente.

Ela sacou o celular e procurou na agenda por “Papai”.

-Pôxa... Que pena pessoal. Essa chuva atrapalhou tudo... Opa!- O celular de Raul começou a tocar.- Oi, mãe! Como está o tempo aí?

-Está muito bom... A brisa está uma delícia, aqui. O dia foi muito quente. E aí?-Disse a dona Marta, mãe de Raul.

-Aqui está chovendo pacas!- Respondeu Raul.- Uns amigos meus ficaram presos aqui em casa.

Dona Marta ficou um pouco preocupada com a chuva, pois haviam algumas falhas no telhado. Passou mais algumas recomendações tão peculiares às mães e encerrou a ligação. Quase ao mesmo tempo, Marina terminou a dela.

-Meu pai vem pegar a gente. Disse que leva também o Luiz e a Thaissa para suas casas.

-Bem, só nos resta esperar.- Disse Luiz, sentando-se.

A casa de Marina ficava no outro lado da cidade, de modo que não demoraria mais que uns quinze minutos para seu pai chegar.

Raul colocou a lanterna sobre a estante e também se sentou. O som da chuva era muito forte, mas felizmente a casa grande, com laje e segundo andar, o isolava bem. Mesmo assim era opressivo. Estava ainda mais frio. Thaissa sentia as carnes dos braços geladas, expostos pela camisa sem mangas.

Ficaram prestando atenção a chuva por instantes cheios de tédio. Depois Raul perguntou:

-Quando você entrega os filmes, Luiz?

-Só na segunda.

-Legal! Podemos assistir o filme da Marina amanhã. Não é?

-É...- Responderam todos.

Mais algum silêncio.

Depois o céu se incendiou.