Procurando além
Só enxergo um clarão branco. Não sinto minhas pernas ou braços. Nada. Tenho minha consciência, sim. Mas permaneço confuso até minha visão se ajustar e o branco transmutar-se em verde e azul, na forma de colinas e um céu limpo à minha frente.
- Pronto? – pergunta Lilandra, aproximando-se. Ela veste sua roupa de couro de antílope, exaltando suas suaves curvas. Seu corpo é esbelto, herança do sangue élfico. Seus cabelos negros agitam-se com a brisa de ar puro. Eu me distraio com seus traços angelicais.
- Pronto? – repete ela, aproximando-se e me olhando nos olhos. A brisa bate mais forte, desmanchando milhares de flores de dente de leão, erguendo suas minúsculas sementes no ar.
- Sim... – respondo finalmente. – Estou aqui... Nesse lugar maravilhoso.
- Me siga então. – ela sorri. – O que há com você?
Aos poucos me acostumo enquanto a sigo pela trilha de terra. “Que saudades desse lugar”, penso ao ver a cachoeira de Dalmut.
- Por que demorou, Campeão Sagrado? – pergunta ela, afastando meus pensamentos.
- Eu estava... – hesito, lembrando da conversa que me tirara várias noites de sono. – Eu...
- Orcs! – ela me interrompe, preparando arco e flecha e disparando habilmente. Distante, um humanóide de pele verde e oleosa tomba. Outros quatro avançam sobre nós.
- Eu encontrei Andrielle, a maga... Estava conversando com ela sobre o futuro... Não tenho mais vontade de fazer nada. Meu avô contava como as coisas foram diferentes antes da U.R. – digo desanimado, sequer saco a espada.
Outra flecha corta o ar, silvando como um pássaro, levando a morte a outro orc. Ela se afasta. Os dois restantes me atacam com seus machados enferrujados ainda com restos da carne de suas vítimas. Os golpes rechaçam em minha armadura encantada. Pobres coitados, eles nunca me causariam dano.
- Nunca sair de casa é algo triste. – continuo ignorando-os. – Como chegamos a esse ponto? Eu mal te conheço de verdade Li. Quantos anos fazem que andamos no mesmo grupo? É de se enlouquecer, passar o tempo todo escravizado pela U.R. e sequer ter tempo para... para... Enfim, “Ela te fornece tudo o que você precisa para viver em segurança.” eles dizem. Besteira! Vivíamos muito bem antes dessa tirania.
O arco canta novamente deixando um único inimigo de pé. Seu golpe arranca somente uma faísca azulada do metal que me protege.
- Nós não temos como fazer nada. – afirma ela, aproximando-se. – Então pare de pensar nisso e mate esse orc. Os outros estão esperando.
A criatura rosnou algo em sua língua, desistindo de me atacar e avançando sobre minha companheira. O som do aço então retine, quando desembainho a lâmina virtuosa. Um único golpe. O suficiente para encerrar aquele combate sem graça.
- Você é um poeta Tom... – diz ela lançando-me aquele olhar. Eu me derreto quando ela me toca no rosto. – Eu adoraria conhecê-lo de verdade, um dia. Mas sabemos que esse dia nunca chegará.
Eu hesito novamente, segurando sua mão. Sinto a voz falhar e o coração acelerar quando tento contar meu plano. Não, meu plano não, minha decisão.
- Eu estou indo Li... Só precisava me despedir de você. Ver seu belo sorriso e sentir mais uma vez a luz do sol deste maravilhoso lugar.
- O que?
- Estou indo e não pretendo voltar. Mas escute, eu amo aquela que se esconde atrás destes olhos elficos. Não importa como ela se pareça.
- O que você está dizendo?
- Eu estou partindo. Voltarei para minha casa e não mais retornarei. Abrirei a porta para a verdade e desafiarei tudo. Eu irei até você e, se você quiser me receber, olharemos de verdade, nos olhos um do outro.
Selando a conversa com um beijo roubado, recuo dois passos. Minhas mãos tremem. Encaro o anel em meu dedo e novamente o clarão cega meus olhos. Deixo de sentir minhas pernas ou braços. Nada. Diferente da primeira vez, não fico confuso.
Abro os olhos e observo o lugar sujo e úmido em que vivo. O quarto minúsculo da seção C do subterrâneo 13 da velha São Paulo. Tiro a interface neural conectada em minhas têmporas e me sento. São quinze anos preso nessa jaula minúscula, controlando robôs agrícolas pela Ultra Rede quatro horas por dia. Viajando entre os mundos criados, medievais, futuristas, eróticos ou de paisagens surreais, nas minhas horas de folga. Não me lembro da última vez que vi uma pessoa de verdade. Tenho comido os enlatados que enviam pelo sistema de tubos por tempo demais. Tenho reprimido minha curiosidade por tempo demais. Chega!
Levanto-me e caminho até a porta. Estou decidido. É hora de erguer-me e lutar contra a insanidade que nos atingiu neste futuro longínquo. Quisera eu que tudo fosse resolvido por espadas mágicas em um jogo virtual, Li. Quisera eu poder me satisfazer com ilusões. Quisera eu ser um conformista como tantos outros.
Não tenho uma mochila para carregar as latas de conservas. Agasalhos para o frio. Nem um meio para viajar.
Digito a senha da porta, erro algumas vezes, nervoso. Enfim ela se abre. Engulo o medo que toma minha alma e, observando o corredor escuro, repleto de portas para cubículos como o meu, dou o primeiro passo.
Vou contra todas as apostas, sem arma ou armadura. Sei que encontrarei algo, pois, se nada mais tiver restado no mundo. Encontrarei o que procuro além dele.