REVOLTA NUM PLANETA MENOR (Terceira parte e Conclusão)

III

REBELIÃO

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Passaram-se mais alguns meses.

Nessa altura o plano de ataque começara a ser concretizado, sendo que numa primeira fase a estratégia foi a mesma da anterior campanha, sendo que para a parte final Pedro iria seguir os conselhos do seu aliado.

Bombardearam sobretudo o sul dos países do Norte, de forma a desviar as atenções da grande ofensiva que teria lugar a norte, mas não avançaram com um único soldado; quando a tropa avançasse seria de forma decisiva numa ofensiva de um só momento, um só golpe que apanharia as defesas do Norte desprevenidas, obrigando à sua rendição e assim a um fim rápido dos combates. Difícil…difícil foi convencer os seus comandados de que a Zona Interdita não passava dum embuste do Sistema, revelando-lhes então que dispunha de um aliado na Estação e que foi este a sugerir-lhe que avançasse por esse território aparentemente hostil…Ainda que hesitantes, os seus Generais anuíram, pois afinal tudo quanto dissera e fizera Pedro não tinha sido coroado de sucesso?

Antes de avançar Maximus Pedro reuniu as forças que o iriam acompanhar na investida pela zona interdita e decidiu fazer-lhes um discurso, transmitido para as zonas libertadas e para ambas as fronteiras dos Países do Norte graças a potentes altifalantes que mandou instalar.

E ali estava ele, o líder de quase todo o planeta, na enorme planície central, onde cem mil dos seus melhores homens e mulheres o ouviam atentos e com uma motivação que nunca tiveram, que nunca houvera naquele astro e, possivelmente, nem em qualquer outro, uma motivação só própria das grandes causas, e que pressagia os grandes momentos da história humana.

Eram eles a tropa de choque que iria permitir a conquista global e nunca pensada pelo Sistema.

Na primeira fila, bem perto de si, estavam os melhores dos melhores, a nata da nata – alguns milhares de homens e mulheres equipados com o precioso e praticamente invencível equipamento capturado ao corpo expedicionário vindo da Estação para por fim à perigosa insurreição, que agora era um movimento real de libertação. Eram eles as testas de ferro, o aríete da nova e eterna aliança que iria abrir brechas nas defesas do último bastião e assim permitir a entrada do resto da tropa, originando assim aquele que seria o princípio da vitória final.

E foi com os olhos neles, mas com a alma e a voz em todos os restantes que ele fez um discurso, um discurso que se ouviu por quase todo o planeta e também na Estação.

“-Primeiro acabámos com as chacinas inúteis, depois tomámos os Países do Sul, e estamos no limiar de conquistar os do Norte e assim todo o planeta, sempre com um número de baixas reduzidas de ambos os lados, fazendo não prisioneiros, mas aliados para a nossa gloriosa e nobre causa comum, liquidando depois os que vieram da Estação para impedir o que sabemos ser agora inevitável!

Irmãos e irmãs, eles tiraram-nos tudo -a muitos de nós a própria vida –, “eles até nos podem tirar a vida, mas eles nunca, nunca nos poderão tirar a liberdade!”

Somos uma nova espécie de escravos, fizeram-nos escravos, e é pela liberdade perdida que lutamos, pelas famílias que nos tiraram, pelos filhos que jamais voltaremos a ver!

Até agora lutámos para sobreviver, mas hoje, neste dia que marca o início de novos dias, pela primeira vez lutaremos para vencer!

Nascemos seres livres e por essa liberdade, pelo direito de a querermos, fizeram-nos escravos, mas é como seres livres que vamos lutar, vencer e morrer!

E é como seres livres que morreremos!

Mas se temos de morrer um dia, não morreremos hoje, pois hoje é o dia da vitória global!

Irmãos e irmãs “aquilo que fizermos na vida Ecoará para eternidade” e o que fizermos hoje vai perdurar na memória da humanidade, pois hoje inauguramos um novo ciclo na vida da raça comum, hoje é o princípio do fim das trevas em que o Sistema lançou a humanidade.”

A multidão global foi ao êxtase gritando o nome do seu líder a uma só voz numa impressionante manifestação de força e apoio àquele que todos consideravam o salvador, uma espécie de Messias bélico que os veio tirar das trevas, e todos passaram a saber, mesmo na Estação, que a vitória final era apenas uma mera questão de tempo.

E assim foi.

Essa força de choque, com Pedro à frente, avançou dai a poucas horas para a Zona Interdita, onde o último dos segredos de Y2 foi desvendado:

A Zona Interdita daquele local não passava de uma imensa planície desértica por de trás de uma enorme e oportunamente quase intransponível cadeia rochosa, mas intransponível apenas por dividir os Países do Norte e do Sul da Zona Interdita; nada nem ninguém – nem mesmo os meios aéreos - tinham ordens para lá penetrar, ordens violadas por Pedro, que resoluto avançou, sendo que ao fim de apenas algumas horas de escalada as forças do Sul finalmente tinham à sua frente a planície misteriosa, quase vazia, quase, porque mais ou menos no meio havia um destroço gigantesco: tratava-se de uma Nave-Cargueiro , ou o que dela restava abandonada há muito; por razões que lhes escapavam, a nave tinha aterrado mal e ficado parcialmente destruída. Após uma breve inspecção descobriram no seu enorme interior esqueletos de homens com o que restava do uniforme dos Países do Sul, alguns carros de combate, veículos de toda a ordem e até aviões; da tripulação da nave não havia rasto. Certamente que os da Estação tinham resgatado o que restava dela, deixando o resto, deixando os corpos dos condenados a apodrecer, pois afinal tinham acabado conforme o planeado: mortos em Y2. Depois de presenciar este cenário, a raiva e determinação de Pedro aumentaram, como se tal fosse ainda possível, bem como de toda a equipa que inspeccionou aquele antigo destroço. Havia de facto que acabar com tudo aquilo, havia que unificar o planeta e por fim à guerra eterna.

Conforme o planeado, flanquearam e atacaram pela retaguarda as poderosas defesas do inimigo, que, apesar de fustigadas por meses de bombardeamento ainda eram temíveis, defesas totalmente surpreendidas pelo ataque que facilmente, com poucos mortos e imensos prisioneiros, que apesar da determinação de se quererem bater até ao fim, viram os seus intentos frustrados pelos 1500 combatentes invulneráveis, que quase sem dispararem um tiro se aproximaram deles e os desarmaram impedindo até alguns de se suicidarem. Ao fim de uma semana de combates a última linha de defesa foi ultrapassada e os lideres sobreviventes capturados, sendo obrigados então a decretar a rendição, ordenando às suas forças da fronteira sul que cessassem as hostilidades.

Em pouco menos de dois anos de campanha Pedro ganhara a sua guerra pessoal com o Sistema, e pela primeira vez na sua história, em Y2 vivia-se uma Paz efectiva.

Chegara pois a vez da Estação.

Convencendo à força as tripulações prisioneiras para as pilotar, Maximus colocou no interior das naves capturadas os seus melhores combatentes com o equipamento moderno e dirigiu-se à lua.

Os sistemas de detecção da Estação assinalaram a partida de três naves que o Comandante sabia terem cerca de 1500 homens bem armados e determinados, sendo que pouco poderia fazer para evitar a tomada da lua, por dispor apenas de alguns homens com experiência rudimentar de combate. Sabendo disso e sabendo ter apenas algumas horas antes da chegada das naves, reuniu os homens num hangar e pediu para que a conversa que ia ter com eles fosse transmitida para toda a lua, para que todos os restantes funcionários estivessem a par. Virou-se para os subordinados e, ciente da sua fidelidade ao Sistema, procurou tranquiliza-los. Sabia também que lhe eram fiéis, que nunca se rebelariam, mas mesmo assim não quis arriscar, dado a forte presença do Sistema no seu espírito, dado terem sido doutrinados na sua lógica e mentiras desde o berço.

-Camaradas – procurou assim evitar a distância do cargo para os sensibilizar – toda a nossa vida o Sistema foi o nosso pai, a nossa mãe, a nossa família, a nossa terra, o nosso céu. Mas o Sistema não é perfeito, tem demasiadas falhas que alguém tem que corrigir. O que lhes vou dizer, muito pouca gente sabe, pela história ter sido apagada ou reescrita pelos novos senhores. Como o sei? Sei-o porque fiz pesquisa em arquivos julgados perdidos, sei tal porque o Sistema ao mesmo tempo despreza-me e confia de tal ordem em mim que não se importou com a minha pesquisa, que não ligou a essa pesquisa -também porque ignoravam a sua verdadeira razão dela, e a razão era conhecer a verdade e dá-la a conhecer a alguém quando chegasse a altura certa, e a altura certa chegou – que de certa forma me poderia condenar a vir parar a Y2 como cativo, e o que se vai seguir (e de que tenho provas disponíveis para vós se assim bem o entenderem): Há muito, muito tempo, muito antes de nascermos, muito antes do tempo dos nossos avós, e dos avós deles houve um tempo feliz, de liberdade, um tempo esquecido onde as pessoas podiam dizer o que pensavam, podiam eleger livremente um governo entre os diferentes partidos políticos que então existiam. Também se podia viajar para onde se quisesse sem ter de dar antes contas a quem quer que fosse. Praticamente não havia prisioneiros políticos, sendo que as prisões tinham como ocupantes assassinos, violadores excroques, ladrões, e gente desse tipo, mas não pessoas cujo único crime fora exprimir uma simples opinião. Nesse tempo a humanidade tinha várias nações, vários governos e não um só, não era tão próspera, ainda mal tinha beijado as estrelas, mas era feliz, pois sabia que o seu destino apenas estava dependente de si. Depois veio o Sistema. A qualidade de vida aumentou, conquistou-se o espaço profundo, mas perdeu-se a liberdade de agir, e, pior, de pensar. Os homens que vigiamos em Y2 são prisioneiros de pensamento, apenas isso, perfeitamente inofensivos às nossas famílias, amigos, conhecidos, e à própria sociedade civil, mas terrivelmente perigosos ao Sistema porque ousaram querer ou apenas imaginar um mundo melhor, ou simplesmente diferente. Por isso foram separados das famílias, espoliados de tudo até das suas memórias para se tornarem em simples combatentes e se chacinarem entre si. Terrível destino que o nosso “glorioso” Sistema lhes proporcionou, prova cabal da monstruosidade deste Sistema. E como vos disse tenho provas da gravidade de acusações que acabei de fazer, e por isso vos peço antes de as verem que acreditem em mim, como sempre confiaram que eu não vos vou deixar ficar mal, e peço também compreensão para com os que estão prestes a chegar, que devemos olhar não como invasores, mas como libertadores, os primeiros de uma nova vaga que irá limpar o Sistema -Os nossos irmãos que estão que estão prestes a chegar tiveram a coragem de o desafiar, e o preço foi o horrível destino de terem de combater entre si até morrer. Tiraram-lhes tudo – a família, a pátria, as memórias – e no entanto quando chegou a oportunidade de voltarem a serem humanos, de voltarem a contestar o Sistema, eles agarraram-na, e tornaram-se heróis. Lutar contra eles é inútil, de uma maneira ou de outra eles entrarão aqui, peço-vos apenas que os acolhemos como irmãos de armas e de fé que somos, para que o Sistema se possa reformular e acabar com a barbárie do planeta Y2. Por isso peço que me apoiem, peço que não resistam.

Olhou para os rostos dos cinquenta soldados e compreendeu que os tinha tocado. Apesar de ser um Comandante distante, todos os elementos da Estação sabiam da sua justiça, da sua rectidão, do seu currículo. Um homem destes não poderia ter acabado de proferir tais palavras sem um profundo conhecimento de causa. Por isso aceitaram essas palavras, a nova verdade. Apesar de tudo não eram fanáticos, eram homens e mulheres não muito bem vistos pelo Sistema que os tinha relegado para aquele canto espacial por não precisar muito deles…E toda a Estação tinha agora esse espírito, toda a Estação confiava no seu Comandante.

Sabendo disto, o Comandante por fim ordenou:

-Na altura certa, abram as portas.

As três naves inimigas chegaram e aterraram, e as tropas de imediato se dirigiram à principal entrada da Estação -com Pedro à frente, como sempre – . No breve percurso não deixaram de se impressionar pelo armamento de reserva que tinha aquela parte da lua, suficiente para alimentar “mil anos de guerra”, como disse um dos homens, num raro momento de inspiração, mas o momento era de acção, pelo que em breves minutos estavam posicionados juntos à gigantesca porta. Cientes da possível continuação dos combates, posicionaram as armas pesadas e fizeram mira às portas. Bastava apenas uma ordem do seu General, que no entanto hesitou…

Do lado interior da Estação, o Comandante e as escassas forças de choque aguardavam calmos.

Os minutos pesados não haviam forma de passar. Dois jogadores, separados por escassos metros estavam a momentos de encontrar o seu destino.

Pedro pensava.

O Comandante nem por isso, pois já tinha tomado uma decisão. Queria fazer esperar Pedro, pois julgava ir cair de certa forma mal o facto dos soldados de Y2 encontrarem a Estação à sua inteira disposição… Queria fazer um certo jogo, queria testar a sua paciência antes de lhe dar as boas vindas.

Até que um deles teve de agir, e esse homem foi Leviathan.

-Abram as portas.

E ficou face a face com Pedro.

Durante instantes olharam-se, até Maximus lhe dirigir palavra.

-Eu conheço-o…O seu rosto…O seu rosto está em todas as Academias dos cadetes do Sistema! Você é um herói deles, mas o que está aqui a fazer?

-Eu sou o Comandante desta Estação e antigo senhor todo-poderoso do vosso planeta de exílio, sou o seu aliado secreto, a pessoa que impediu que fosse operado à cabeça, se transformasse em nada, que lhe possibilitou ter duas memórias, e usar a sua antiga para a conquista do planeta, fui eu quem lhe deu as informações sobre o atentado, quem lhe “deu” um prisioneiro que facilmente abriria a sua boca para lhe revelar parte da verdade…A entidade que lhes revelou o local de aterragem das nossas naves, quem deu a ordem para estas se renderem, para vocês capturarem o seu armamento e também essas mesmas naves, que lhe iriam permitir o transporte para esta lua, fui eu que lhe revelei a táctica de ataque aos Países do Norte, quem lhe revelou onde estavam concentradas as suas maiores e mais poderosas defesas

-Mas porquê? É um homem do Sistema, pertence à Elite do Sistema!

-Porque muito antes de você ter cometido o delito de opinião que o levou até este canto perdido do Cosmos, eu tive um processo semelhante, mas não cai na asneira de falar…Combati a última sublevação rebelde em Marte, lá cometi crimes de que me envergonho, lá adquiri o estatuto de lenda que você conhece, mas lá apercebi-me da podridão do Sistema, da necessidade de o mudar, mas sabia bem demais como o Sistema trata os incómodos…Preferi o silêncio, mas o meu silêncio era de chumbo, pelo que para me calarem me deram este posto importante mas secreto, como que para me avisar dos riscos que corria se me revoltasse…

Durante anos calei-me, conformado, pois queria proteger a minha família e amigos, mas nunca me rendi, esperei sempre uma oportunidade, até que o poder que o Sistema me foi dando devido à lealdade (o poder de controlar com mão de ferro a Estação e o Planeta Y2) fizeram nascer uma ideia, que só precisava de tempo e de um elemento – Você. Esperei, esperei, até ter chegado a pessoa certa. Li o seu currículo e perfil psicológico quando aqui chegou, e sabia ter o homem certo para a minha vingança. Sabia que iria optar pelas memórias mais antigas se não o operássemos, sabia que se iria aperceber que tudo não passa de um jogo do Sistema, sabia que se iria revoltar, e com a minha ajuda rebelar o planeta, e depois conquistar o planeta para depois…

-Depois?

O Comandante colocou familiarmente um braço em torno de Pedro e contou-lhe o resto do plano.

-Depois? O Sistema confia relativamente em mim em mim, e eu vou comunicar que a situação por estes lados é o mais normal possível…Vou esperar e pedir ao longo de alguns anos mais prisioneiros -que não vamos operar – mais armamento pesado moderno, mais naves e depois vamos treinar essa gente em Y2, o cenário ideal. Mas, ao contrário do Sistema, nós não vamos obrigar ninguém a combater; aqueles que quiserem juntam-se a nós, os outros ficam a viver em liberdade nesse planeta, o primeiro a ser libertado, o único onde a liberdade existirá, como em tempos idos e quase esquecidos.

Depois? Tenho guardada a informação ultra-secreta de outros planetas semelhantes a este…Basta uma operação bem planeada e vai ver que a próxima Estação vai cair sem se dar por isso, e depois, bem depois…

E a seguir àquele planeta cair, outros se seguiriam para os Senhores do Sistema, demasiados seguros da sua intangibilidade, ignorando por isso este grito de alerta, este perigoso rufar de tambores que pressagiava a revolução universal, o ressuscitar da democracia, o seu fim, o fim do Sistema.

E na memória curta dos homens, depois dos tumultuosos acontecimentos que se iriam seguir, depois de alcançada a liberdade, todos terão esquecido que tudo aconteceu devido à vontade de dois homens, todos se terão esquecido que o futuro começou numa

REVOLTA NUM PLANETA MENOR

Fim…ou apenas o principio…?

Ideia e esboço original de 1990, substancialmente alterado, aumentado e corrigido em Maio-Junho de 2004

(Conto protegido pelos Direitos do Autor)

Miguel Patrício Gomes
Enviado por Miguel Patrício Gomes em 05/05/2006
Reeditado em 27/06/2008
Código do texto: T150649
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